Aparição (Vergílio Ferreira) | Ler(-te) em Português #Março

domingo, 17 de março de 2019


Terminada a releitura de «Aparição» de Vergílio Ferreira, senti-me empurrada para algumas conclusões um pouco drásticas. Penso que estamos perante um livro feito de fome. Mas não nos adiantemos. 
Esta é a história de Alberto Soares, um professor de liceu, destacado para dar aulas em Évora. No dia anterior à sua viagem, será surpreendido pela morte repentina de seu pai. Era o momento de conversas soltas, abraços de quem chega, saudades que se restabelecem, novos diálogos que começam. Depois, o silêncio da surpresa. O som, tão oco, de um corpo, o do seu pai, que inerte se entrega à mesa do jantar.
Esse é o momento em que a nossa personagem principal compra um número infinito de questões. De que matéria somos feitos? Ser, ter, estar, é tudo o mesmo? O que nos define realmente? Tenho um pé, sim, mas sou também esse pé que me segue o caminho. Em que ficamos? Como contornar o vazio da morte pela efusão do estar vivo?
Um livro filosófico, diriam. Mas não nos adiantemos.
Chegado a Évora, conhecerá a família enlaçada com a sua, auxiliando-o na sua chegada, o início das aulas que desponta. A adaptação que se espera. São e serão dias monótonos, vazios, dispersos como a sua alma, que de tão inquieta, pede silêncio como quem se esconde, para não encarar novas questões, respostas que se encontram para, novamente, se perderem em si mesmas. De que vale estar vivo? Qual é, então, o propósito? O pai continuará vivo. Mas está morto. Ainda assim, vivo e quente na memória aflita de quem o relembra, dia a dia. Noite após noite.
De repente, Sofia, que surge como lufadas de ar fresco num Alentejo quente, e que sufoca. Torna-se uma aluna improvisada, sem jeito para nada, ou com jeito para tudo. Ela é uma das três filhas daquela família. Ela é natureza revoltada, que vive porque sim, que se inflama na mesma medida que se apaga. Assim é Sofia: o emaranhado pesado em que Alberto se verá rendido. E essa rendição surge envolta em novas questões, medos, anseios. Fosse ele como Tomás, seu irmão, a quem lhe basta estar vivo e sintonizado nas pequenas coisas da vida: o ar fresco da manhã, os animais do campo, os filhos que lhe nascem com pressa. 
Um livro feito de fome. É a fome de quem não se encontra, de quem por momentos se nega a aceitar a vida. Um algo mais que não parece chegar. Uma música certa, um piano, mãos de criança como esperança vã de um amanhã diferente. Quem sabe?
«Aparição», de Vergílio Ferreira,  um livro repleto de filosofia, sim, mas é também e sobretudo um livro urgente dos esfomeados de vida. Dos perdidos. Dos que ainda ousam procurar. Os que sonham pela redenção. Seja através de si, dos outros, da música, das galinhas, da morte, por fim. 


Este é o livro que lhe pede o espelho lá de casa. O mais sombrio. O mais escondido. O que o surpreenderá com a aparição de si mesmo. O segredo é a distância, a pulsão e a determinação de o encontrar e, por fim, o encarar.

Deambular é o verbo que se exige quando se escreve sobre Vergílio Ferreira. Talvez, só talvez, precisemos todos um pouco de deambular, de parar e pensar sobre essa aparição, de nós mesmos, dos outros, de um mundo que bate ritmado lá fora. Como quem chama por nós. 



Seja feliz,

2 comentários:

Carlos Faria disse...

Gostei, apesar de para mim ser um livro de época, bem escrito de facto, mas sente-se aquela opressão de não se viver num tempo de liberdade, mesmo sem nada disso ser referido na obra.

Denise disse...

Sim Carlos, é o retrato fiel de uma época. Pessoalmente, é o peso e a sombra de cada personagem, na sua procura pessoal, que mais me agrada na obra. Depois de reler, voltou a ser essa a impressão final. Um grande livro, sem dúvida.
Boas leituras!

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