Ainda eu não havia terminado a leitura deste livro e já tinha decidido, perentoriamente, que estava perante uma das obras da minha vida. Sem exagerar uma página.
«A Montanha Mágica» é dos melhores livros que alguma vez tive oportunidade de ler, capaz de me fazer sentir diferente quando o terminei.
Irremediavelmente acabei perdida de amores por Thomas Mann. Somente um homem dotado de uma genialidade incomum para provocar, com um livro, transformações, reflexões, poderes tão magnânimos no comum leitor.
Tudo começa na subida à montanha. Tudo começa com o ternurento e inesquecível Hans Castorp: homem de ideais elevados e coração cheio, que um dia decide visitar o seu primo ao Sanatório de Berghof, Joachim, onde se encontra internado.
Hans Castorp viu morrer os seus pais muito novo, tendo criado uma ligação muito forte ao seu avô, este, de caráter forte e determinado. Por outro lado, temos o neto mais sensível e anémico, com os olhos postos nos gestos do avô, que gostaria de imitar um dia.
Outra das características primordiais de Hans é a sua boa disposição e uma visão quase distorcida das coisas boas, e pequenas, da vida. Enternecedoras visões, numa fase em que entretanto termina o curso de engenharia na escola industrial.
Mas feitas as contas, e curso terminado, nem por isso temos um Hans Castorp resolvido. É que a indecisão afigura-se como mais um dos seus traços de temperamento, andando perdido entre vocações, sem se conseguir encontrar.
É precisamente nessa neblina de indecisão, quando na verdade tinha já em sua posse a oportunidade de se iniciar no mercado de trabalho, que Hans Castorp decide visitar, durante três semanas, o seu primo Joachim. Uma visita que seria boa para ambos: Joachim pela companhia, Hans para clarear dúbias ideias sobre o seu futuro profissional.
É que doente, ele não está. Jura a pés juntos. Mas diz Behrens, o médico, (mais à frente conhecido por Radamanto) que jamais vira alguém saudável na vida, e isso deixará a Hans Castorp marcas profundas. Verdade é que a doença se instala e Hans Castorp fica na montanha. Quanto ao tempo concreto, esse, dilui-se na montanha. É indefinido.
Ficar na montanha não se afigurou nada fácil a Hans, pelo menos, no princípio. A falta dos bons costumes, da etiqueta e de tantas outras questões consideradas essenciais ao bom viver deste jovem peculiar, dificultavam os dias que pareciam congelar, perdidos, nos ponteiros de um relógio cujas dimensões são seriam, também, iguais às da planície. Lá em baixo.
E eis que surge, depois, uma das situações mais intoleráveis. Portas a bater! Uma das maiores afrontas ao sensível Hans que, curioso, começou desde logo a conspirar na tentativa de conhecer tal infrator.
É assim que conhece Clawdia Chauchat. Mulherzinha sem maneiras mas que, repentinamente, sem adivinha prévia, conquista sem pedir o vulnerável coração de Hans Castorp.
Há quem diga que o amor começa como uma gripe, uma irritação que enerva. É provável.
Se inicialmente o amor a Clawdia era um pudor de meter dó, o avançar de tal sentimento passou a ser vivido em hasta pública, com todos os doentes a congeminar teorias, a tecer risos e comentários às atitudes menos contidas do nosso Hans Castorp. O amor tem destas coisas, é vaidoso e imperioso.
Surge assim, também, uma vontade legítima de ficar. Um sentido de pertença a um lugar que agora parece fazer todo o sentido. O ócio, a cura à base de descanso e dos seus obrigatórios cigarros, assumiram a forma correta, fundamental, de se viver: "Como poderia um jovem de vinte e poucos anos desejar voltar à ordem e disciplina, à mediania e ao utilitarismo, que era o que a planície tinha para lhe oferecer?" p.828
Nessa lógica destemida, surge também Settembrini. Voz cortante da consciência, que o empurra para a planície, para casa, o quanto antes.
Como se quem fica, já não voltasse mais.
Será?
Nesta fase, antes de Settembrini abandonar a montanha, Hans Castorp alimentou sofregamente o seu desejo pelo conhecimento. Paralelamente ao amor, quase platónico, por Clawdia.
Desde o seu interesse repentino por fisiologia e saúde em geral, ao interesse pela botânica, astrologia, o nosso Hans dedicou horas intensas ao estudo, alimentando a ânsia do seu espírito, procurando um contínuo desenvolvimento pessoal.
Esse mesmo desenvolvimento foi vivido ao lado de Settembrini, com as longas deambulações de ambos, nos longos debates, desejados por Hans Castorp e a constante vontade de aprender e refletir mais e mais sobre o mundo e as coisas.
A juntar a esses debates, que nem sempre eram pacíficos, surge Naphta, residente na casa onde vive agora Settembrini. O mais interessante neste contexto é a rivalidade intricada destes dois homens, com ideologias opostas, um libertino (Settembrini) e um controlador (Naphta) em constante picardia intelectual, com um Hans Castorp que tenta mediar, aprender e absorver cada palavra. É nesta fase que o leitor terá a oportunidade de ver discorrer o tema pertinente entre corpo e espírito, a importância da doença, da saúde e a forma de encarar a enfermidade. Estaremos nós destinados à doença como forma de justificar uma certa, digamos, vontade de, tão simplesmente, desistir gloriosamente?
Hans também começa a aprender cada vez mais sobre o que se passa na Montanha... e coisas curiosas parecem acontecer todos os dias. Desde utentes especiais a atitudes menos esperadas, Joachim vai informando o primo sobre os bons costumes do sanatório. Mas é a morte e a forma de a encarar, que deixam Hans Castorp perplexo. Evitar, não falar e passar ao lado, invocando antes a doença como legítima ao corpo, são algumas das premissas reinantes na montanha...
E Hans Castorp vai aprendendo.
A relação entre os primos, por vezes, é tensa. O motivo dessa tensão centra-se na vontade imensa que Joachim tem em sair do Sanatório e recomeçar a sua vida de tenente. Hans Castorp não consegue compreender a quase obsessão do primo quando tão bem se está na montanha!
Eis que um dia, porém, Joachim, contra tudo e contra todos, cansado das eternas contrariedades médicas, decide partir mesmo sem autorização médica. E é quando a possibilidade de regressa também é contemplada para Hans, que se aflige, que se amedronta.
Clawdia estava ausente naquele momento. Decidira viajar.
O amor profundo, comparável ao amor que sentira um dia na infância e até à data nunca possível de comparação, não podia ser desprezado daquela maneira, pelo que Hans, por amor, decide manter-se no sanatório, cujas oscilações de febre permanecem, tendo, inclusive naquele curto momento, aumentado consideravelmente...
Joachim vai. Volta. E jamais regressará.
Ele fica. O primo vai. Mas Clawdia demora a regressar, enquanto o coração do jovem parece, por outro lado, mirrar e duvidar.
Os interesses de Castorp são gigantes como a montanha, aprender e experienciar parecem não ter limites na sua mente, tanto que um dia, ao contemplar a neve fofa que adorna toda a montanha, decide esquiar. Uma nova vontade que põe em prática, desde logo.
Settembrini, sem espaço para surpresa, pune o comportamento de Castorp, sem no entanto, obter qualquer sucesso capaz de o deter da proeza. E lá vai. Pela neve.
Acreditem quando vos digo que este é uma das melhores passagens do livro de Thomas Mann. Absolutamente genial e a questão do tempo, tão invocada, é verdadeiramente sentida por vários motivos: entre eles, o leitor não se aperceberá daquele enquanto não terminar e perceber se Hans Castorp sobrevive à tempestade de neve; ao lado de Castorp vamos igualmente sendo arrastados por pensamentos, sonhos e pesadelos que parecem uma eternidade, num paralelo de, aproximadamente, duas meras horas...
(Soberbo!)
Como já tive a oportunidade de referir, estamos perante um dos melhores livros de sempre. Iniciado antes da Primeira Guerra Mundial, o período é fundamental para contextualizar todo um enredo excecional, uma vez que a montanha mágica é uma metáfora que retrata a importância do tempo, da doença, da morte, do medo e enfatiza, igualmente, a relevância do amor como impulsionador de mudança.
Esta obra é, também, toda ela, repleta de simbolismos que podem escapar ao leitor mais desatento.
Se os utentes do Sanatório sentem a montanha como a resolução dos problemas (e nós próprios sentimos na montanha uma paz desejada, pelo menos, inicialmente), mais não é que o Inferno transfigurado onde a morte é esperada, lenta mas impiedosa. Sem capacidade de agir contra a mesma.
Também Hans Castorp, num dado momento, começa por sentir o peso do tempo, questionando-se sobre o seu papel e todo o ócio que reina numa montanha liderada por Radamante e Minos (Beherns e Krokowski), que na mitologia grega representam o Juíz dos Mortos e o Juíz do Inferno, respetivamente.
Como um regimento bem comandado, as pessoas são orientadas para a morte lenta e ingénua e para estes juízes, ávidos da impotência e da doença, quantos mais, melhor.
Mas o ócio esse, tem das suas. Os doentes acabam por sentir a necessidade de se reinventarem no meio de um nada de emoções. Há uma necessidade de liberdade, sobretudo no nosso Castorp, e é numa dessas passagens que conhecemos Elly e os seus poderes sobrenaturais.
Apesar da resistência inicial, Hans Castorp participa numa dessas sessões espíritas que agita o sanatório, para nunca mais repetir, pois vê Joachim. Que lhe aparece à frente, agitando-lhe violentamente não só o coração, como a mente que vai já num turbilhão de reflexões incapazes de reter.
Quando Hans Castorp conhece Peeperkorn, o novo amante de Clawdia, entretanto de volta ao sanatório, desejando odiá-lo mas sem o conseguir, pois tratava-se da verdadeira personalidade dentro de uma só pessoa, sentiu, após a morte daquele, mais a dor da morte de Joachim, uma imensidão de linhas soltas e de um cheiro a queimado que se avizinhava da planície. E que apelava. Que chamava por ele.
É este o ponto derradeiro, o fim de uma grande obra. Que termina em aberto, deixando o leitor naquilo que lhe parece, naquilo que sentirá ser o mais adequado, o mais correto e o que mais feliz fará o ternurento Hans Castorp.
A seu tempo.
Não é esta a maior prova de liberdade?
"Será que deste festim universal da morte, deste ardor perverso e febril, que incendeia o céu chuvoso e crepuscular, poderá também um dia nascer o amor?" (p.816)
Por último, não posso esquecer e deixar de anotar a narrativa absolutamente genial, incrível e jamais ultrapassável. O narrador inclui o leitor de uma forma estrondosa, incitando uma curiosidade quase mórbida, bem como o deslumbramento por uma escrita cuidada e exímia.
Obviamente já sabia que me iria alongar. Se você que ainda aí está leu toda a minha análise e ainda não leu o livro, acredite que vale a pena começar desde já.
É que não se trata de uma obrigatoriedade.
Trata-se, antes, de um privilégio.
Boas leituras!
4 comentários:
É sem dúvida uma das obras da minha vida, tal como Os Buddenbrooks, mas não o será para toda a gente, no meio daquele mundo deitado há muitas subtilezas destiladas ao ritmo do sanatório. No meio daquela discussão com Settembrini há muita filosofia, sociologia, história e política e mesmo o final da obra diz muito e há muita gente que se perde perante tanta coisa e vê apenas uma história a desenrolar-se lentamente e se aborrece... nem todos são capazes de saborear esta iguaria literária. Adorei o livro.
Carlos,
Fico muito entusiasmada ao perceber que existem outras pessoas que, tal como eu, ficaram encantadas com o poder desta «Montanha Mágica».
Um livro poderoso que em si mesmo reúne tantas temáticas pertinentes que é, simplesmente impossível ao leitor que se preze, não se sentir transformado pelas reflexões a que obriga.
Tenho na estante «Os Buddenbrooks» :) para breve!
Boas leituras!
Não lli todo o post porque este é um dos livros que tenho na minha wishlist mas fiquei feliz por saber que gostaste tanto. Preciso de coragem para o ler.
Boas leituras
Pat
Oi Pat!
Gostei muito mesmo.
Quando começares vais ver que não carece de coragem. É fantástico :)
Beijinhos e boas leituras!
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