A insustentável leveza do ser (Milan Kundera)

segunda-feira, 8 de março de 2021

 

Creio que a maioria concordará com a beleza deste título. Torna-se ainda mais bonito, e significativo, quando paramos para pensar no grande intuito do autor: Kundera refere-se à problemática do tempo, como insustentável leveza que ninguém consegue guardar para si mesmo e largamente dependente do contexto em volta. O tempo é sentido como uma corrente que passa uma vez, tornando cada um dos nossos gestos completamente únicos, estanques, que não mudarão jamais. Sendo então fragmentos de tempo que não se repetem, tornam-se leves mas, precisamente por isso, insustentavelmente leves. Logo na primeira página o autor faz referência ao conceito de «eterno retorno» (Nietzsche), plantando a teoria de que o peso desse eterno retorno às nossas vivências, anulando a espontaneidade dos nossos gestos, não pode ser comparável ao peso da insignificância e falta de sentido dessas mesmas vivências (únicas) num mundo que não se repete, que é único e que as nossas decisões são taxativas, sem direito a um rascunho prévio.

Não é tão confuso como pode parecer, à partida. Este é um livro feito de filosofia. Mais do que um romance inserido numa época histórica muito específica (Primavera de Praga), é um livro que escorre filosofia de uma forma muito bela. Dei comigo a pensar várias vezes no quanto aqui podemos encontrar os grandes princípios da filosofia oculta e o quanto esta questão da vida vista pela leveza ou pelo peso de um tempo que só se vive uma vez, ser tida em linha de conta pelas polaridades. Se a sombra é tão somente a ausência de luz, então, a leveza da vida mais não é do que a ausência desse peso, tantas vezes tido como fardo. Kundera, precisamente neste ponto, faz-nos pensar na necessidade tão humana de nos inserirmos nos extremos, na ponta de uma escala, se assim for mais simples entender.

Se levar uma vida leve nos deixa aparentemente livres, então porquê que a maioria das personagens neste livro necessita, com uma força capaz de lhe arrancar as entranhas, de viver à luz de um peso que vai sustentando uma vida feita de dúvidas?

"Mas, na verdade, será o peso atroz e a leveza bela?
O fardo mais pesado esmaga-nos, verga-nos, comprime-nos contra o solo. Mas, na poesia amorosa de todos os séculos, a mulher sempre desejou receber o fardo do corpo masculino. Portanto, o fardo mais pesado é também, ao mesmo tempo, a imagem do momento mais intenso de realização de uma vida. Quanto mais pesado for o fardo, mais próxima da terra se encontra a nossa vida e mais real e verdadeira é. Em contrapartida, a ausência total de fardo faz com que o ser humano se torne mais leve do que o ar, fá-lo voar, afastar-se da terra, do ser terrestre, torna-o semi-real e os seus movimentos tão livres quanto insignificantes.
Que escolher, então? O peso ou a leveza?"

Representado por quatro personagens principais, Tomas, Teresa, Sabina e Frank, o leitor viverá estes dilemas à luz de quatro personagens perdidas em si mesmas, fragilizadas e perdidas de um sentido de vida. Na mesma medida, questionamos o que é. de facto, ter um sentido na vida? E eis que volta a temática que resume este livro: o poder do tempo e a necessidade que o ser humano tem de viver o mundo como um mar de possibilidades e angústia de um tempo que nos imprime, momento a momento, uma marca eterna, por dentro e por fora.

O narrador parece um alter ego do próprio autor, dando-nos os seus pareceres e, acima de tudo, incutindo no leitor uma série de dúvidas. Há certos trechos da história que parecem tão reais quanto um sonho, serão de facto? Acredito que as dúvidas interiorizadas em cada personagem não só dão forma ao romance como às próprias dúvidas de quem lê.

Ao longo da história acompanhamos a relação entre Tomas, um adúltero inveterado e Teresa, mulher meia perdida, numa clara representação de suposta leveza e suposto peso. Também em Sabina, artista, amante de Tomas, mulher independente e que cativa o amor incondicional de Frank, podemos ver essas polaridades bem nítidas. Neste livro, ninguém está bem. Ninguém é feliz. E todos procuram um propósito. Quanto mais perto parecem chegar, mais rapidamente surge a vontade de inverter a marcha, de viver outra vez, de um novo ângulo. É um livro feito de acasos, em que seis outros acasos tornaram possível a Tomas conhecer Teresa e tantos outros acasos fariam Sabina querer fugir do amor de Frank.

Tal como as bonecas russas, «A insustentável leveza do ser» é um sublinhado constante à difícil arte de existir. É a existência pessoal, a colectiva a par de um contexto histórico marcante e em que as próprias personagens se misturam nele, para no final chegarmos a uma aflitiva questão: e se?

Houvesse um sinónimo feito de questão para esta história e eu atribuía, de olhos fechados, um grande "e se?" E se Teresa não tivesse ido embora? E se Tomas não traísse Teresa constantemente? E se Sabina encontrasse um propósito na vida? E se Frank tivesse tomado uma decisão mais cedo?

E então este é o momento em que, caro leitor, paramos, fechamos o livro e sentimos que dentro dele há um esboço perfeito do verbo viver. É tentativa e erro, uma atrás da outra, é a história que se repete fora e dentro de nós, que nos define mas nunca inteiramente. É o amor melancólico, feito de desculpas, é a constatação de que não podemos viver duas vezes o minuto que já passou. É a vida a entrar-nos pelos olhos dentro e o querer, ávido, de enxergar tudo, memorizar para, enfim mais descansados, reviver dentro de nós o que já foi, o que nunca será e o que desejaríamos que realmente fosse. Nessa compensação, a vida vai acontecendo.

Um livro muito especial em que atrelado a um enredo e a um conjunto de personagens a questionarem o tempo, a existência e o amor, nos leva também a perder-nos entre filosofias e anseios sobre o que fazemos nós das nossas vidas e até que ponto gostaríamos de retornar e subtrair ou somar uns quantos «e se?». Seria isso peso ou leveza?


Um livro que jamais nos fará deixar de questionar.

Um livro, eu diria, intemporal.

Gostei muito e só posso recomendar.



Seja feliz,

2 comentários:

Anónimo disse...

Já tinha visto uma review do livro no canal Ler antes de Morrer no youtube, ainda ontem tive o livro nas mãos na Waterstones, mas não senti que o tivesse de adquirir agora. Talvez volte lá esta semana depois de ter lido a tua opinião. Obrigada :)

https://jiaescreve.blogspot.com/

Denise disse...

Obrigada! :)

É um livro com tantas interpretações. É um livro muito rico, nem sempre fácil, mas que recompensa. Espero que gostes.
Boas leituras!

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