O Véu Pintado (Somerset Maugham)

quarta-feira, 13 de novembro de 2019


No momento em que pouso este livro, dou comigo a pensar como seria o mundo se nele não houvesse um resquício de imperfeição. Em tudo. Na Natureza, nas pessoas, nos objetos e, acima de tudo, nas emoções. Um mundo onde imperasse a arte do sentir bem. 
Como seria viver num mundo onde tudo se encaixa, onde tudo faz sentido, onde os corações se alinham uns com os outros, onde os amores são igualmente alinhados numa linha transparente de compatibilidade? Como seria?
Não falta nada neste «Véu Pintado». É um daqueles exemplos em que nada falha num livro e tudo isto porque Somerset Maugham criou personagens de uma enorme riqueza e igual complexidade. Desde o enigmático e sombrio Walter, a Kitty, sua esposa inocente e egoísta, até à Charlie, homem despojado de qualquer sentimento ou sentido de moralidade. A ausência deste homem é tão grande, em todas estas coisas que lhe aponto, que quase se torna cómico.

É Kitty a personagem principal desta história. É uma mulher mimada, mal acostumada, muito levada pelo estatuto e preconceito social. É bonita e julga a beleza como forma de alcançar tudo o que deseja. Essa convicção movida pela vaidade, fará com que acabe com todas (as muitas!) oportunidades para conseguir aquilo a que chamam de "bom casamento". Aos poucos vai negando todos os jovens, talvez, por sentir que conseguirá sempre melhor. A idade avança e Kitty vê-se na iminência de não conseguir alterar o seu esperado e grandioso destino.

Walter, bacteriologista, homem tímido e muito reservado surge como a última possibilidade, e por assim ser, Kitty não olha para trás, não questiona, aceita casar sobretudo pela vergonha que sente quando pensa que a irmã mais nova, menos bonita, conseguiu casar-se primeiro do que ela.

Estas serão, pois então, as maiores motivações para um casamento. Conseguirá adivinhar o que se segue? Kitty não se sente feliz. As nítidas diferenças de temperamento, a timidez do marido em detrimento da sua extroversão e vontade de viver, resultam num progressivo afastamento e numa paixão assolapada por outro homem, Charlie.

Isto não é spoiler, caro leitor. Saberá desde logo que Kitty cometerá adultério. As consequências disso são, na minha opinião, magistralmente bem conduzidas e são a viragem daquilo que poderia ser uma história previsível. Walter informa Kitty que irá para uma localidade muito afastada na China, dizimada pela cólera e onde deseja aplicar os seus conhecimentos científicos, mas Kitty deverá acompanhá-lo.

[ A partir daqui, sim, poderá conter alguns spoilers. ]

Certa da sua sorte amorosa, Kitty corre para os braços de Charlie e aí percebe que este homem vazio nunca a quis assumir de verdade. Temendo que a sua própria vida seja posta em causa, este homem empurra igualmente Kitty para um destino que a apavora. Assim, decide acompanhar o marido ao invés de se perder para sempre.

Após uma viagem dificil e cansativa, a mulher decidiu já nada temer, muito menos, a morte. O risco de contágio naquela localidade é enorme e, ainda assim, é capaz de comer verduras e outros alimentos crus, como quem confronta a morte, e quase lhe pede misericórdia.

Kitty parece ter desistido de viver, entregue a uma solidão impossível de aguentar. Será nessa sequência e através de uma amizade que estabelece com o homem que auxiliou Walter, que conhecerá um grupo de freiras devotas. Esse é um novo ponto de viragem na história.

É precisamente neste contexto que a minha reflexão sobre um mundo perfeito toma lugar, uma vez mais. Kitty é tudo menos perfeita e são os erros que vai comentendo ao longo da vida que lhe darão clareza para um futuro muito diferente. Somerset Maugahm mostra, repito, de forma magistral, o quanto as dificuldades na jornada de uma vida são, muitas vezes, o impulso necessário às mudanças que, forçosamente, têm de acontecer.

Só após a consciência das falhas constantes ao longo da sua vida, Kitty percebe o quanto o mundo é feito de oportunidades e o quanto somos capazes de nos esmiuçar em inúmeras pessoas dentro de nós mesmos. Não se trata, na minha opinião, do verbo crescer e suas particularidades. Repare, Kitty é já uma mulher adulta. O autor escreve, acima de tudo, através de uma aparente mulher fútil, a capacidade de superação que existe em todos nós, nas situações mais atrozes, impossíveis sequer de conceber na própria imaginação.

Uma história de enorme tristeza, de superação e, por fim, a redenção como resposta a um véu que, finalmente, se rompe. A imperfeição como arnês e a escalada, sempre contínua, por respostas que a vida impõe e nos faz chegar muito mais longe.
 
 
 
Gostei muito e só posso recomendar.
 
 
Seja feliz,

2 comentários:

Bárbara Ferreira disse...

Do Maugham, só li o Of Human Bondage, que é magistral e adorei. Tenho imensa curiosidade acerca deste, do qual também só tenho ouvido e lido maravilhas.

Denise disse...

Olá Bárbara,

Entre os dois, apesar de ter gostado muito deste, gostei ainda mais do «Servidão Humana» :) Um livro exímio!

CopyRight © | Theme Designed By Hello Manhattan