No jardim do ogre (Leila Slimani)

quinta-feira, 3 de maio de 2018

 
 
A autora Leila Slimani granjeou, desde logo, uma atenção global com o seu primeiro livro «Canção doce», uma história centrada numa ama muito particular.
«No jardim do ogre» marca o seu regresso, eu diria, sublime.
 
Se nos concentrarmos no título e na definição, segundo o dicionário, da palavra ogre, que nos refere essa criatura imaginária assustadora, devoradora de seres humanos, rapidamente conseguiremos viver dentro da cabeça de Adéle, personagem principal de uma história narrada em tons muito crus, direta ao ponto.
 
Adéle é uma mulher que tem a vida que a maioria das pessoas deseja e almeja: ela é uma mulher bonita, atraente, trabalha como jornalista, é casada com Richard, homem bom e dedicado, e é mãe de Lucien, ainda pequeno. Apesar de ter tudo para ser feliz, não lhe é suficiente. Há algo que a devora por dentro. Deseja mais, sempre mais, num vazio incompreendido e traduzido por uma compulsão sexual a colocar, diariamente, tudo em causa. Adéle procura, freneticamente, homens com quem possa ter relações sexuais, um ato que lhe parece ser o único capaz de lhe aliviar a dor, o abismo que sempre lhe compra o fascínio. O fascínio da queda.
 
Para muitos, falaríamos então, e comummente, da história de uma ninfomaníaca. Mas vamos aprofundar um pouco a questão: o termo  ninfomaníaca é, na verdade, mal aplicado. Tanto em homens, como em mulheres, existem dois termos distintos para caracterizar esta desordem de foro mental. Se aos homens é o termo «satiríase», para as mulheres falamos, na verdade, de um «comportamento sexual compulsivo». Ambos os termos derivam, de facto, de ninfa e sátiro, figuras da mitologia greco-romana, relacionadas com a sexualidade.
 
Quadro de William-Adolphe Bouguereau "Ninfas e Sátiro"
 
Curiosidades e pormenores à parte, na arte de escrever sobre o acto sexual em si, sobre as relações amorosas em detalhe, há sempre um risco (muito) considerável de cair na vulgaridade. É aqui que enfatizo, de todas as formas possíveis e imaginárias, a capacidade brutal de Leila Slimani para não só não cair na vulgaridade, como também a de nos presentear com frases, inesperadas pelo contexto, que nos arrebatam. Porque são belas, profundas, com sentido.
 
Adéle pertence a essa mancha que vai dos 3 aos 6% da população mundial que sofre com uma desordem mental grave, com consequências devastadoras e, obviamente, previsíveis. São vários os estudos que apontam a falta de afeto, em contexto familiar, como uma das causas mais prementes.
 
Quando revisitamos a história de Adéle, pensamos nos seus pais ausentes, um pouco autocentrados, uma mãe castradora com a crítica, sempre pronta, na ponta da língua. Vai crescendo na sombra do segredo, no receio dos diários lidos pela mãe, e no fascínio do corpo, da entrega, da explosão que procura diariamente, do medo exacerbado, dos pensamentos dos outros:
 
"(...) Os homens vão pensar que é malandra, leviana, fácil. As mulheres vão rotulá-la de predadora, as mais indulgentes dirão que é frágil. Todos estarão enganados."
 
A família, que fica pendente.  Lucien rouba-lhe tempo: "Lucien é um peso, um fardo a que ela tem dificuldade em se habituar." O corpo do marido, Richard, nada lhe diz e desperta. Há um descontentamento global mas a certeza, ainda assim, que acabaria morta sem eles.
 
A descoberta de Richard não lhe causa pânico, antes um alívio que lhe assegurou a melhor noite de sono que alguma vez tivera. Há, enfim, a redenção a si mesma, o conhecimento desse ogre que a devora, sem compreensão à mão:
 
"Ela tentava explicar-lhe o desejo insaciável, a pulsão impossível de conter, a aflição por não lhe conseguir pôr fim."
 
Richard e o seu amor devoto pensam o mesmo, pensam que a história ainda não acabou, mas com um desfecho em que Adéle volta, por inteiro, para casa. Para ele. Para Lucien.
Num término em aberto, Leila Slimani, responsabiliza-nos a pensar e repensar nas possibilidades infinitas daquela mulher, daquele marido, daquele menino.
Se pudesse escolher, como terminaria Adéle?
Continuo a pensar.
 
Leia. Leia, por favor.
 
 
Com o estimado apoio:
 
 
 
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Nota:
Deixo como sugestão, e recomendação, o filme de Lars von Trier, «Ninfomaníaca», numa tentativa de melhor se compreender esta desordem e o sofrimento inerente.
 
 
 

 
 
Boas leituras,

2 comentários:

TheNotSoGirlyGirl disse...

Wow parece mesmo interessante!!

Denise disse...

Muito :)

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