CONTÉM SPOILERS
São muitos os livros que tenho de Isabel Allende na estante. Aguardavam um bom momento que parecia nunca chegar. Em 2008 decidi começar a ler «Eva Luna», mas fruto de muito estudo naquela altura, não o cheguei a terminar, acabando por desistir da autora, uma vez mais.
Volvidos todos esses anos, mais livros da autora acabariam por chegar à estante.
Decidi-me, então, a começar por esta «Casa dos Espíritos», a sua primeira obra. Penso que não poderia ter escolhido melhor, tal é, agora, a vontade de querer continuar a conhecer e desbravar mais e mais a obra desta peculiar autora.
Em «A Casa dos Espíritos» acompanhamos a história de três gerações de mulheres sob o pano de fundo das enormes mudanças políticas sofridas no Chile em 1973.
Duas famílias. Três mulheres. E um homem.
Da família Del Valle, conduzida por Nívea e Severo, destacam-se as filhas Rosa e Clara, a mais nova do clã e a mais peculiar criança que o mundo parece ter conhecido desde então. Clara fala com os mortos, lê pensamentos alheios e move objetos apenas com o poder da sua mente.
De Rosa, conhecemos a sua ímpar beleza, cabelos verdes e formoso corpo que não deixará indiferente Esteban Trueba. É que se antes seguro estava de não cair em amores profundos, Rosa foi a prova viva do seu engano, forçando-o às conquistas tontas que o enamoramento obriga, lançando-o igualmente no trabalho das minas, desejando conquistar a maior fortuna, meritória de um destino conjunto com a sua Rosa.
Com um legado inquestionável do tio Marcos, homem sonhador e entretanto falecido, Clara afeiçoou-se a Barrabás, cão do tio e agora seu amigo fiel, seguindo os seus passos com firmeza e lealdade, crescendo em limites de Natureza alheia, assustando até os mais destemidos.
Um dia, Clara prevê a morte da irmã Rosa. Daí se adivinhariam 9 anos sem lhe conhecer a voz. Falou novamente para anunciar que se casaria com o outrora noivo da sua irmã, Esteban Trueba.
Este é o marco definidor da história que se seguiria.
Clara transforma-se no papel de esposa de um homem empreendedor, macho e prepotente, apesar de todo o amor que lhe sente e, sobretudo, pelo receio de nunca sentir em Clara o mesmo amor e aceitação que deseja avidamente. Muitas vezes o expressa, numa tristeza desesperada, que Clara não pertence a ninguém:
"Clara habitava um universo inventado para ela, protegida das inclemências da vida, onde a verdade prosaica das coisas materiais se confundia com a verdade tumultuosa dos sonhos, onde nem sempre funcionavam as leis da física ou a lógica." p.83
Dessa união sem amor, marcada apenas pela aceitação do destino, Clara dá à luz Blanca, a segunda mulher desta vibrante história.
Se a mãe não conheceu o amor na sua plenitude, conheceu-o Blanca com Pedro Tercero Garcia, filho do administrador da quinta do seu pai e que, obviamente, pelas suas diferenças de estatuto social, jamais aceitaria tal união.
Clara nunca conheceria o amor, a sua filha conhecera-o de cor, mas vivendo-o sempre na clandestinidade e com consequências que se iriam arrastar por muitos e longos anos.
Alba será uma das consequências desse amor sem limites de Blanca e Pedro, que independentemente de ter acendido a fúria do violento e intransigente Esteban Trueba, ama a neta incondicionalmente ensinando-o, mesmo que subtilmente, a modificar formas de pensar antigas e obsoletas.
Poderia discorrer muito mais sobre esta história mas penso que o melhor a fazer será recomendar a sua leitura. É um livro repleto de personagens que se tornam inesquecíveis pela sua riqueza e complexidade, cada uma à sua maneira.
Clara é, sem dúvida, a personagem mais inesquecível de todas, o pilar de toda uma casa adornada de espíritos vivos e desnorteados, a carecer de um urgente sentido:
"Alba sabia que a avó era a alma da grande casa da esquina. Os outros souberam-no mais tarde, quando Clara morreu e a casa perdeu as flores, os amigos viandantes e os espíritos brincalhões e entrou em pleno na época da desordem." p.268
A escrita de Allende é especial, impondo uma beleza intocável com os seus presságios de mau agouro, assegurando a atenção dedicada do leitor e o seu interesse fiel na condução de uma história muito bem estruturada que, mais do que a trajetória de uma enorme família, é igualmente reveladora de um grande marco político no Chile, uma questão que pessoalmente me parece fulcral no interesse do livro e da história.
E é assim, através dos cadernos guardados há vários anos e escritos a várias mãos, que chegará ao leitor uma história que não esquecerá, fruto da crença dos relatos escritos como forma de perpetuar a vida e as memórias que realmente devem prevalecer:
"(...) escreveu ela que a memória é frágil e o percurso de uma vida é muito breve e acontece tudo tão depressa que não vislumbramos a relação entre os acontecimentos, não conseguimos medir a consequência dos atos, acreditamos na ficção do tempo, no presente, no passado e no futuro, mas também é possível que tudo ocorra simultaneamente (...). p.406
Recomendo vivamente!
Ao som de: Gemma Hayes "Back Of My Hand"
8 comentários:
Já vi a adaptação cinematográfica da obra que até foi em parte filmada em Portugal, mas já lá vão muitos anos e pouco me lembro da obra a não ser das cenas da revolução chilena.
Quanto ao livro encomendei-o na minha habitual livraria da internet já este ano.
Olá Carlos!
Ainda não vi o filme, pretendo fazê-lo.
Gostei imenso do livro e agora quero ler muito mais da autora.
Vou aguardar a sua análise.
Boas leituras!
Já o li há muitos anos. Gostei muito deste livro (depois vi o filme mas talvez por ter lido o livro primeiro e ter imaginado diferentes os personagens, não gostei assim muito)
Olá Gabi :)
Nunca tinha lido nada da autora. Não podia ter começado melhor.
O filme ainda não vi...
Beijinhos e boas leituras!
Olá,
Este livro é lindo :D li-o há uns anitos, mas lembro-me de ficar surpreendida até com o estilo de escrita de Isabel Allende. Também gostei muito do "A Filha da Fortuna", recomendo-to.
Boas leituras!
Olá Su!
Lindo mesmo, concordo. Gostei imenso e quero repetir a "dosagem" de Allende para breve. Vou acatar a tua recomendação com toda a certeza. Obrigada! :)
Beijinhos. Boas leituras!
A Allende é maravilhosa.
Acho que vou reler este e o Retrato a Sépia antes de ler o A filha da fortuna que consegui comprar no outro dia baratíssimo. Era um dos poucos dela que não tinha. Adoro.
Boas leituras
Olá Patrícia!
Constatei isso mesmo, fiquei muito impressionada com a escrita e todo o enredo deste livro. Peculiar e muito bonito.
Mais leituras desta autora este ano, com certeza! :)
Boas leituras!
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