Pessoas cocó

quarta-feira, 30 de outubro de 2019

 

Já me tinham falado na existência de pessoas cocó e, ultimamente, tenho vindo a perceber que há um grupo específico de pessoas em que o termo cocó se aplica de forma exemplar, num contexto muito específico: no trânsito.
Quando alguém à nossa frente conduz muito (muito! mesmo muito!) devagar a tendência é ultrapassar, não me diria? Pois bem, eu também o costumo fazer. Esse é o momento em que a pessoa começa a acelerar que nem uma doida ficando a outra pessoa - neste caso, eu - numa aflição de quem não sabe onde, literalmente, se meter. Estas são, para mim, as verdadeiras pessoas cocó. Só uma pessoa muito cocó é que, propositadamente põe em risco a segurança de outro e tudo isto, lamentavelmente, conduzido (passo a redundância) por um ego maior do que si mesmo.

Não é uma questão que me irrite. É uma questão que me entristece.



Seja feliz (e nunca cocó!) 

A mulher entre nós (Greer Hendricks e Sarah Pekkanen)

segunda-feira, 28 de outubro de 2019


Se a minha abordagem a esta história exigisse um título, seria algo como "A vida entre nós e a teoria do caos familiar." Muito pomposo, eu sei. Não me ocorre nada melhor e que possa fazer tanto sentido quando viro a última página deste livro. 

«A mulher entre nós» de Greer Hendricks e Sarah Pekkanen conta-nos a história de Vanessa, confrontada com o o divórcio após dez anos de casamento e que não aceita a coragem do seu ex-marido em refazer a sua vida amorosa, agora, junto de uma mulher dez anos mais nova. Esta mulher, Nellie, está no viço da idade, vive o esplendor de um corpo rijo, sem mácula. Está segura de uma juventude vitalícia. 

Este é um livro de surpresas. Uma teoria do caos muito inesperada. Não falamos propriamente de um bom livro em termos literários, contudo, é uma história que pela sua intrincada linha de acontecimentos, deixa no leitor a urgência de questionar  essa teia que parece urdir sempre em torno de uma teoria do caos familiar.

Eis que «A mulher entre nós» desperta no leitor essa teoria improvisada do caos familiar, bem ao jeito de um castelo de cartas e um vento que se lhe deu. Já parou para pensar no número de vezes em que uma atitude sua, consciente ou inconsciente, se refletiu na vida de alguém? Já parou para pensar nessa fina teia de acontecimentos na qual, eu, você e todos os outros, se entrelaçam na sequência de um destino? Agora aplique toda esta teoria ao sistema familiar e temos reflexão para a vida toda.

Assustador ou abismal? Ambos, eu diria.

As autoras conseguem incutir no leitor a obrigatoriedade de pensar no quanto um gesto pode mudar a vida de alguém, seja esse gesto lançado por bondade ou não. Tantas vezes lançado numa indiferença de quem desconhece. Eis o ponto de toda a história, numa aparente indiferença.

Esta é a história de uma mulher que se sente traída, enganada pelo seu marido e pelo seu corpo que cedeu rapidamente ao avançar dos anos. É uma história sobre o amor e o quanto estamos empenhados em fazer de tudo para vingar o nosso lugar. Mas mais do que tudo isso, este livro fala-nos do quanto somos capazes de nos centrar nas próprias dores desconhecendo, numa indiferença inocente, o quanto alguém vive dor semelhante no reflexo dos nossos próprios atos. 

Independentemente dos assuntos relacionados com o casamento e as suas particularidades, com as fraquezas que cada um tem, com as cedências sempre à espreita para assumirem lugar, esta ideia de teoria do caos provocada, tantas vezes, por quem está ao nosso lado - e sem saber - é, para mim, o aspeto mais promissor e singular deste livro.


É um livro de surpresas, arrisco-me a repetir. O leitor lançado nas duas primeiras partes jamais imaginará o que o aguarda no final. É uma surpresa que se vai revelando, como tudo na vida. O melhor? É que nem sempre aquilo que tomamos como certo, o é, de facto.

Vanessa, Nellie e Richard são prova viva disso mesmo. 
Se está curioso, consegui o meu propósito.
Agora, vá ler. Por favor. 

 


Com o apoio,

megustaleer - SUMA DE LETRAS



Seja feliz,

Fome (Knut Hamsun)

sexta-feira, 25 de outubro de 2019


Quem abrir este livro acompanhará um homem que deambula, perdido em si mesmo, pelas ruas, pelos campos, pelas casas e lojas. Esfomeado. Nunca lhe conheceremos o nome e não é por acaso. 
Quando procuro por significados mais concretos para a palavra «fome», surgem-me definições como "grande vontade de comer" ou "urgência de alimento". E por alimento entende-se sempre "aquilo que se come". Mas nada disto me satisfaz.

Este livro é um desafio concreto para que mergulhe numa história que, inicialmente, lhe comprará a ausência de alguma coisa. Ficará cheio de um nada que é fome mas que nenhuma comida será capaz de matar.

Conhecerá um homem sem nome numa marca clara dessa ausência de si mesmo. Sonha escrever, quase se auto impõe a uma fome forçada e que lhe provoca, vezes sem conta, o desespero do corpo. Apesar da procura incessante por dinheiro, por comida, parece ser essa ausência ao longo de um tortuoso caminho, que o acorda vezes e vezes sem conta para a urgência da vida. É ele quem decide pela fome, pelo sofrimento a que se sujeita.

A fome deste homem, por muito palpável que possa ser, é acima de tudo uma fome que lhe vem da alma. Do intelecto, por vezes, arrogante. O vazio que sente, a deambulação por caminhos tortuosos, a dúvida, o preconceito social espelhado são sintomas de uma alma esfomeada que teima vingar.

Como se alimenta uma alma? 
É aqui que reside toda a urgência que Hamsun desejou escrever. A fome de uma alma não parece ser criteriosa ou padronizada quando pensamos numa forma de a saciar. A fome das almas é pessoal, tão única, tão individual que jamais alguém a poderá matar por nós.

Há quem diga que as almas se alimentam dos sonhos. E também os sonhos só a nós pertencem.
Este personagem decide largar tudo e caminhar. Nele vivem muitos e variados sonhos que, com o passar do tempo, se vão desnutrindo na falta de crença, de motivação, de ímpeto. Do que seja. Uma soma das falhas tão humanas que, na ponta da língua, sempre encontram alguma justificação. Seja a fome agonizante, seja o estômago agora cheio de mais, nada parece saciar verdadeiramente a alma deste homem. Apenas e só o sofrimento imposto.

Ler «Fome» de Knut Hamsun é como entrar num mar de aflições que não são nossas mas que, à força de acompanharmos o trajeto de um homem desconhecido, arrogante, por vezes tolo, empatizamos de tal forma com a sua perplexidade perante o mundo que desejaremos, inequivocamente, conhecer-lhe o destino.

Por «destino» diz-nos o dicionário que se trata de "uma combinação de circunstâncias ou de acontecimentos que influem de um modo inelutável." Perceberá então, caro leitor, como o destino aberto deste homem parecia estar traçado desde o início, que se permitiu sonhar com o nariz empinado e deixou, simplesmente, que o mar o acolhesse. Sem perguntas mas, provavelmente, com muitas respostas futuras às quais, nem eu, nem você, teremos acesso.

«Fome» é considerado um dos romances mais importantes da história literária da Noruega e da Europa, cuja estrutura narrativa é também diferente de tudo o resto, numa espécie de confirmação entre o sonho de ser escritor e as amarguras que o mesmo impõe a quem ousa. Esses esfomeados de alma.




Seja feliz,
e circunstâncias ou de acontecimentos que influem de um modo inelutável.

"destino", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://dicionario.priberam.org/destino [consultado em 24-10-

Suíte Francesa (Irène Némirovsky)

quarta-feira, 23 de outubro de 2019


Este ano assumi um compromisso sério com Irène Nemirovsky. 
«O Baile» foi o primeiro livro que li da autora, já há uns anos. Ficaria a saber, mais tarde, que a história daquele livro foi baseada na relação difícil de Irène com a sua mãe, uma mulher muito concentrada na beleza, no medo de envelhecer e muito distante.

Pormenores à parte, hoje venho falar-lhe de um dos seus livros mais emblemáticos: «Suíte Francesa». A história em torno deste livro é linda a tocante. A ideia inicial da autora era construir um livro dividido em cinco partes, inspirada na estrutura da Quinta Sinfonia de Beethoven. Acredite, este livro tem música do princípio ao fim, tamanha sensibilidade de uma das escritoras, para mim, mais inesquecíveis de sempre. Desculpe se exagero mas, como lhe disse, estou comprometida. Ultimamente são inúmeros os textos e artigos a que me dedico, sobre Irène.

Apesar de inicialmente a ideia do livro se centrar em cinco partes, Irène Némirovsky só conseguiu escrever duas, antes de ser presa em Julho de 1942. Morreu em Auschwitz no mês seguinte. Foi a sua filha, Denise Epstein, que descobriu mais tarde os manuscritos da sua mãe. Por considerar que, eventualmente, se trataria de um difícil diário das memórias de sua mãe, passaria mais tempo ainda até, finalmente, os abrir e descobrir que tinha entre mãos um livro. Este magnífico livro de que hoje eu, você, toda a gente que o entenda, pode ter a (feliz) oportunidade de ler e conhecer.

Este será um texto entusiasmado, desculpe-me mas não o consigo evitar. Irène Némirovsky está a tornar-se numa das minhas escritoras mais admiradas. A sua escrita é nua, despojada. A simplicidade com que tecia as suas histórias, cujas personagens estudava meticulosamente em primeiro lugar, provam que não são precisos muitos artefactos na palavra para que uma mensagem arrebatadora atropele o mais cauteloso leitor.

«Suíte Francesa» é um romance sobre a guerra, sobre o êxodo de Paris após a invasão dos alemães de 1940. Enquanto vivia na pele todo aquele tumulto, Irène escreveu, relatou e expurgou muitos dos medos e preconceitos tantas vezes escondidos pelo medo.

«Tempestade em Junho» e «Dolce» são as duas partes que integram o livro, que se unem entre si, desde a fuga de inúmeros franceses até («Dolce») um momento de história que nos obriga, enquanto leitores, a olhar para dentro e questionar a possibilidade de vislumbrar os soldados alemães como gente. Parece cruel, escrito com esta aparente leviandade, mas acredite que ao ler uma improvável e inacabada história de amor como esta, exige-se uma empatia que nos faz questionar - imagine! - como se sentiriam também eles, soldados alemães, tantos deles sem vontade própria, que mataram e morreram porque alguém lhes diz ter de ser assim.

Talvez por esse mesmo motivo, a escritora acabou por ser alvo de duras críticas, sobretudo pelo preconceito francês e a empatia pelo inimigo. Polémicas à parte, Iréne Némirovsky escreveu uma história com limites quase impossíveis de tamanha sensibilidade, que nos fascina, amedronta, que nos faz desejar que o livro nunca mais termine. Levamos em nós cada uma das personagens, desde a mulher que perdeu o marido em combate e combate agora, na solidão e na pobreza, formas de alimentar o seu bebé de colo. Levamos, para sempre, Lucile: mulher arrebatadora, de uma moralidade que aflige, de um coração comedido pelas linhas de uma História que a obrigou a que assim fosse.

Leia, leia este livro. Nunca foi minha intenção contar esta história em absoluto até porque, para isso, me basta dizer-lhe que a II Grande Guerra Mundial está no centro do livro, numa escrita que se tornou um marco sobre um momento da história que ninguém esquece. Leia este livro. Mesmo que a sua motivação seja, primeiramente, apenas movida pelo enquadramento histórico, acredite que quando começar a ler as primeiras folhas, ficará tão envolvido pela vida destas pessoas, pelo amor que nasce onde menos se espera que quando der por si, não conseguirá regressar.
E vai agradecer por isso.




 O filme foi produzido por Saul Dibb em 2014.
O trailer, aqui:




Até ao momento, poderá também encontrar no blogue as opiniões dos seguintes livros de Irène:

"O Baile", aqui
"O Senhor das Almas", aqui


 💓
Seja feliz,

A arte de viver numa estante

quarta-feira, 16 de outubro de 2019


A Arisca a assumir na plenitude essa arte desejada de se poder viver numa estante.
(risos)



Seja feliz,

Budapeste (Chico Buarque)

quarta-feira, 9 de outubro de 2019


«Budapeste», livro de Chico Buarque, vencedor do Prémio Camões 2019 (Edição Companhia das Letras), obriga-me à clássica comparação das bonecas russas. É uma história com muitas outras dentro. É um livro que nos fala sobre um escritor que, por sua vez, escreve livros para outros. Os livros que escreve parecem ter vida própria e uns laivos, aqui e ali, de premonições. São premonições que se colam a esse mundo um tanto distorcido de José Costa, a nossa personagem principal.

Este homem é um ghost-writer de enorme talento. Chegará um momento, após ter escrito uma biografia encomendada, em que os astros se alinham com a sua vontade, sempre muito incrustada entre momentos de procrastinação e descrença pessoal, para escrever a chamada "boa literatura".

O livro, tal como nós leitores, viajará muito. Após regressar de um congresso de escritores anónimos, José Costa vê-se obrigado a fazer escala em Budapeste. Será neste momento em que a viragem na sua vida se dá da forma mais cómica e desastrosa possível. Chegará um momento, na leitura, em que perdemos o pé e já não sabemos muito bem onde se encontra este homem tão perdido em si mesmo.

«Budapeste» é escrito por mão leve, balanceado entre o típico samba e os tons tão amarelos que Costa viu em Budapeste. São dois lugares, são histórias que se cruzam num livro vivo e um homem também ele dividido em dois, na igual sombra de duas mulheres.

Chico Buarque oferece-nos um livro sobre um homem perdido na sombra de um trabalho seu sem ser, na sombra de uma vida que é sua sem ser: uma soma de ausências que o parecem definir (quase) até à última página.


Ficou curioso?
Então faça o favor de ler!


Com o apoio:




Seja feliz,

Comentários de uma mulher com TOC

segunda-feira, 7 de outubro de 2019


O meu Transtorno Obsessivo-Compulsivo (leve) impele-me à necessidade de desabafar.
Caras mulheres e homens que pintam os lábios de vermelho: aprendam a delinear bem os lábios antes do batom propriamente dito.
Por amor de Cristo Nosso Senhor, há algo de errado comigo (admito) mas é uma das coisas que mais me tira do sério. Ao invés de me concentrar na pessoa que conversa comigo, estou a roer as unhas da ansiedade (a minha ansiedade tem unhas, sim senhor!) e a fazer um esforço monstruoso para não ir lá, com os meus dedos, corrigir. Não. Nunca fui tão longe, o que ainda me permite ter esperança em mim mesma. (risos).



Seja feliz, boa semana!

Anjos (Denis Johnson)

quinta-feira, 3 de outubro de 2019


«Anjos», o aclamado primeiro romance de Denis Johnson, é um livro escrito à mão da violência.
Jamie Mays, uma das personagens centrais do livro, é uma mulher que decide fugir do marido que a traiu, levando consigo as duas filhas menores. Será numa viagem de autocarro que, na imprevisibilidade de Deus, do destino ou do que lhe queiramos chamar, conhecerá Bill Houston. Este homem, ex-oficial da marinha, traz também com ele a sombra de um divórcio mal resolvida. Já esteve preso, levando uma obscura e secreta vida que o coloca sempre na margem da sobrevivência.

Essa será, também, a nova vida de Jamie. O amor improvisado ganha contornos nesta que é uma relação, eu diria, acomodada às circunstâncias tão similares de ambos. São duas pessoas que acabam unidas pelos seus próprios demónios, numa procura de um anjo capaz de lhe levar tamanho desespero.

É também o desespero a grande marca neste primeiro livro do autor (falecido em 2017). Todas as personagens vivem aqui num desespero comum. O desespero da não aceitação, da peça fora do jogo, da carta fora do baralho. Desespero e desamparo são duas formas de retratar, cruamente, estas personagens que apenas parecem encontrar solução no mundo obscuro do crime.

De forte impacto, escrito de forma irrepreensível, «Anjos» é um livro capaz de nos fazer reflectir sobre a tendência desesperada de sucumbir à violência como a única resposta possível ao medo de ser e estar num mundo que não se ajusta.


💓

Seja feliz,

Que queres compreender?

terça-feira, 1 de outubro de 2019

"- Que queres compreender? Não há nada a compreender, disse ele, esforçando-se por acalmá-la. - Há leis que regem o mundo e que não são feitas nem para nós nem contra nós. Quando a tempestade rebenta, não culpas ninguém, sabes que o relâmpago é o resultado de duas cargas eléctricas de sinal contrário, as nuvens não te conhecem. Não podes censurar-lhes nada. Aliás, seria ridículo, elas não compreenderiam."

Irène Némirovsky | «Suite Francesa»

 💓

Que livro! Que história! Que tudo!
O meu entusiasmo não se acalma.
Estou a adorar este livro.


Seja feliz,
CopyRight © | Theme Designed By Hello Manhattan