O Cortiço (Aluísio Azevedo) | Ler(-te) em Português #Janeiro

quinta-feira, 31 de janeiro de 2019


Hoje vou falar-lhe de «O Cortiço» de Aluísio de Azevedo, a primeira leitura do «Ler(-te) em Português» deste ano. Não poderia ter começado melhor.

Na introdução feita por Orna Levin podemos ler sobre a obra de Aluísio de Azevedo: "Uma visão degenerativa do homem se impôs com base no modelo das ciências naturais. Em seus romances, as personagens entendidas como seres primitivos são exibidas em estado de irracionalidade latente."
 
Além do próprio Cortiço, que representa um papel em si mesmo, a personagem principal desta história é João Romão, português no Brasil, a trabalhar numa pequena venda. Após a o retorno do seu patrão a Portugal, este, como forma de recompensa, trespassa a pequena venda a João Romão. Colado ao dinheiro como ninguém, o jovem avarento, depois de muitas e pequenas aldrabices para com os clientes, enriquece:
 
"(...) Aquilo já não era ambição, era uma moléstia nervosa, uma loucura, um desespero de acumular, de reduzir tudo a moeda."

João Romão nadava em dinheiro mas não usufruía dele. Acumular era o verbo que se impunha, nem ele sabendo bem para quê. Os negócios foram crescendo e, ao longo do tempo, foi aumentando as obras daquele cortiço com a ajuda de Bertoleza, uma jovem escrava a quem João Romão se prestava a ajudar com as suas economias, assuntos confusos para aquela mulher que lhe foi ficando em casa, na cozinha, na cama. Para Bertoleza, aquele era o seu homem e tratava-o como tal. Uma visão unilateral.
 
Não havia uma ponta sem nó em cada gesto daquele homem. Conseguiu comprar a pedreira ao lado da sua venda como forma de mais facilmente ter os materiais necessários à construção e aumento gradual do cortiço. Era o chamado homem com visão, era esperto, manipulador e interesseiro.
 
Vindos de Portugal, chegaram Miranda e a sua adúltera mulher, Isabel, com a filha Zulmira. A chegada deste homem produziu em João Romão uma raiva que nenhum dinheiro lhe poderia subtrair. Miranda era rico e detentor de um prestigiado estatuto social. A visão agarrada do dinheiro, até então, sofrerá alterações na mente de João Romão: começará a gastar (sempre com um olho no lucro pois então) e a viver em condições reais às suas capacidades. Mas nada, nada lhe parece bastar.
 
«O Cortiço» é um retrato político de uma época mas, mais do que isso, um retrato cruel de uma sociedade. Aqui, brasileiros e portugueses são vistos de forma distinta: os primeiros são desvairados da cabeça, preguiçosos e festeiros, ao passo que os segundos são os donos do pedaço. São empreendedores, movidos pela força do querer e do ter.
 
Não querendo contar-lhe tudo porque, acredite em mim, este livro merece ser lido em primeira mão e sem grande conhecimento de causa, esta história é um apontar de dedo social em duas direções. Por um lado, o homem avarento que cresce e prospera por caminhos, quase sempre, dúbios e sombrios. Do outro lado, teremos Jerónimo, o homem certo, justo, pai de família que vem para o Brasil para trambalhar e viver dignamente. Contudo, uma paixão avassaladora pela brasileira Rita, mulher que fazia tremer todo o cortiço com o seu jogo de cintura, a sua dança e o seu sorriso, o fará cair numa enorme amargura. É a miséria. É a miséria humana pelo coração adentro.
 
Aluísio de Azevedo, possivelmente através da sua própria história de vida (a mãe separou-se do seu então marido para casar com outro, este, pai do autor. Imagine o impacto deste tipo de situação naquela altura), espelha sem qualquer resistência um mundo que parece ser condicionado pelo lugar, neste caso, pelo próprio cortiço. Deixo as questões que se impõem: poderá uma pessoa pobre, pelo simples facto de o ser, tornar-se mais facilmente um delinquente? Poderá uma pessoa pobre, pelo simples facto de o ser, ter mau coração? Poderá um lugar ditar uma sequência infernal de mulheres que se vão perdendo e de homens que morrem por dentro?
 
Com um dos finais mais avassaladores de sempre, Aluísio de Azevedo mostra-nos a frieza humana. O pior lado do ser humano é aqui exposto sem dó nem piedade.
 
Prepare o coração, questione, agite a consciência. Tudo isto são requisitos necessários para quem deseja entrar neste cortiço e dele extrair as verdades mais penosas, as que teimam em ficar e que, por isso mesmo, lhe reclamam a tentativa constante de encontrar respostas. A dificuldade reside aí: nem sempre há resposta. Demos lugar à indignação.
 
 
 
 

Esta leitura contou com o apoio da Editora Glaciar.
Obrigada, Jorge Reis-Sá.
 
 

 
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Seja feliz,

2 comentários:

Raquel disse...

Gosto sempre de ler as tuas opiniões. Deixam-me sempre com vontade de ler o livro, mesmo que ele parece extremamente pesado (como é o caso deste).

E já agora, voltei ao mundo dos Blogs. Decidi deixar A Rapariga dos Livros a hibernar, e criei um novo blog - O meu Refúgio - onde pretendo continuar com opiniões literárias, mas incluir mais filmes e séries. Nos últimos tempos tenho passado mais tempo à frente da televisão do que a ler, e acho que A Rapariga dos Livros deixou de fazer sentido...
Se quiseres visitar, fica aqui o link!
https://omeurefugioeeu.blogspot.com/

Beijinhos e boas leituras

Denise disse...

Kel! Obrigada!

Quanto ao teu novo blog, já lá estou caída, a seguir! :)
Fazes bem, há momentos em que é preciso mudar.

Beijinho, muitas leituras (vale sempre a pena insistir) e muitos filmes!
(Vi recentemente um filme que gostei muito: «Submission», recomendo!)

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