Consentimento (Vanessa Springora)

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Vanessa Springora tinha 14 anos quando se apaixonou pela primeira vez. Nascida numa família disfuncional, um pai violento e uma mãe alienada, viu naquele seu primeiro amor a porta que se abria para um mundo novo, um mundo de amor que nunca tinha sentido de perto, em qualquer expressão.

O facto de ser um homem com mais de 50 anos, inserido no mundo literário, como a sua mãe, ter uma simpatia fora de vulgar e, no topo do topo, corresponder-lhe na paixão, não era motivo de alarme. A diferença de idades era, para uma rapariga acabada de se formar e sem qualquer estrutura de afetos, um factor que a fazia sentir-se ainda mais importante, ainda mais desejada. Quase interessante.

Com o livro «Consentimento», e trinta e três anos depois da história que lhe moldou a vida, a autora decide escrever para aprisionar o homem que a destruiu na falsa fé, que lhe vende a inocência como garantia de que está tudo bem, de que é perfeitamente normal ter uma relação amorosa e iniciar-se sexualmente com um homem que tem idade para ser o seu pai.

" Aos catorze anos, não devíamos ter um homem de cinquenta anos à nossa espera à saída do liceu, não devíamos viver com ele num hotel, nem estar na sua cama, com o sexo dele dentro da boca à hora do lanche. Tenho consciência de tudo isso, apesar dos meus catorze anos, não sou completamente desprovida de senso comum. Desta anormalidade, fiz, de certa forma, a minha nova identidade."

O livro traz a lume a crítica acesa a uma França permissiva nos anos 70 e 80, em que a pedofilia era vista como algo normal, natural até. Para Gabriel Matzneff, o escritor de que neste livro se fala e se aponta, defendia que a partir dos 16 anos, as crianças já eram livres de ter as suas pulsões sexuais, necessárias e essenciais, sobretudo, se acompanhadas por um adulto que, assim, os pudesse iniciar. Para um ser humano normal, sem um cérebro comido por traças, pensar e escrever uma barbaridade destas, deixa-nos à beira de um vómito que pode durar dias.

É um livro fortíssimo, uma história que apesar de muito bem contada, nos deixa totalmente impotentes na tentativa de salvar a «pequena V.», uma criança que fruto de toda a sua experiência de vida, cai nas mãos de um homem que nem lhe merece o nome.

A autora sabia que todo aquele cenário era bizarro, contudo, a imaturidade ligada à tenra idade e fragilidade que lhe nasceu de uma família pouco (ou nada) presente, acaba numa equação muito triste, com uma menina a considerar-se importante e digna de amor pela via mais suspeita de todas. E o mais grave, com a conivência de uma mãe, no mínimo, entorpecida na sua própria dor, incapaz de olhar para lá do seu próprio umbigo.

A juntar a este conjunto tão triste que soma as partes mais significativas  - e pelos piores motivos - da vida da autora, a história que finalmente ganha coragem para contar, revela igualmente um mundo literário conivente, o fascínio pelo artista acima de tudo e de qualquer coisa. Até que ponto a arte pode justificar e minimizar comportamentos? Não pode. Mas naquela altura, isso parecia ser - ridiculamente - possível.

Repito que este não é um livro fácil, aqui escreve-se uma história triste e que moldou, e moldará, a vida da autora. A capacidade e a coragem em lançar ao mundo a sua própria história, é uma forma de alertar para um tema que, infelizmente, está longe de se escrever no tempo passado. A atualidade atinge-nos com constantes notícias que dão lugar a inúmeras crianças abusadas sexualmente. 

Ninguém está à margem deste tema. Ninguém está fora do radar que a atenção face a este assunto merece. Há sempre alguma coisa que podemos fazer, sobretudo, estarmos atentos à nossa volta porque as crianças, e os adolescentes, largam sempre algum sinal, por mais subtil que seja. É aí que nós, adultos conscientes e atentos, devemos agir. 

Uma leitura obrigatória.


Esta leitura contou com o apoio:


💗

Seja feliz,


Sem comentários:

CopyRight © | Theme Designed By Hello Manhattan