A ler Miguel Araújo

quarta-feira, 31 de outubro de 2018



Seja feliz,

Thaïs (Anatole France)

quinta-feira, 25 de outubro de 2018


"Anatole France, pseudónimo de Anatole-François Thibault ou também Jacques-Anatole-François Thibault, com acréscimo do nome do seu padrinho, Jacques Charavay, nasceu em Paris, no dia 16 de abril de 1844. Ao longo da vida desenvolveu uma apreciável atividade literária, cuja qualidade veio a ser consagrada com a atribuição do Prémio Nobel da Literatura em 1921, mas foi igualmente um militante ativo nos domínios social e político, numa época conturbada da história europeia.
No período em que decorreu a formação escolar de Anatole France, era habitual a leitura de textos hagiográficos, podendo mesmo estes constituir matéria curricular, nomeadamente em estabelecimentos de ensino católico, como aquele que frequentou para obter a instrução secundária, o Collège Stanislas, em Paris (...)." *
As influências recebidas ao longo da sua educação, em muito contribuíram para a construção daquele que é considerado o seu livro mais notável, Thaïs, e de que hoje falamos.
A história decorre no Egito, no deserto,  numa vida pautada pelo desenvolvimento espiritual e, de outro lado, na cidade de Alexandria, por outro tipo de vida em que os desejos carnais tendem a crescer e a serem encarados como impuros e pecaminosos.
Anatole France destaca nesta obra o conflito existente entre os desejos carnais, intimamente ligado ao inferno e às tentações e, do outro lado, o amor divino.
Esta é assim a história de um monge que vê na mulher a fonte do pecado e da desgraça. Quando encontra Thaïs, jovem atriz que sem pejo se entrega a qualquer homem, decide então dedicar os esforços de toda a sua vida, na conversão daquela mulher  à fé cristã.
Há crueldade na escrita de Anatole France. A crueldade e a crueza com que declara os sentimentos convictos do monge tendem a mirrar o coração como uma ameixa seca. Seco nas dúvidas que, para todo o sempre, vão imperar quando o tema grita religião.A devoção, a entrega espiritual deste homem transcende tudo e qualquer coisa, levando-o onde? Que nome terá esse lugar onde a devoção, a entrega cega e amor incondicional a Deus impera?
"Amo-te Thaïs! Amo-te mais do que a minha vida e a mim mesmo. Por ti, deixei o saudoso deserto, por ti, os meus lábios, votados ao silêncio, pronunciarão palavras profanas; por ti, vi aquilo que não deveria ver, ouvi o que me fora proibido escutar; por ti, a minha alma conheceu a aflição, o meu coração abriu-se e dele jorraram secretos pensamentos, semelhantes às nascentes onde vêm beber as pombas; por ti, caminhei dia e noite sobre areias povoadas de larvas e vampiros; por ti pousei o meu pé nu em cima de víboras e escorpiões! Sim! Amo-te, mas não como esses homens que, inflamados pelo desejo da carne, vêm até ti parecendo lobos vorazes ou touros furiosos. Desejam-te do mesmo modo que a gazela é desejada pelo leão. Os seus amores carnívoros devoram-te até à alma, mulher! Eu, pelo contrário, amo-te em espírito e verdade, amo-te em Deus e pelos séculos dos séculos; o que por ti sinto no meu peito chama-se ardor verdadeiro e divina caridade. Prometo-te algo de melhor do que a embriaguez florida e os sonhos de uma noite breve. Prometo-te santas refeições e bodas celestes. A felicidade que te venho trazer não terminará nunca, é inaudita e de tal modo inefável que, se os homens felizes deste mundo dela pudessem conhecer apenas um vislumbre, imediatamente morreriam de espanto." | p.94
A questão que se impõe é: até quando o fanatismo deste homem, numa entrega devota a Deus sob todas as coisas, perdurará? Até quando, após terminada a sua grande missão, perdurará a sensação de uma entrega plena?
A figura da mulher como imagem do pecado mais profundo, mistura-se nessa dualidade tão religiosa - o certo e o errado, a luz e a sombra - resultando num livro intemporal, na sombra desse peso feito das "(...) intransigências de dogmas milenários da Igreja." *
"Ele morreu, mas viveu (...), e tu morrerás sem teres vivido." p.199
Gostei muito. «Thaïs» é um sério candidato ao melhor livro que li este ano. Não deixe de o ler. Não se desanime pelo aparente tema rotineiro. É antes urgente continuar a pensar a religião como um todo, potenciador de comportamentos tão díspares entre todos nós sem, na verdade, entendermos as razões mais profundas de cada um deles.
*Fonte de pesquisa: Projeto de Investigação de Palmira Morais Rocha de Almeida | "Ópera Thaïs" - Exibições no Teatro de São Carlos no primeiro quartel do século XX e a receção crítico-valorativa na imprensa portuguesa. (Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa).
Boas leituras,


Gosto quando está sol

quarta-feira, 24 de outubro de 2018

 
In «Jesus Cristo bebia cerveja» | Afonso Cruz
 

Derreter

segunda-feira, 22 de outubro de 2018



Imagem retirada do livro «Soppy»

 
Por mais duro que alguém seja, derreterá no fogo do amor.
 Se não derreter é porque o fogo não é bastante forte.
 
Gandhi
 
 
 
 
Uma boa semana,

Jesus Cristo bebia cerveja (Afonso Cruz)

sexta-feira, 19 de outubro de 2018


Aparentemente, Jesus Cristo bebe cerveja. E isso não o deveria chocar, a si ou a mim. A ninguém. Jesus Cristo bebe cerveja como todos nós, e nada nisso apavora. Parece acalmar os nervos dos que padecem das ansiedades de serem os melhores. De se revirarem do avesso na procura desenfreada de perfeição.
O livro de Afonso Cruz é feito de gentes comuns (não as são todas?), desesperadas por um lugar mais seguro, por um arnês capaz de lhe garantir a força do impacto ao cair, ao cair na iminência de um sonho ausente. Uma Jerusalém construída à imagem de quem não pode sair do lugar.
Esta é a história de Rosa, menina que se tornará mulher de curvas bonitas, rosto que prende, sobrancelhas grossas que lhe sublinham a negrito um olhar de segredos e sonhos.
Num Alentejo quente e perdido, Rosa vê o seu avô atirar-se a um poço, levado pelo peso de culpas deslocadas, e injustas, da morte de alguém. Pagou na mesma moeda, matou-se para não viver com uma morte viva ao pé.
A mãe, mãos frias de porcelana, refugia-se na sombra de uma juventude e sangue quente, de quem ama com o corpo como prioridade. Amou o cheiro a homem do seu pai, corpo seco e desequilibrado. Dizem que lhe foram os jeitos rudes e os aromas do campo a conquistarem-lhe o gelo que lhe pulsou, sempre, no peito.
Abandonada, Rosa ficaria entregue à sua avó. Dali nasce um amor responsável, de quem cuida o que só há a cuidar, de quem procura um alento na miséria, na fome, num pouco de desilusão a cada noite.
 
Quem lê «Jesus Cristo bebia cerveja» visita um lugar, também ele, comum. Um lugar perdido, feito de gente que se procura, se revê nas dores alheias, nos sonhos que vão nascendo na mesma medida que vão morrendo. Há uma linha que divide esses polos. Chamam-lhe arrependimento. O arrependimento de quem não soube morrer na paz simples de um amor certo, à medida. Perfeito na imperfeição. Mas a essas gentes comuns, essa raça humana tão comum e banal, nada lhes parece chegar. Ficaremos, pois então, entregues à nostalgia. Ao que já foi. Ao que não volta. Aos desafortunados que morrem antes da vida acabar.
 
 
 
Seja feliz,

Chuva feliz

segunda-feira, 15 de outubro de 2018

Quero morar numa cidade onde se sonha com chuva. Num mundo onde chover é a maior felicidade. E onde todos chovemos.

Mia Couto
 
 
 
Não reclame tanto. Viva, e seja feliz.


O Curso do Amor (Alain de Botton)

quarta-feira, 10 de outubro de 2018

 
Ler Alain de Botton é saber, de antemão, que nos esperam lições certeiras, previsíveis, mas que ainda assim nos custam sempre a enfrentar. Como a velha máxima de confronto direto com os nossos demónios: nunca é fácil, mas é sempre necessário.
 
Em «O Curso do Amor», o autor convida-nos a espreitar o nascimento, crescimento e maturidade de um jovem casal. Desde o primeiro olhar, o primeiro momento, a primeira conversa, até ao momento em que decidem ser a hora certa de partilhar uma casa, casando e vivendo em (esperada) união.
 
Eis que surge, muito rapidamente, a velha máxima de que os anos de um casamento tendem a deixá-lo mais pesado de carregar. O tempo, esse vilão. Após essa constatação, eis que o surgimento dos filhos, o momento mais alto de partilha e intimidade entre duas pessoas, tende igualmente a desgastar as já frágeis raízes de um casamento que, até então, parecia perfeito.
 
Ao longo deste livro o leitor será confrontado com todas as dificuldades, inerentes, numa relação amorosa. Desde a distância cravada pelo avançar dos anos, as dificuldades profissionais que sempre se refletem na forma de amar, o nascimento dos filhos e os desafios adjacentes até ao, supostamente, esperado adultério. O adultério parece sempre surgir como uma lufada de desculpas de quem não quis imiscuir-se mais nas dificuldades e nas distâncias de um casamento que já só se vê ao longe. Uma espécie de pontinho negro em que as pessoas se transformam no momento em que caminham em frente e nós, ali especados, a vemos desaparecer. A tornar-se nesse pontinho pequenino, sempre negro, cada vez mais e mais minúsculo.
 
"Mas o que realmente acentua a intensidade é um novo pensamento que surge sempre que uma tensão aflora: como se pode suportar isto ao longo de uma vida inteira?"
Para aquele homem parecia não ser possível. Parecia cada vez mais distante da sua intenção: estar casado, ser pai, e ser feliz. Até então, o adultério seria esse renascer de intimidade com alguém. Diríamos, então, uma confirmação de que ainda é possível ser atraente e ser atraído por um rabo de saia que a ergue, resoluta, a pedir-lhe a confirmação de um pénis que, também ele, ainda se ergue.

Há, no entanto, um pesado sentimento de culpa e um amuo que se lhe acompanha. Há uma confirmação de ser promíscuo e de ter praticado o ato mais hediondo num casamento. Resta assim a dúvida: contar ou não contar? Na semelhança dos acesos debates em torno do suicídio: ato de coragem ou de cobardia? Também neste ponto Alain de Botton nos ajuda a encarar as próprias falhas e essa tendência de acionar um tubo de espace aos próprio erros. Contar ou não contar? Culpar a si mesmo, culpar o outro? Chega assim, o momento errante dos amuos escondidos.

"A própria necessidade de explicar constitui o âmago do insulto: se o parceiro precisa de uma explicação, ele ou ela não é digno claramente de a receber. Deveríamos acrescentar: é um privilégio ser destinatário de um amuo; significa que a outra pessoa nos respeita e confia em nós o suficiente para pensar que devíamos compreender a sua muda mágoa. É um dos mais estranhos dons do amor."

Entre amuos, culpas partilhadas, ressentimentos, mágoas e doses de nostalgia, o leitor continua a acompanhar este jovem casal, partilhando dores com um e com outro. A tendência de tomar um partido está bem longe, atirada para dentro de uma gaveta. Alain de Botton enfatiza, magistralmente, esse erro de tomar partidos numa relação, de assumirmos as nossas dores como não só as mais genuínas como, também, as mais certas. O amuo certo que o outro tem de, forçosamente, compreender e acalentar.
 
"É uma coisa maravilhosa viver num mundo onde tanta gente é amável para com as crianças. Seria ainda melhor se vivêssemos num mundo em que fôssemos um bocadinho mais amáveis para com os lados infantis de uns e outros entre nós."
 
Por fim, o autor aponta-nos o mais óbvio e menos fácil de alcançar: há uma espécie de segredo para o sucesso de uma relação. Sim, uma relação pode sobreviver, pode crescer, pode amadurecer. Pode viver condenada a um sucesso, cada vez maior, sim. O segredo, se é que é um segredo, é constatarmos a possibilidade de uma relação no momento em que nos desvinculamos da falsa ideia de perfeição. Um casamento torna-se perfeito no momento em que, a ambos, lhes cai a necessidade de cumprir um cardápio extenuante de provas do seu amor e de ser uma pessoa incólume, sem segredos ou defeitos. O seu amor é imperfeito e é, precisamente nessas imperfeições, no lado infantil que sempre aflorará um dia ou outro, que duas pessoas podem sentir-se, final e derradeiramente, unidas. Preparadas para mais um desafio. E outro que virá, amanhã ou depois.
 
"(...) o amor é uma arte, não apenas um entusiasmo."

Seja feliz,

A Canção de Dorotea (Rosa Regàs)

segunda-feira, 8 de outubro de 2018


Rosa Regás nasceu em Barcelona no ano de 1933. Com a «A Canção de Dorotea» arrecadou o Prémio Planeta, em 2001.
Esta leitura foi uma agradável e inesperada surpresa. Desde a escrita fluida e direta, a história em si e as particularidades de cada personagem, conquistam qualquer leitor ainda bem antes das clássicas cinquenta páginas.
Nesta história conheceremos Aurelia, proprietária de uma casa de campo em Espanha, e Adelita, a caseira responsável por manter a casa, e o jardim, na mais impecável ordem. Será a relação inesperada destas duas mulheres que fará crescer uma história que obrigará cada uma delas a confrontar-se com os seus próprios demónios, revistando o passado e questionando o futuro.
Adelita, de corpo estranho e disforme, pequena mas resoluta, com língua afiada, olha Aurelia nos olhos quando mente sem piedade. Quando lhe conta verdades duras, desvia o olhar para o lugar onde lhe ficam os segredos, inconfessáveis e sem confronto possível.
Gradualmente, Aurelia vai percebendo as disparidades do discurso sempre tão pronto da caseira. Tudo lhe parece bater certo numa desordem calculada. Adelita vira as palavras do avesso, o que diz hoje não dirá amanhã, numa mentira tecida, aparentemente, do seu desejo de ser especial.
 
"Mas fui-me habituando aos seus discursos e deixava-a falar, consciente de que esse exasperado conceito que parecia ter de si mesma e que com tanta insistência me queria transmitir fazia parte do seu carácter. E ainda que os factos não coincidissem com os da sua vida real, admitia que este era o económico preço que eu tinha a pagar para ser tão bem servida."
 
Aurelia é ausente, sombria, indiferente a quase tudo. Professora universitária é, enquanto profissional, dedicada e sem falhas que se lhe apontem. As viagens que faz da cidade até à casa de campo, com meses espaçados entre elas, dão-lhe uma sensação de descanso que deseja, contudo, os vislumbres acesos de Adelita, imparável, fazem-na constantemente questionar o seu próprio lugar no mundo.
"Cada um tem de cantar a sua canção."
O seu pai, austero e indiferente da filha, sempre a fizera relembrar a importância de sabermos cantar a nossa própria canção. Deixava no ar a ideia de que se viemos ao mundo para cantar, especificamente, uma canção, qual seria a canção de Aurelia? Agora com o pai falecido, a casa de campo ganhou uma atmosfera mais pessoal, no entanto, repleta de segredos que, aos poucos, sente desejo de desbravar. O maior de todos eles seria, pois então, o seu papel na vida. As questões profundas de Aurelia deixam no leitor aquela sensação de desamparo, de quem parece ter vivido toda a sua vida a ver passar navios. Uns maiores, outros mais pequenos. Uma vida em velocidade de cruzeiro, sem aventuras, amores arrebatadores, todo um marasmo medido ao pormenor.
 
E depois, Adelita. Uma mulher cujo corpo apelava à compaixão e, ainda assim, uma presença capaz de derrubar muros e navios. Adelita pisava o chão com pé de quem não teme. Era astuta, de língua mentirosa, afiada sempre nas direções de seu maior proveito. Aurelia concedia, duvidava, voltava a conceder. Quase num gesto altruísta, de quem apenas quer sossego. Até ao dia em que se verá envolvida numa canção que não é dela, sons que lhe chegam com sabor a segredos. E qualquer um sabe, pois então, que a esse sabor se segredo, poucos são os que lhe resistem.
 
De forma magistral, «A Canção de Dorotea» invoca a insegurança de uma mulher madura, o desejo, as reminiscências de um passado mal arquitetado, os receios de uma vida vazia e a hora certa, que sempre chega. Seja pela força dos dias, que se apressam, seja pela presença de alguém. É Adelita, numa canção tocada por sombras, segredos promíscuos e adultérios, que fará Aurelia perder-se, envolver-se, dançar um pouco. A patente dessa canção será, ainda assim, e para sempre, uma incógnita.
 
"Um instante antes de ficar presa entre a parede e o seu corpo, no momento em que os seus braços me envolviam e se aproximava da minha boca o hálito da sua, um último relâmpago de lucidez veio dizer-me que era eu e não ele quem justificava a obscura e ruidosa história de Dorotea, mas que, de qualquer modo, fosse qual fosse o caminho que a partir de agora o destino me apresentasse, nunca me seria dado saber se a canção que ia cantar seria alguma vez a minha."
 
E pergunta você: mas quem é, afinal, Dorotea?
Corra, pegue no livro, leia-o e descubra uma história que lhe merece, sem dúvida, toda a atenção.
 
 
 
Boas leituras,

A ler Anatole France

quinta-feira, 4 de outubro de 2018

"Estou farta de tudo o que conheço e quero procurar o desconhecido. Percebi que não havia alegria na alegria e este homem veio ensinar-me que a verdadeira alegria está na dor. Acredito nele, pois ele possui a verdade."

Anatole France in "Thais"
 
 
Seja feliz,

Outubro(s)

segunda-feira, 1 de outubro de 2018

 
Life starts all over again when it gets crisp in the fall.
 
F. Scott Fitzgerald
 
 
 
 
Chegou o mês mais bonito do ano.
Seja feliz,

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