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segunda-feira, 16 de março de 2020

Vai e põe uma sentinela (Harper Lee)


Harper Lee não queria que este livro fosse divulgado. São muitas as notícias que correram em torno da sua publicação, em 2014, numa fase em que a saúde da escritora era muito frágil e, segundo consta, sem discernimento para ser capaz de tomar decisões.

Nesse seguimento, com ou sem a vontade de autora (algo que nunca saberemos plenamente), o livro chegou às livrarias. Depois de o ler, senti que Harper Lee, apesar deste ter sido o primeiro livro que escreveu, desejava intimamente manter a inocência e o encantamento da jovem Scout, para sempre.

Porquê que digo isto? Porque neste livro, Scout é apresentada ao mundo real, à vida tal como ela (supostamente) é, a um enorme e belíssimo exercício de consciência.

Não me entenda mal. Este livro só comprova o talento singular de uma mulher que em tão pouco, disse tudo. De forma derradeira mas, acima de tudo, da forma mais bela.

"O sermão de hoje é de Isaías, capítulo vinte e um, versículo seis: 
Porque assim me disse o Senhor:
Vai e põe uma sentinela que anuncie tudo o que vir!"

A história decorre vinte anos depois do cenário vivido aquando da infância de Scout, em Maycomb. A jovem, agora a viver em Nova Iorque, regressa à sua terra nas férias de Verão. Sente-se estrangeira na própria casa, na própria terra, que continua a girar mesmo quando ela não está. Ainda assim, sente que é ali que o coração lhe pertence, cujas memórias da infância lhe dão maior certeza e a nostalgia dos que desejam que a vida pare no único momento em que se sentiram, verdadeiramente, livres.

À semelhança de quando era pequena e se escapulia para as assembleias da terra, fará o mesmo agora jovem mulher. E é nesse momento que a história entra num crescendo fazendo Scout pôr em causa a sua educação, os seus valores e, de forma poderosa, o amor e admiração que sempre sentiu pelo seu pai.

Por muito que pudesse escrever em torno desta história que nos chega numa perspectiva totalmente diferente do passado, creio que o desenvolvimento de uma consciência individual é o assunto primordial, é o que realmente brilha de início ao fim.

Custa muito perceber que os anos que passam por nós acabam, muitas vezes, por apagar a inocência e o encantamento das histórias do passado. Custa encarar a pressa dos dias para perceber que, afinal, o passado era feito de outra cor, que a vida não se vivia no seguimento esperado da cordialidade, da aceitação e da igualdade.

Neste livro, Harper Lee mostra-nos uma Scout renovada, enquanto pessoa e mulher. Há uma sentinela que desperta, em prol de si mesma e através das sentinelas dos seus familiares que, em conjunto, a empurram para que, de uma vez, aprenda a voar por si mesma.

"(...) Enquanto crescias e já em adulta, confundiste o teu pai com Deus. Nunca o viste como um homem, com o coração e os defeitos próprios de um homem; verdade seja dita que não seria fácil, pois são poucos os erros que ele comete, mas comete-os como todos nós. Foste uma aleijada emocional, apoiavas-te nele, era a ele que ias buscar respostas, pressupondo que as tuas seriam sempre as dele." (p.229)
Para os mais emotivos, ler «Vai e Põe uma Sentinela» poderá provocar uma dor de alma, sobretudo, pelo impacto que «Mataram a Cotovia» tem, pela infância e pela personagem tão querida em que Scout se tornou. Assim como Atticus. No entanto, limpando a tendência aos corações moles, este livro tem uma beleza igualmente ímpar,  a beleza dos recomeços e o romper com as cortinas que sempre nos enfeitam os olhos na infância.

Scout abre os olhos para uma nova realidade e que, ao contrário do que muitos advogam, não tem necessariamente de ser mau nem, tão pouco, fazer de um ou outro, o mau da fita. Quando ler, talvez entenda isto que lhe escrevo mas, para já, fique com a ideia de que esta é uma história sobre o poder do pensamento coletivo, da desigualdade e, por fim, da individualidade tão necessária para enxergar melhor. Falo de uma sentinela, uma sentinela chamada consciência, a única luz própria capaz de decidir os passos que desejamos trilhar e a pessoa em quem nos desejamos tornar.

Recomendo.




Seja feliz,

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