A Canção de Dorotea (Rosa Regàs)

segunda-feira, 8 de outubro de 2018


Rosa Regás nasceu em Barcelona no ano de 1933. Com a «A Canção de Dorotea» arrecadou o Prémio Planeta, em 2001.
Esta leitura foi uma agradável e inesperada surpresa. Desde a escrita fluida e direta, a história em si e as particularidades de cada personagem, conquistam qualquer leitor ainda bem antes das clássicas cinquenta páginas.
Nesta história conheceremos Aurelia, proprietária de uma casa de campo em Espanha, e Adelita, a caseira responsável por manter a casa, e o jardim, na mais impecável ordem. Será a relação inesperada destas duas mulheres que fará crescer uma história que obrigará cada uma delas a confrontar-se com os seus próprios demónios, revistando o passado e questionando o futuro.
Adelita, de corpo estranho e disforme, pequena mas resoluta, com língua afiada, olha Aurelia nos olhos quando mente sem piedade. Quando lhe conta verdades duras, desvia o olhar para o lugar onde lhe ficam os segredos, inconfessáveis e sem confronto possível.
Gradualmente, Aurelia vai percebendo as disparidades do discurso sempre tão pronto da caseira. Tudo lhe parece bater certo numa desordem calculada. Adelita vira as palavras do avesso, o que diz hoje não dirá amanhã, numa mentira tecida, aparentemente, do seu desejo de ser especial.
 
"Mas fui-me habituando aos seus discursos e deixava-a falar, consciente de que esse exasperado conceito que parecia ter de si mesma e que com tanta insistência me queria transmitir fazia parte do seu carácter. E ainda que os factos não coincidissem com os da sua vida real, admitia que este era o económico preço que eu tinha a pagar para ser tão bem servida."
 
Aurelia é ausente, sombria, indiferente a quase tudo. Professora universitária é, enquanto profissional, dedicada e sem falhas que se lhe apontem. As viagens que faz da cidade até à casa de campo, com meses espaçados entre elas, dão-lhe uma sensação de descanso que deseja, contudo, os vislumbres acesos de Adelita, imparável, fazem-na constantemente questionar o seu próprio lugar no mundo.
"Cada um tem de cantar a sua canção."
O seu pai, austero e indiferente da filha, sempre a fizera relembrar a importância de sabermos cantar a nossa própria canção. Deixava no ar a ideia de que se viemos ao mundo para cantar, especificamente, uma canção, qual seria a canção de Aurelia? Agora com o pai falecido, a casa de campo ganhou uma atmosfera mais pessoal, no entanto, repleta de segredos que, aos poucos, sente desejo de desbravar. O maior de todos eles seria, pois então, o seu papel na vida. As questões profundas de Aurelia deixam no leitor aquela sensação de desamparo, de quem parece ter vivido toda a sua vida a ver passar navios. Uns maiores, outros mais pequenos. Uma vida em velocidade de cruzeiro, sem aventuras, amores arrebatadores, todo um marasmo medido ao pormenor.
 
E depois, Adelita. Uma mulher cujo corpo apelava à compaixão e, ainda assim, uma presença capaz de derrubar muros e navios. Adelita pisava o chão com pé de quem não teme. Era astuta, de língua mentirosa, afiada sempre nas direções de seu maior proveito. Aurelia concedia, duvidava, voltava a conceder. Quase num gesto altruísta, de quem apenas quer sossego. Até ao dia em que se verá envolvida numa canção que não é dela, sons que lhe chegam com sabor a segredos. E qualquer um sabe, pois então, que a esse sabor se segredo, poucos são os que lhe resistem.
 
De forma magistral, «A Canção de Dorotea» invoca a insegurança de uma mulher madura, o desejo, as reminiscências de um passado mal arquitetado, os receios de uma vida vazia e a hora certa, que sempre chega. Seja pela força dos dias, que se apressam, seja pela presença de alguém. É Adelita, numa canção tocada por sombras, segredos promíscuos e adultérios, que fará Aurelia perder-se, envolver-se, dançar um pouco. A patente dessa canção será, ainda assim, e para sempre, uma incógnita.
 
"Um instante antes de ficar presa entre a parede e o seu corpo, no momento em que os seus braços me envolviam e se aproximava da minha boca o hálito da sua, um último relâmpago de lucidez veio dizer-me que era eu e não ele quem justificava a obscura e ruidosa história de Dorotea, mas que, de qualquer modo, fosse qual fosse o caminho que a partir de agora o destino me apresentasse, nunca me seria dado saber se a canção que ia cantar seria alguma vez a minha."
 
E pergunta você: mas quem é, afinal, Dorotea?
Corra, pegue no livro, leia-o e descubra uma história que lhe merece, sem dúvida, toda a atenção.
 
 
 
Boas leituras,

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