A letra encarnada (Nathaniel Hawthrone)

sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Não poderia ter começado o ano de 2021 em melhor companhia. Sempre gostei muito de clássicos e creio que sejam poucos aqueles que me tenham desiludido. «A Letra Encarnada» foi mais uma feliz descoberta, já anotada há muitos anos. Enfim, continuo com a máxima de que para tudo na vida, há um tempo certo, concorda?

«A Letra Encarnada», de Nathaniel Hawthrone, é considerado o grande clássico da literatura americana. Nesta edição, em particular, temos acesso a um prefácio muito bem conduzido por António Lobo Antunes, que não só nos dá uma visão global da obra e sua relevância como, também, larga algumas curiosidades sobre o autor e sobre a época. Sobre Hawthrone, Lobo Antunes refere: "Apesar de, no fundo da alma, Hawthrone ser um moralista severo, é capaz de flagelar com arrebatamento e severidade essa parte de si mesmo, na auto-crítica a que procedeu toda a sua vida."

No capítulo introdutório, de título «A Alfândega», o leitor terá a oportunidade de conhecer a origem que deu inspiração ao autor para escrever este livro. Nesse estabelecimento onde chegou a trabalhar, Hawthrone explica que lá encontrou um pequeno pacote com uma letra «A» já gasta e ricamente bordada em fios dourados. Juntamente com o pacote, havia um documento que relatava a história desta mulher, hoje de nome Hester Prynne, condenada a usar aquele símbolo na sua roupa por ter cometido adultério.

A história decorre entre os anos de 1642 a 1649, em Salem, Massachussets. Esta era uma época em que o Puritanismo era defendido por aqueles que tinham migrado da Inglaterra de forma a encontrarem um lugar cujas convicções religiosas pudessem ser, fortemente, postas em prática. O livro centra-se na vida de Hester Prynne, uma mulher inglesa que será enviada pelo seu marido, Roger Chillingworth, para aquela cidade, antes da chegada deste. Contudo, dois anos após ter chegado, Hester aparece grávida, e com isto, a prova para todos os presentes de estarem perante uma mulher pecadora que cometera adultério. Esta é a grande premissa da história, assim como a negação da mulher em confirmar o pai do seu bebé. Para juntar a toda esta incredulidade, em praça pública será condenada e terá de usar a letra «A» (de adúltera) na sua roupa, enfrentando a fúria dos habitantes e todas as proezas morais que se possam imaginar.

Este grande clássico da literatura gira em torno de uma análise profunda da condição e identidade feminina numa sociedade puritana. A par da condenação, esta mulher verá também surgir o seu marido, tido como morto num naufrágio e que, sem dó nem piedade, lhe lança mais um castigo: ela não poderá desvendar a sua identidade pela vergonha que lhe suscita e, igualmente, pelo desejo de se vingar. Este homem dedicará a vida a tentar encontrar o homem com quem Hester se relacionou. Este, sendo um médico e sem família, irá viver para casa do pastor Dimmesdale, uma figura ilustre e adorada por toda a comunidade. Será nesta relação que cresce a necessidade de uma vingança muito própria por parte do médico que, atento, começa a perceber no pastor um comportamento suspeito, sempre de mão no coração, faces pálidas e com uma saúde em derradeiro declínio. A pressão psicológica sustentada por este médico é de tal forma intensa que acaba por definir, igualmente, o puritanismo que o autor tanto sublinha.

Não estarei com rodeios. Nathaniel Hawthrone criou uma obra cujo tema nos remete aos problemas, infelizmente ainda atuais, sobre a condição da mulher numa sociedade altamente regida por valores masculinos patriarcais.  Nessa sequência, toda a premissa da história se centra em Hester, quase como mulher selvagem, na filha Pearl, quase uma divindade sobrenatural protegendo a dor da mãe, e na construção da identidade feminina individual e social. Este é um livro de profundas reflexões sobre o papel da mulher numa sociedade que parece não lhe guardar lugar, a não ser, num canto escuro mas com uma luz vermelha, e constante, que a relembre do quanto é pecadora. O adultério é tido como um crime que revela, precisamente, aquilo que a sociedade de Salem mais desprezava face à moralidade, à sexualidade e à liberdade dos padres.

Hester é uma verdadeira heroína. Ela é a mulher que vai contra os tempos, as normas de uma sociedade, numa busca profunda de si mesma, do que lhe fazia falta, de encontrar e viver um grande amor, tornar-se mãe e sentir-se verdadeiramente viva.

Este é um romance riquíssimo. A ideia de uma sociedade rígida, representada pelo poder da religião e o paradoxo de saber que, no fim das contas, o grande adúltero é um padre. E mais do que isso, sublinhado a negrito, e repetindo, a ênfase que é dada ao papel feminino, sempre renegado. Esta mulher poderia ter largado tudo e fugir com a filha, mas ficou. Ousou ficar. Pagou pelos seus pecados de cabeça erguida, e neste comportamento se compra a necessidade de um novo pensamento, convicto, sobre a mulher e a sua relação com os homens.

Apesar dos anos volvidos deste a criação desta obra, sabemos bem que a actualidade ainda nos lança, infelizmente, muitos destes estigmas quando o assunto é a mulher. «A letra encarnada», escrito em 1850, vem relembrar aquela ideia, triste é verdade, de que ainda há muito trabalho a ser feito nesse sentido.


Por mais mulheres como Hester. Hoje e sempre.

Não preciso de lhe dizer que adorei ler este livro, não é verdade? 

E desse lado, quem já leu? Quem gostou? Quem quer ler?

Conte-me tudo nos comentários! 

Ah! E seja feliz! 

 💗

 

1 comentário:

Bárbara Ferreira disse...

li este há mais de dez anos, indo com o preconceito de se tratar de um livro que garotos norte-americanos costumam ler na escola e, consequentemente, odiar. muita hipocrisia puritana. gostei :)

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