Como cozinhar uma criança (Afonso Cruz)

terça-feira, 16 de abril de 2019

"O caril é feito de muitas ervas, assim como uma pessoa é feita de muitas palavras, de muitas pessoas que vieram de longe, de romanos, de cartagineses, de extraterrestres, de chineses, de italianos, de estrelas, de espanhóis, da Lua, até de franceses.
As pessoas são feitas de tudo, são o cozinhado mais dilatado do mundo, são feitas de tardes a brincar no pomar, de histórias lidas na cama, dos sonhos que atiramos da nossa cabeça para a rua."
Ainda me lembro, era eu pequena, dos avisos sérios da minha mãe no que à massa dizia respeito: "não deves retirar do lume nem muito cedo, nem muito tarde. Há um ponto. A massa tem de ficar al dente."
Demorei algum tempo a entender esse conceito. No dicionário e na culinária, é percebido pelo "tempo de cozedura de forma a apresentar firmeza ou alguma resistência quando o alimento é mordido." (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa). Mas as minhas dúvidas continuavam, persistentes.
 
Foi esta a regressão que fiz quando abri o mais recente livro infantil do nosso Afonso Cruz, "Como cozinhar uma criança". Aqueles momentos em que, pacientemente, a minha mãe me dava dicas - que só mais tarde percebi como eram preciosas - sobre como cozinhar, fizeram-me refletir profundamente sobre esta que é uma feliz metáfora sobre a importância dos afetos.
 
Assim como a prática de cozinhar é delicada, exige tempo, dedicação, paciência e esmero, também uma criança carece desse tempo de cozedura. Sabemos que a qualquer cozinhado não lhe poderá falta o tempero certo. Seja uma erva aromática, umas pedrinhas de sal rosa ou a pimenta que nos acelera. Também às crianças carece o tempero certo, na medida certa, no momento exato.
 
Quando finalmente percebi que a massa requer um tempo preciso para que não fique cozinhada de mais ou de menos, fui igualmente capaz de perceber o quanto os corações deveriam ser assim cozinhados e transformados.
 
«Como cozinhar uma criança» é a uma aventura que envolve dois cozinheiros, ambos esmerados, ambos de convicções fortes, mas muito diferentes entre si. E depois, as crianças, prestes a serem cozinhadas. Cada um parece ter uma receita muito própria. Um diz que é fazê-las saltar para a panela, a pronto, e servir com esmero. Outro diz que são precisas doses de paciência, igual esmero, tempo e dedicação. Imaginar é também um verbo assemelhado ao sal ou à pimenta: em doses certas fará toda a diferença, sobretudo, aos corações mais adormecidos.
"Imaginar é mastigar com a imaginação. O nosso cérebro é um estômago com dentes que está sempre a digerir coisas novas para as mãos fazerem."
 
Afonso Cruz, no seu jeito tão próprio, criou um guia de culinária dos afetos, para crianças e para adultos. Com o recurso da imaginação, podemos antever o quanto exige cozinhar uma criança. Assim como a massa que prima por ser servida al dente, também uma criança precisa dessa resistência antes de ser empurrada para a aventura da sua vida, aquela em que já caminhará pelo seu próprio pé. São necessárias doses de minutos de quem sabe esperar e a astúcia para perceber o ingrediente que falta, seja sal ou pimenta, que é como quem diz, um grande beijo ou um forte abraço.
 
«Como cozinhar uma criança» é o equivalente à cereja no topo do bolo. Qualquer bolo gosta de uma decoração bonita, seja recheio de chocolate, sejam morangos espalhados em desordem. Tudo isto equivale, neste guia essencial, aos beijos na testa de uma criança ou às palavras temperadas pela paciência, naqueles dias em que o mundo parece ruir e nada melhor do que um abraço com sabor a casa.
 
 
 
 
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Receita de hoje: Seja feliz e cozinhe o seu coração em banho-maria, sem pressas, até amolecer na medida certa.

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