Tudo é possível (Elizabeth Strout)

quarta-feira, 28 de março de 2018

O enredo do livro «O meu nome é Lucy Barton» reaparece em «Tudo é possível», para nos mostrar, agora, as pessoas mais significativas que, de uma forma ou de outra, pautaram a vida da protagonista.
 

Falo-lhe de um livro sobre a vida. Sobre pessoas que, a partir de Lucy Barton, nos soltam os fios das suas próprias histórias, sobre as suas vidas nunca semelhantes ao projeto idealizado. Surgem-nos, assim, sublinhadas pelas mesmas dores, ausências e sentimentos de uma perda que não se explica.

O leitor saberá que Lucy Barton era a menina pobre, com uma mãe negligente e pai ausente. Saberá também que fruto de tamanho desmazelo, fugiu para Nova Iorque, para nunca mais voltar. Para ignorar um passado, uma vida mal arquitetada, um futuro incerto.
 
Naquele lugar que lhe escreveu a infância magoada, ficaram os outros, que também cresceram, amadureceram, envelheceram. Sem sair do lugar. Entre fios e fios de histórias, conheceremos as mágoas intercaladas por momentos de alguma leveza, a vida aberta como as janelas em Agosto, numa espera, numa constante espera.
Este não é só e apenas um livro sobre a vida, é um livro sobre a vida e as suas possibilidades.
 
"Não voltes. Não te cases. Não tenhas filhos. Todas essas coisas irão trazer-te sofrimento."
 
O ponto comum de todas estas pessoas é, tão somente, a possibilidade. A ideia de que na vida tudo é, realmente, possível. Desde a mulher que recebe os hóspedes, imprimindo-lhe a saudade de um homem em específico, que por sua vez ama uma prostituta entregue à sua própria sorte, desde o pai que esconde segredos e aponta dedos de vergonha à filha, que por sua vez se tenta libertar, pela vida fora, de amarras penhoradas pelos erros do próprio pai.
 
Em «Tudo é possível» o leitor encontrará esse mosaico disperso de gentes comuns. Um teatro de senhoras e senhores Scrooge (Personagem do "Conto de Natal", de Charles Dickens), afugentando os espíritos do passado, mas sempre, com um olho no horizonte. Poderá ser possível, ao virar da próxima esquina, que tudo comece, finalmente, a fazer sentido.
 
Um livro de todos os dias, a provar-nos fielmente a complexidade de que todos nós somos feitos e, na mesma medida, a comprovar que ninguém está, verdadeiramente, só. Elizabeth Strout, através de personagens tão genuínas, oferece-nos nessa elegância que a define, um mar de possibilidades.
Saia à rua. Viva um pouco mais. Torne possível.
 
 
 
 
Com o estimado apoio,
 
 
 
Seja feliz,

À espera no centeio (J. D. Salinger)

segunda-feira, 26 de março de 2018

Se procurar a definição de «adolescência», o Dicionário de Psicologia (Roland Doron e Françoise Parot, Climepsi Editores), dir-lhe-á, segundo E. Jalley e J. Selosse, o seguinte: "A adolescência é uma fase de reestruturação afectiva e intelectual da personalidade, um processo de individuação e de metabolização das transformações fisiológicas ligadas à integração do corpo sexuado. Nos dias de hoje, é difícil precisarmos o seu fim, na medida em que são inúmeros os casos de adolescentes prolongados que continuam a trabalhar a sua personalização (...)".

Salinger com o clássico incontornável, «À espera no centeio» traz a lume as inconstâncias da adolescência, através do inesquecível Holden Caulfield, expulso mais uma vez dos colégios que frequenta pela sua má conduta, indiferença e desempenho nulo.
 
A história deste livro desenrola-se no momento específico em que Holden é, novamente, expulso e os dias que se seguem até os pais receberem a carta com o seu veredito. Ao invés de rumar até casa, lidando com as possíveis e esperadas consequências, o jovem decide viajar até Nova Iorque aproveitando a liberdade daqueles parcos dias.
 
Será essa viagem o centro de toda a história. A história de um adolescente, as suas mágoas, os arrependimentos, a necessidade de liberdade, as urgências desconhecidas de um corpo que lhe reclama constantemente, as amizades, os fracassos, as emoções inesperadas, as decisões que teimam em imperar.
 
Durante dia e noite, acompanhamos Holden à procura de si mesmo. Através dos bares, impróprios para a sua idade, as amizades que teima fazer, ao sexo que se impõe mas que o amedronta e aos medos que qualquer jovem daquela idade tem, sem o querer admitir.
 
As convicções fortes são, também elas, características desta idade. Holden mantém-se firme na ideia de jamais voltar para casa. Deseja viver por si mesmo, com o dinheiro que virá a ganhar não sabe onde, um desejo pela autonomia a demarcar essa adolescência de pedra e cal. No entanto, o peso da nostalgia pelo irmão já falecido, e a saudade premente da sua irmã mais nova, Phoebe, fazem tremer-lhe o chão, agora, pouco firme de convicções.
 
A adolescência é esse lugar incerto das certezas aparentes. Holden Caulfield personifica um tempo, uma fase, um lugar demarcado pela rebeldia de quem ainda não se encontrou.
O livro de Salinger, desde a sua primeira publicação em 1951, mantém a frescura dos tempos atuais, provando e afirmando a adolescência como um tempo tortuoso que projeta o futuro, lá mais à frente.
 
Um livro magnífico sobre um adolescente anti-herói, numa procura desenfreada de si mesmo. Uma história a fazer-nos refletir na adolescência como um manto que, não só nos atravessa a todos, como muitas vezes, se mantém firme nas convicções futuras, sem desaparecer por completo. Não sonhamos todos, novos e velhos, com uma resposta que nos oriente de uma vez por todas?
Talvez se trate desse constante "trabalho de personalização", como afirmam os psicólogos.
 
Recomendo com ambas as mãos.
 
 
 
Boas leituras,

Andamos a ler

domingo, 25 de março de 2018


«Tudo é possível», de Elizabeth Strout, é a leitura do momento
 e a continuação de «O meu nome é Lucy Barton»
 
 
 
Seja feliz,

A filha do optimista (Eudora Welty)

sexta-feira, 23 de março de 2018


«A Filha do Optimista», de Eudora Welty, é um pequeno grande livro sobre o poder da família, das reminiscências, do voltar ao passado e ao encontro de questões sem respostas aparentes.

A história concentra-se na relação de Laurel com o seu pai, o conhecido (e optimista!) juiz, no momento em que este adoece, sujeito a uma cirurgia ocular. A narrativa desenvolve-se no sul dos Estados Unidos, tendo Laurel largado tudo - residente no norte do país - para acompanhar o pai num dos seus piores momentos.

É durante a estadia do juiz no Hospital, que Laurel tem a oportunidade de travar um conhecimento mais próximo com Fay, a recém-noiva de seu pai, muitos anos mais nova. Falamos de uma mulher provinciana, cujos costumes e valores em nada se coadunavam com os de Laurel, muito menos ainda com o seu próprio pai.

Após a morte do juiz e o questionamento constante sem resposta sobre a inusitada relação de Fay com o seu pai, Laurel cairá numa reflexão profunda sobre a sua própria vida, a sua infância numa casa que, agora, está longe de ser a sua, a nostalgia de tempos que não voltam, a saudade que se mantém firme e o futuro incerto, que a oprime.

Um livro direto, sem subterfúgios, sobre o poder da família, as referências parentais, o peso do passado naquilo que de bom e mau sempre tem e, ainda assim, sobre a esperança de um futuro mais consciente, mais presente, mais perto de se lhe agarrar com ambas as mãos.
 

Com «A Filha do Optimista», Eudora Welty foi vencedora do Prémio Pulitzer em 1973.
Um livro, e uma autora, que não deve descurar.


Seja feliz,

Aqui Estou (Jonathan S. Foer)

terça-feira, 20 de março de 2018


"Aqui estou" é o mais recente livro do autor Jonathan S. Foer, largamente conhecido pela sua obra «Extremamente alto e incrivelmente perto".
No presente, o autor vem dar-nos a conhecer uma família judaica, o casal Jacob e Julia e os seus três filhos: Sam, Max e Benjy.
Como todas as famílias, o tempo parece moldar comportamentos e estipular hábitos, rapidamente incutidos, tornando a dinâmica familiar previsível, controlada numa rotina que não tarda a acusar o cansaço dos dias.
Jacob é escritor, considerado por si mesmo um escritor fracassado, longe da realização a que sempre almejou e a que, igualmente, nunca desistiu. Contudo, não falamos propriamente em resiliência, método ou disciplina: Jacob é um sonhador, desejoso de ser amado pelo mundo inteiro, vivendo em nuvens acima de qualquer céu. Uma utopia com duas pernas, a deambular por uma casa cuja disciplina depende de Julia, com um Jacob a comprar o amor, desesperado, dos filhos.

Quando Julia encontra, sem querer (não fossem todas as más notícias descobertas nessa nebulosidade de quem não o queria), um segundo telemóvel de Jacob com mensagens sexuais explicitas, o cansaço dos dias impera, a vontade de desistir assume-se e estão reunidas as condições necessárias à destruição de uma família.

O brinde deste livro de Jonathan Foer é o paralelismo entre a destruição de uma família, as suas raízes, e o conflito iasrelo-palestino (este presente apenas num sentido figurado). Jacob é a personificação do sonho como um sofá velho, de onde se sai apenas em pensamento. Ele é o escritor que um dia será, o pai que um dia será, um marido que um dia será.

Nesse mesmo paralelismo o leitor será obrigado a refletir nas barreiras pouco definidas dos tempos atuais, o conflito generalizado e a falta de comunicação. Este é um livro feito de pessoas que se afastam sem saber porquê, que se engolem a si mesmas, aos seus sonhos, e definham em prol de uma família, agora, transformada numa carcaça de emoções por digerir. Muitas delas, já fora da validade.

«Aqui estou» disse Abraão. A prontidão da resposta, mais do que o tão conhecido sacrifício que Deus lhe ordenara, é também um paralelismo com Jacob: que não sabe estar para lá das suas próprias necessidades, seja de amor, seja de reconhecimento, seja lá do que for.


Um livro sobre a família, sobre as pessoas, sobre o amor descuidado, sobre o desmazelo e o sonho perdido nas gavetas do fundo. O livro de Jonathan Foer aponta o dedo a essa fragilidade das relações humanas e a urgência, mesmo que mascarada, de contrariarmos a tendência de se lhe escapar. Porque é difícil ou, tão somente, porque não valerá o esforço. Será?

 
Com o estimado apoio,
 
 

 
Seja feliz,

Ler Eudora Welty


 Ler Eudora Welty é ter a certeza de que não se sai defraudado.
Gosto mesmo desta senhora.
 
 
Boas leituras,


Raparigas. E rebeldes

quarta-feira, 14 de março de 2018

 
Chegou o segundo volume de uma coleção repleta de mulheres inesquecíveis.
Vamos ler?
 
 
Uma novidade Nuvem de Tinta,
Penguin Random House Grupo Editorial

 
 
Seja feliz,

Jalan Jalan (Afonso Cruz)

segunda-feira, 12 de março de 2018


 Vamos definir o mais recente livro de Afonso Cruz, «Jalan Jalan», como duas viagens em si mesmo: de dentro para fora, de fora para dentro.

A relevância de uma viagem é inequívoca, nem merece argumentos em contrário. A mochila às costas, os sapatos apropriados, a roupa confortável, o essencial que se torna tudo no quase nada que se leva.

Depois, temos aquilo que a própria jornada nos oferece: o alimento da experiência como antídoto para almas mais agitadas, perdidas e descrentes.

A grande raiz que o leitor retirará deste passeio é, sobretudo, a viagem interior que urge em todos nós. A viagem que Afonso Cruz nos propõe é, precisamente, essa reflexão interior que mais não é do que o confronto com o espelho dos nossos anseios. Anseios esses que, esperemos nós, nos façam saltar para o desconhecido, como a Alice no País das Maravilhas.

«Jalan Jalan» não é, apenas e só, um livro sobre viagens. Dentro dessa grande máxima, o leitor encontrará ramificações belas em que a mitologia, a filosofia, a poesia, o amor, a resiliência e a esperança, assumem o lugar da frente de qualquer carro ou autocarro em que decida, pois então, aventurar-se a viajar para dentro de si mesmo.

Um livro desafiador, «Jalan Jalan», cujo significado é passear em indonésio, levará qualquer leitor ao reencontro da sua consciência, esse lugar feito de sonhos (ainda) por cumprir.


Com o apoio:
 



 
Boa leitura. Boa viagem.

Sofás e afins

sexta-feira, 9 de março de 2018

Bom fim-de-semana, com mantinhas e camisolas.
 
Seja feliz,

A gravitação do amor (Sara Stridsberg)

domingo, 4 de março de 2018


«A gravitação do amor», de Sara Stridsberg, é uma história feita de sombra, de arrependimento, de pragas rogadas, de dor, de arranhões na pele, de becos sem saída, do terror por um futuro que não tem vislumbre, pelo medo de amar, pelo medo de ser amado. Uma espécie de doença mental que começa no coração, e por lá fica. A corroer, a pedir mais, a alimentar-se da solidão desenhada a medo. Esse medo de quem quer dar tudo, de quem se quer dar todo e, pelo caminho, se perde na intenção.
 
Há uma praga que nos habita, um desejo chamado salvação. Se não nos podemos salvar, que seja pelo outro. Eu salvo-te, para me salvares de mim mesma. Das sombras herdadas.
 
Jackie transforma a sua vida no desejo de salvar um pai que não a deseja, não a ama, não vive por ninguém, um corpo de alma deslocada, a vaguear apenas e só no desejo de uma morte tranquila, no mar, na incerteza.
 
Internado no Hospital Psiquiátrico Beckomberga, onde recebe as visitas de Jackie, Jim deambula entre passado, presente e um futuro descartado. Jackie, uma menina prestes a fazer 14 anos, absorve desenfreadamente essa ausência de pai. Todo aquele mundo opressivo do hospital, entre a enfermeira Inger Vogel, o psiquiatra ave de rapina, Edvard Winterson e Sabina, amor de perdição do pai, começa a enraizar-se em si mesma, nas visitas diárias cada vez mais longas. Um encantamento que nasce. Um hospital que é uma personagem em si mesma, um edifício repleto de uma história, de uma vida que não nasceu com os alicerces previamente arquitetados. Um lugar onde se prende a dor e a solidão, uma resposta em si mesma pela inércia de quem decide nada fazer.
 
E Jim nada quer fazer. Quer apenas e tão só morrer numa dor desconhecida. Nessa mesma dor cresce Jackie, que deambula pelo espaço, que cria raízes como as árvores que admira, que deseja também ela nunca sair dali. Pelo menos, sair dali sem uma solução aparente.
 
A vida passa. Os dias correm. O mundo nasce de novo a cada dia. Fica o passado que parece, sempre, prevalecer quando a ausência de uma resposta também teima em ficar.
 
A relação de Jackie com o pai transformará, para sempre, a sua forma de viver. As sombras herdadas, a escuridão de um pai ausente, parecem prevalecer independentemente das promessas de que seria a luz prometida. O nascimento de Jackie, coroado pela esperança, apenas lhe ofereceu o peso de uma responsabilidade que ninguém, no mundo, jamais deveria assumir.
 
Jackie é a soma e a subtração de uma vida pautada pelo abandono e marcada por um lugar que aloja todas as tristezas do mundo. De tão pequeno e sombrio, esse lugar torna-se, paradoxalmente, o ideal para, também ela, fugir de si mesma. É confortável, já nada lhe exige.
 
E a vida continuará por aí fora.
Fica o medo, com bolor, de ser amado.
 
O livro de Sara Stridsberg, para lá da beleza da escrita desprendida e dispersa, vem mostrar-nos de uma forma verdadeiramente delicada, e dolorosa, o quanto a falta de amor é a doença mental mais poderosa do mundo. Todas as outras parecem ramificações dessa mesma falta.
 
 
 
Uma obra de rara beleza, «A gravitação do amor» deveria ser uma leitura obrigatória para quem está morto por dentro, distraído com os dias que passam, com a vida que teima em não começar, na sombra de quem, igualmente distraído, se foi embora.
 
 
Seja feliz,
 
 
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