A gravitação do amor (Sara Stridsberg)

domingo, 4 de março de 2018


«A gravitação do amor», de Sara Stridsberg, é uma história feita de sombra, de arrependimento, de pragas rogadas, de dor, de arranhões na pele, de becos sem saída, do terror por um futuro que não tem vislumbre, pelo medo de amar, pelo medo de ser amado. Uma espécie de doença mental que começa no coração, e por lá fica. A corroer, a pedir mais, a alimentar-se da solidão desenhada a medo. Esse medo de quem quer dar tudo, de quem se quer dar todo e, pelo caminho, se perde na intenção.
 
Há uma praga que nos habita, um desejo chamado salvação. Se não nos podemos salvar, que seja pelo outro. Eu salvo-te, para me salvares de mim mesma. Das sombras herdadas.
 
Jackie transforma a sua vida no desejo de salvar um pai que não a deseja, não a ama, não vive por ninguém, um corpo de alma deslocada, a vaguear apenas e só no desejo de uma morte tranquila, no mar, na incerteza.
 
Internado no Hospital Psiquiátrico Beckomberga, onde recebe as visitas de Jackie, Jim deambula entre passado, presente e um futuro descartado. Jackie, uma menina prestes a fazer 14 anos, absorve desenfreadamente essa ausência de pai. Todo aquele mundo opressivo do hospital, entre a enfermeira Inger Vogel, o psiquiatra ave de rapina, Edvard Winterson e Sabina, amor de perdição do pai, começa a enraizar-se em si mesma, nas visitas diárias cada vez mais longas. Um encantamento que nasce. Um hospital que é uma personagem em si mesma, um edifício repleto de uma história, de uma vida que não nasceu com os alicerces previamente arquitetados. Um lugar onde se prende a dor e a solidão, uma resposta em si mesma pela inércia de quem decide nada fazer.
 
E Jim nada quer fazer. Quer apenas e tão só morrer numa dor desconhecida. Nessa mesma dor cresce Jackie, que deambula pelo espaço, que cria raízes como as árvores que admira, que deseja também ela nunca sair dali. Pelo menos, sair dali sem uma solução aparente.
 
A vida passa. Os dias correm. O mundo nasce de novo a cada dia. Fica o passado que parece, sempre, prevalecer quando a ausência de uma resposta também teima em ficar.
 
A relação de Jackie com o pai transformará, para sempre, a sua forma de viver. As sombras herdadas, a escuridão de um pai ausente, parecem prevalecer independentemente das promessas de que seria a luz prometida. O nascimento de Jackie, coroado pela esperança, apenas lhe ofereceu o peso de uma responsabilidade que ninguém, no mundo, jamais deveria assumir.
 
Jackie é a soma e a subtração de uma vida pautada pelo abandono e marcada por um lugar que aloja todas as tristezas do mundo. De tão pequeno e sombrio, esse lugar torna-se, paradoxalmente, o ideal para, também ela, fugir de si mesma. É confortável, já nada lhe exige.
 
E a vida continuará por aí fora.
Fica o medo, com bolor, de ser amado.
 
O livro de Sara Stridsberg, para lá da beleza da escrita desprendida e dispersa, vem mostrar-nos de uma forma verdadeiramente delicada, e dolorosa, o quanto a falta de amor é a doença mental mais poderosa do mundo. Todas as outras parecem ramificações dessa mesma falta.
 
 
 
Uma obra de rara beleza, «A gravitação do amor» deveria ser uma leitura obrigatória para quem está morto por dentro, distraído com os dias que passam, com a vida que teima em não começar, na sombra de quem, igualmente distraído, se foi embora.
 
 
Seja feliz,
 
 

2 comentários:

Beatriz disse...

Olá, Denise :)

Já tive esse livro na mão, mas achei que devia ser gato a passar-se por lebre.
A ver.

Beijinhos e bom dia da Mulher. É todos os dias, mas pronto ;)

Denise disse...

Gostei muito, Beatriz!

Obrigada e igualmente. Isso mesmo, todos os dias :)

Beijinho!

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