A vida sonhada das boas esposas (Possidónio Cachapa)

terça-feira, 7 de janeiro de 2020


Em «A Vida Sonhada das Boas Esposas», Possidónio Cachapa dá-nos a conhecer a muito peculiar trajetória de vida de Madalena.

Com 60 anos, recentemente viúva, Madalena é invadida por um abismo de questões sem resposta. Creio que, em algum momento da nossa vida, seremos abordados por uma voz que nos transcende, como quem pede ou ajusta contas, sobre o que temos andado a fazer com o tempo que Deus nos deu.

A morte do seu bom e modesto marido foi o abismo no qual caiu, envolta em questões sem aparente resposta, pois o tempo avançado parece dizer-lhe que pouco mais há a fazer do que olhar as necessidades dos filhos, dos netos e da casa, que acumula pó sem lhe pedirem.

O tempo parece-nos sempre esse armário arrumado, de inúmeras gavetas, umas mais pequenas, outras maiores. Todas elas a requererem uma determinada ordem, as cuecas que se arrumam ali, meias acolá, calças ali além. Na nossa mente, a ordem imposta pelo tempo parece lei, que se lhe fugirmos, há um risco (aparente) de morrermos perante uma sociedade passada a ferro, engomada numa névoa rotineira.

Será num dos irritantes telefonemas da igualmente irritante filha, Cátia, que Madalena descobrirá que o seu cinzento, mas bom e modesto marido, a traíra anos a fio com uma brasileira.

Imagine uma panela de pressão. Agora imagine a panela a ferver sem que lhe acudam. Eis o que acontece no coração desta mulher sempre dedicada aos outros, a viver num segundo plano de quem se assume como cuidadora de um amor maior, para lá de si mesma. Dedicada desde sempre ao marido e aos filhos, Madalena sente ter cumprido a missão da sua vida. Contudo, o tempo passou e as respostas que desejou ter em mãos, voaram para longe na indignação de quem é traído à falsa fé.

Este é um livro tipicamente português, que só poderia ser escrito por um português com justa causa. A nossa cultura do fado, a tristeza cantada e enaltecida como bom costume, é descrita na perfeição no papel de uma mulher cansada, mas não morta. Madalena parecia ter alcançado a perfeição na luz de quem sofre, de quem canta um fado pesado e sombrio. Era enaltecida pelo seu espírito de sacríficio, pelo tempo roubado a cuidar dos netos como quem faz um favor aos filhos.

Eis que, num vislumbre magistral de revolta, esta mulher acorda e manda o sacríficio dar uma volta ao bilhar grande. A vida não é esse sacríficio que todos parecem gostar de pensar. A vida não é, nem tem de ser, uma catadupa de dores caladas e engolidas por quem se resigna.

Madalena, personagem que se lhe tornará inesquecível - eu aposto -, vem mostrar que a vida tem, sim, essa tal segunda oportunidade. Esta mulher vem mostrar a magnificiência de Deus que, numa primeira abordagem, nos desenha em esquisso para depois, na derradeira oportunidade, nos mostrar o material de que realmente somos feitos.

Não lhe contarei tudo, pois as aventuras hilariantes desta mulher merecem ser lidas sem qualquer conhecimento de causa. Permita-se à diversão e à liberdade de quem ousa viver. Madalena fê-lo, e numa inesquecível jornada, percebeu que o amor existe, que o sexo é mais do que deitar-se de costas e esperar um breve abanão, que a mulher que a define depende, apenas e só, de si mesma. Como quem mergulha sem medo.

Gostei imenso e recomendo com ambas as mãos!


 megustaleer - COMPANHIA DAS LETRAS


Seja feliz,

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