Torto Arado (Itamar Vieira Júnior)

quarta-feira, 31 de julho de 2019


Itamar Vieira Junior, vencedor do Prémio Leya 2018, escreveu um livro de enorme beleza e repleto de importantes simbolismos, do princípio ao fim. Atrevo-me, inclusivamente, a defender que são todos esses simbolismos sobre a pobreza e preconceito social de um Brasil inalterável, que fazem deste livro uma obra de rara qualidade. Qualidade essa quer ao nível literário, quer ao nível do seu grande propósito que, tal como o autor o defendeu, se prende com um apontar de dedo a essas diferenças sociais tão marcadas naquele país.
 
"Ainda recordo a palavra que escolhi: arado. Me deleitava vendo meu pai conduzindo o arado velho da fazenda carregado pelo boi, rasgando a terra para depois lançar grãos de arroz em torrões marrons e vermelhos revolvidos. Gostava do som redondo, fácil e ruidoso que tinha ao ser anunciado."

 
A história começa quando duas irmãs, Bibiana e Belonísia, filhas de trabalhadores de uma fazenda no Sertão da Bahia, se escapam ao quarto da sua avó para lhe descobrir os segredos. A mala da avó era o centro desse segredo e a fonte de curiosidade das duas meninas. Dentro dessa mala, uma faca brilhava destemida. A curiosidade das crianças levou a que Belonísia a sentisse na sua língua, cortando-a sem querer e mudando-lhe, irremediavelmente, o futuro de ambas.
 
"Foi assim que me tornei parte de Belonísia, da mesma forma que ela se tornou parte de mim. Foi assim que crescemos, aprendemos a roçar, observamos as rezas de nossos pais, cuidamos dos irmãos mais novos. Foi assim que vimos os anos passarem e nos sentimos quase siamesas ao dividir o mesmo órgão para produzir os sonhos que manifestavam o que precisávamos."

 
A união entre as irmãs cresceu com a ausência da língua de Belonísia. O corte da sua língua massacrava a avó com um desgosto que continha, para lá da compaixão, um sentimento de culpa pesado como a terra. A vida continuaria a passar, como sempre, indiferente e atarefada na pressa dos dias e no trabalho que só a terra exige.
 
Tudo parecia ter encontrado uma rotina casada com a paz dos dias iguais mas Bibiana tinha sonhos para lá daquele lugar, sempre inseguro e dependente da vontade dos donos da fazenda.
 
"De tudo que vi meu pai bem querer na vida, talvez fosse a escrita e leitura dos filhos o que perseguiu com mais afinco. Quem acompanhasse sua vida de lida na terra ou a seriedade com que guardava as crenças do jarê, acharia que eram os bens maiores de sua existência. Mas pessoas como nós, quando viam o orgulho que sentia dos filhos aprendendo a ler e do valor que davam ao ensino, saberiam que esse era o bem que mais querias poder nos legar."
 
Foi assim que se tornou professora, apaixonou-se e partiu escondida de todos. O afastamento criaria um fosso esperado entre si e Belonísia, um profundo golpe com o qual teria de lidar e para a irmã mais velha, suportá-lo numa pesada culpa.
 
Através da relação destas duas irmãs, o autor espelha a vida difícil dos campos, dos agricultores e exploradores, mostra-nos a injustiça vivida por estes homens e mulheres sempre vistos como desiguais e que, infelizmente, ainda se mantém firme. Essa desigualdade social nascida há tantos anos atrás continua presente numa atualidade em que tal não deveria ser, sequer, fruto da imaginação de ninguém. Questionar estes cenários é, também, uma imposição direta na leitura deste livro.
 
Voltando à questão dos simbolismos na sua obra, acredite que nada é por acaso. A voz do livro é voz de mulher. A mulher como sensibilidade e força, refletida no trabalho do homem e no desejo de conquistar um pouco de terra. A língua cortada como fonte de segredos que parecem não ter fim. O silêncio como culpa pesada e que se reflete, magistralmente, na vida de cada personagem como um fardo, um castigo de Deus que cobra, firme, a ordem das coisas.
 
Itamar Vieira Junior escreve com sensibilidade e com o conhecimento de quem estudou, também, esta realidade. (É formado em Geografia e Doutorado em Estudos Étnicos e Africanos). Estamos, por esse motivo entre muitos, perante uma obra de - repito - rara beleza e encanto. É impossível ao leitor, através de uma escrita tão visual, não sentir de perto a terra quente, os pés descalços, o trabalho pesado que a terra pede, a natureza no seu esplendor, a união dos homens na adversidade da vida. O sofrimento. O sonho. E, por fim, o amor.



Recomendo com ambas as mãos.


Seja feliz,

Música para os meus ouvidos

terça-feira, 30 de julho de 2019


 
"A música é uma das maiores alegrias que se podem ter na Terra. Se se tiver esse prazer, então aguenta-se quase tudo nesta vida."

Anita Desai in "A Luz Brilhante do Dia"
 
 
Ao som de: Where is my mind (Pixies)
 
 
Seja feliz,

O Sol na cabeça (Geovani Martins)

segunda-feira, 29 de julho de 2019


O primeiro livro do escritor brasileiro Geovani Martins (Editado pela Companhia das Letras Portugal) ganhou, desde logo, o seu lugar ao sol e isto deve-se, em grande parte, à temática que traz a lume: a vida dos moradores das favelas.
 
A sua estreia, de um homem que também ele viveu a realidade das favelas, da pobreza e do preconceito associado, parece oferecer um novo realismo à literatura brasileira.
 
«O Sol na Cabeça» é um livro de pequenos contos e o fim que os liga é, sobretudo, o preconceito social como um sol tórrido de Agosto a queimar-nos a cabeça desprotegida. Resta-me a esperança de que essas queimaduras sejam uma comparação aquela em que acredito ser a intenção do autor: alertar para as consequências tristes do preconceito, da adolescência perdida, do abandono e do nojo social tão magistralmente tocado nas personagens que aqui encontrará.
 
Há um pouco de tudo e esse tudo é triste apenas por existir. Não sou inocente ao ponto de acreditar que um dia tudo mudará, radicalmente. Ainda assim, é urgente a máxima da empatia aplicada à prática: a capacidade de nos colocarmos nos sapatos do outro e perceber, na sua pele, o impacto de um olhar de lado, gestos de quem evita e a repugnância (tantas vezes) injustificada.
 
Qual o impacto numa criança que se sente marginalizada pelo olhar assustado de uma mulher que, tal como ele, se encontra na paragem do autocarro? Qual o impacto de percebermos quais os sentimentos que se entranham ao sermos assaltados e o nosso coração queimar de medo pelo amor da nossa vida? Qual o impacto, a pressão que não terá, de vivermos à margem da sociedade e, na falta de melhor, compactuar com a única coisa que está à mão? É que, muitas vezes, o que está à mão parece ironia de destino, um caminho tortuoso que pesa ainda mais no preconceito dos outros.
 
Sobre este livro, Milton Hatoum disse: "Se Lima Barreto estivesse vivo, sem dúvida leria com emoção as narrativas deste livro tão necessário em tempos de intolerância, ódio e ignorância.”
 
É este o peso desse sol que nos queima a cabeça. É a urgência de percebermos que por muitos anos e supostas evoluções do mundo, a intolerância, o ódio e a ignorância mantêm-se, lamentavelmente, na ordem do dia. O que fazer? Como suportar esse calor que os egos sempre tão inflamados fazem questão de perpetuar?
 
 
Faça o favor de ler e inspire-se.
 
 
Com o apoio,

 
 
Seja feliz e votos de uma ótima semana repleta de boas leituras,

Dramas femininos

quinta-feira, 25 de julho de 2019

:)
Seja feliz,

Carta de uma desconhecida (Stefan Zweig)

quarta-feira, 24 de julho de 2019


São pouco mais de 60 páginas para provar, sobretudo aos mais céticos nestas questões sentimentais, que a intensidade de um amor não é quantificável, de forma alguma. Em pouco mais de 60 páginas leremos uma carta intensa, sofrida, por vezes quase inacreditável. Outras vezes, nessa mistura de incredulidade, chega a ser revoltante.
 
Stefan Zweig, o autor particularmente conhecido pela sua sensibilidade no retrato aprimorado (e profundo) dos sentimentos, oferece-nos uma trágica e peculiar história de amor. Porquê peculiar e não especial? Ambos são sinónimos mas não é fácil escolher esse adjetivo ao conhecer a dor de uma mulher que amou perdidamente, despojadamente, sem retorno ou - mais cruel ainda - sem qualquer reconhecimento. Para todo o sempre, será uma desconhecida. E isto dá muito que pensar.
 
A história começa com o regresso de um homem a casa. É o dia do seu aniversário, completará 41 anos. Senta-se na poltrona e, distraidamente, verifica as cartas recebidas. Uma carta diferente, maior, uma caligrafia (também ela) desconhecida. A carta de uma mulher em que lhe expõe, sem falsos pudores, todo um amor que lhe nasceu era ela ainda uma adolescente. Um amor dedicado, atento e devoto. Um amor que, até então, ele não sabia ter existido.
 
Ao longo desta carta percebemos a dedicação de uma mulher a um amor que, nos dias de hoje, nos parece fora dos parâmetros. Quando o digo penso nas atuais mensagens, cada vez mais desenvolvidas, de amor próprio. Só podemos amar, amando-nos primeiro. Se eu não gostar de mim, quem gostará? Esta carta vai pedir-lhe que esqueça isso e retroceda aos tempos antigos, aos tempos em que o coração se inflama de tal maneira que a mulher ou o homem adoecem, perdem as forças, a razão de viver que incide, como um ponteiro acertado, na vida daquela outra pessoa. (Por exemplo, quando falo em homens, lembro-me automaticamente do Werther de Goethe, quem esquece aquele sofrimento?).
 
O livro de Stefan Zweig, que nos faz voltar a esses amores intemporais, tão dramáticos e potentes, obrigou-me a refletir, especialmente, sobre dois assuntos que considero aqui muito pertinentes: o impacto que podemos exercer na vida de uma pessoa que nos é completamente desconhecida e, numa outra vertente, o dramatismo escondido em todas as histórias de amor.
 
Esta mulher amou desesperadamente. Poderíamos até pensar num amor platónico, nunca consumado, mas não é isso que acontece aqui, caro leitor. A crueldade desta carta, que prima pelo tom inocente e despojado, de quem nada pede, faz-nos questionar sobre o poder de destruição de que todos nós somos capazes, tantas vezes, de um modo completamente inconsciente.
 
Amor é mesmo esse verbo terapêutico que nos protege de tantas maleitas. É o verbo auspiciado que se quer presente diariamente na nossa vida, a germinar. Negá-lo será, obviamente, um direito seu mas, no que à natureza e às leis de Deus diz respeito, nós somos seres movidos pelo afeto, pela necessidade de partilha, de um crescimento paralelo que se desenvolve, paradoxalmente, na divisão das partes. Curioso, não me dirá? Nascemos para amar, nas suas mais diversas ramificações e aqui, falando de amor romântico (Francesco Alberoni saberia tecer aqui uma teoria muito mais válida, mas tentarei ainda assim), o dramatismo de quem se vê como uma sombra do objeto amado, toma lugar. Inequivocamente.
 
Os tempos mudaram, é verdade. Alain de Botton, num dos seus estudos sobre o relacionamento amoroso, fala na comparação (referida em inúmeros estudos sociológicos) entre o efeito da paixão no cérebro e o consumo de drogas. O poder da paixão é, assim, inegável. E o amor na sua conceção? A mudança dos tempos estão também a criar novas conceções sobre o amor em si mesmo? Estaremos nós agora, nesta era tecnológica movida pelo facilitismo que incita, na mesma medida, um egoísmo tido como "naturalista", a caminhar para uma espécie de desumanização dos afetos?
 
Não me compreenda mal. Não concebo o amor à luz do silêncio e da devoção extrema como tantos romances da era vitoriana, assim como esta carta de uma desconhecida. Não é bem esse o ponto de reflexão que Stefan Zweig originou em mim. Passa, antes, pelas novas formas de amar e nessa tentativa solitária de o concebermos (quase) unilateralmente. Estaremos nós a caminhar, a passos largos, para o contraste extremo dos tempos antigos? Nesse caminho, onde fica o meio termo quando nos nasce um amor?
 
 
São pouco mais de 60 páginas (escritas em 1922) para nos confirmar a eterna complexidade do amor como a única condição impassível de mudança, por muitos anos que passem.
 
 
     
 ❤
Seja feliz,

Amor aplicado | Teórico-prática nº3.583.623

sexta-feira, 12 de julho de 2019


"(...) tendo chegado à conclusão, da maneira mais dura, de que a medida do amor não está no número de separações por que se passou, mas sim na certeza de que haverá sempre mais um reencontro."

In "Até ao fim do mundo" | Amy Bloom 
 
 
 
Seja feliz,

Serotonina (Michel Houellebecq)

quarta-feira, 3 de julho de 2019

 
Muito se fala sobre a escrita depressiva de Houellebecq. Transformou-se nessa marca, num ponto vincado que o define, sempre com histórias aparentemente cruas, mordazes e sombrias. Há, porém, uma base de onde tudo isto surge e pasme-se leitor, porque é no amor que Houellebecq se centra em (quase) tudo o que nos escreve. Talvez seja esse um dos grandes motivos, como ainda recentemente li, para estarmos perante um dos escritores mais humanistas de sempre.
 
Repare, Houellebecq é realmente assim, escreve incisivamente, é mordaz, é irónico, inconveniente muitas vezes mas é, em igual medida, sentimentalista (acredite) porque só alguém com o coração desarrumado poderá, alguma vez, aspirar a algo mais do que uma vida pacata, mesmo que falemos em aspirações preguiçosas. Ponto assente. 
 
Esta é a história de Florent-Claude Labrouste, com 46 anos de idade, capaz financeiramente fruto do seu trabalho como funcionário do Ministério da Agricultura. Não gosta do seu nome, não gosta de muitas coisas:
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"(...) Deus tinha disposto de mim mas eu não era, não era na verdade, nunca tinha sido nada sessão um cobarde inconsistente, e tinha já quarenta e seis anos e não fora capaz de gerir a minha própria vida, enfim, parecia deveras plausível que a segunda parte da minha existência acabasse por ser, à imagem da primeira, um frouxo e doloroso desabamento."

Entre muitas das coisas constava a namorada japonesa, cerca de vinte anos mais nova. Não gostava, cansou-se, independentemente do sexo até ser bom, havia todo um fastio em torno de uma mulher vazia, afinal. Um vazio que acabou por se tornar num abismo:
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"(...) o número de objectos necessários para manter o seu estatuto de mulher era absolutamente alucinante, as mulheres ignoram-no em geral, mas é uma coisa que desagrada aos homens, que os enoja mesmo, que acaba por lhes dar a sensação de terem adquirido um produto adulterado que só mantém graças a artifícios infinitos (...)."

Será numa viagem com destino a Espanha, na tentativa rogada de passar uns dias de férias com a namorada, que uma viragem parece acontecer na vida deste homem. Aquelas viragens internas que nos bofeteiam, sem prever, para um novo despertar. Serão duas jovens indefesas, quando lhe pedem ajuda com o carro, que o farão sentir-se atingido na idade já firme, no passar do tempo e no vácuo a que tem dedicado toda a sua vida.
 
Este é um claro exemplo do brilhantismo do autor: de uma cena aparentemente despercebida, está criado o vórtice de pensamentos bloqueados de Florent-Claude. Como tudo nesta vida, a importância casa sempre com o pormenor.
 
Em «Serotonina» vivemos o regresso do autor com um tema universal, contudo, redigido pela sua mão firme e pragmática, que nos aponta cruelmente todos os dedos de humilhação que, tantas vezes, nos atacam. Essa couraça de autoproteção, de um ego inflamado que não suporta críticas e, muito menos, suposições sobre uma vida que tomamos como nossa para, mais lá à frente, percebermos o quanto desejaríamos que não fosse só nossa, tão individual:
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"Seria eu capaz de ser feliz na solidão? Não acreditava nisso. Seria capaz de ser feliz no geral? É o tipo de perguntas que, creio, devem evitar fazer-se."

Terá sido Florent-Claude Labrouste, em toda a sua vida, este farrapo que deambula entre passado e presente? Não. Adianto-lhe que não e descobrir o motivo que lhe inflama esta desmotivação tão viva, é o que nos motiva a nós, leitores convictos, a procurar uma resposta. Não fossemos todos tão humanos em que a existência de uma resposta, preferencialmente baseada em factos científicos, de vinte mil trabalhos académicos, seja capaz de nos acalmar não só o ego inflamado, como a alma que se quer sempre pacificada.

Merda para isso. Merda para todas as possíveis respostas. Em Deus. Em nós. No mundo. Há momentos de uma vida, muitas vezes apenas horas, que nos transformam para sempre e mesmo tendo nós a resposta certa na ponta da língua, há todo um abismo que nos seduz em direção contrária. Quem encontrará, jamais, a resposta para os devaneios que nos tornam humanos? Ser-se humano é já a resposta em si mesma. Como viver com isso?
 
E é isto, leitor. É disto que nos fala Houellebecq, sem qualquer pudor e sem qualquer receio de esmagar feridas alheias: a culpa de sermos infelizes é nossa. Como o Padre apregoa nas homilias de Domingo: por minha culpa, minha tão grande culpa.
 
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"(...) não é o futuro, é o passado que nos mata, que volta para nos moer e nos minar, e que acaba finalmente por nos matar."
Como viver com o fardo da culpa, do peso dos dias, do passado que mata?
Tomemos um comprimido.

Para os destemidos e para os cagados desta vida, ler Houellebecq é uma obrigatoriedade. Para assustar uns, para empurrar outros, faça de «Serotonina» um manual de instruções sobre como não morrer enquanto a vida nos pulsa cá dentro.
 


 Com o apoio:
Seja feliz,

Gaveta de Filmes

segunda-feira, 1 de julho de 2019

 
Este é um daqueles exemplos em que temos tudo para um bom filme mas algo falha. Desde as interpretações, algumas pouco credíveis bem como à condução da própria história, «A Vigilante» é um filme que, ainda assim, merece ser visto pelo tema que encerra: a violência doméstica. É um daqueles casos que mesmo com algumas falhas, o conteúdo em si vale e obriga-nos a esse necessário despertar de consciências.



Seja feliz, uma boa semana!
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