Apneia (Tânia Ganho)

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Um dos significados atribuídos à palavra «círculo» é «andamento em torno». E isto dá-me que pensar quando o assunto é este livro que hoje vos trago.

Tânia Ganho, em «Apneia», traz-nos uma história que começa e acaba com um acidente. Como um círculo que, na altura certa, se fecha definitivamente. Mas não nos adiantemos.

Numa manhã, como tantas outras, Adriana é testemunha de um acidente, uma tentativa de suicídio não consumado, precisamente no comboio onde estava. «O raio do corpo é uma coisa difícil de matar» (Anne Sexton).

Todos os acidentes se fazem ouvir. Há sempre um som de estilhaço em cada acidente que acontece. Assim será com esta mulher que se verá a braços com um divórcio litigioso, que quase lhe roubou as suas certezas, a convicção do seu próprio papel, da sua identidade, num longo caminho que parecia não ter fim. Sabemos, também, que todo e qualquer caminho começa com um primeiro passo. Se até aqui, Adriana estava convicta do amor do marido, mais convicta estava do seu próprio amor a Alessandro, acabando por esquecer, por ignorar, os primeiros sinais de um fogo posto, aqui e acolá.

"Adriana vira os sinais - os símbolos - e decidira não lhes dar importância. Rotulara-os de excentricidades e idiossincrasias, stress e ciúmes. Existe um rótulo complacente para tudo aquilo que queremos justificar."

E Alessandro era um fogo posto, que começa lento e inseguro na ponta de um fósforo mas que, se abandonado em si mesmo, cresce sem consequências. Adriana casara com um homem que não conhecia de todo e aos poucos, entre a fumaça que se vai antevendo, percebe que a sua vida está condenada. A magnitude dessa mesma condenação só a conhecerá à medida dos dias, cada vez mais difíceis, entre artimanhas e jogos sujos que só uma mente muito doente (mas que a psicologia jamais poderia justificar) é capaz de criar.

"Quantas crianças se tornariam depressivas, suicidas, rebeldes, delinquentes, por causa do ódio de um progenitor?"

Os dias cada vez mais arrastados de Adriana, na sequência de uma justiça que mal lhe merece o nome, têm um impacto inimaginável no seu filho que vai crescendo, até se tornar adolescente, na sombra de uma batalha injusta entre um pai irascível, capaz de tudo, e de uma mãe que, por amor, tudo faz para manter uma conduta correta.

A tendência de Adriana a trilhar pelo caminho da correção, pelo filho e por si mesma, criam mais e mais situações surreais de Alessandro, como quem se diverte a pôr o dedo nas feridas reais e nas inventadas, apenas para lhe esticar ainda mais os dias de sofrimento, de ansiedade, da sensação de perder o chão que a vai segurando. Mas ela mantém-se firme no desejo de manter o mundo do seu filho o mais normal possível.

A autora escreve o tempo arrastado de forma magistral. Se para o leitor mais impaciente o número de páginas o cansem um pouco, na minha opinião, a forma como escreve o tempo demorado e uma ansiedade crescente, é absolutamente magistral. O tempo parece adormecido na conduta absurda daquele homem. As páginas ganham peso, o próprio fluxo da leitura é afetado pela ansiedade do leitor que, comum mortal, precisa que a justiça venha à tona, mas demora, como demora. E desespera.

Este que é um livro sobre a violência doméstica e todas as ramificações em que sempre desmorona, é também uma história feita de dedos apontados à desvalorização do papel da mulher na sociedade, dos artistas, do estatuto social, do estatuto do homem, do abuso, do Direito que de direito nada tem, dos profissionais de saúde mental que negam a assinatura de um relatório que os possa comprometer, mesmo que ali se escreva a verdade que pode mudar todo o rumo de uma família desarrumada na dor.

"Existem papéis definidos nas relações familiares, papéis que se podem moldar e adaptar aos tempos e às circunstâncias, mas tem de haver fronteiras. Não tabus, mas limites. Um dos limites é o corpo."

Se todo o caminho foi pautado por provações, Adriana enfrentará ainda mais um pedregulho. Quando na sua fé, nada mais poderia pôr em causa a sua segurança e a do seu filho, eis que surge o fantasma do abuso. Alessandro, no intuito de a magoar, é capaz de usar o filho como arma de arremesso em todas as direções possíveis e impossíveis. E esse é momento em que a frase de Maggie O'Farrell assume a sua força máxima: «Nunca subestimem uma mãe em guerra.»

A força de Adriana para travar ainda mais uma luta num campo já minado até à exaustão, vai buscar a força à sua arte. Pintora, amante da arte, esta mulher nunca permitiu, em momento algum, que Alessandro lhe beliscasse a certeza do amor ao seu trabalho. Pessoalmente, esta é uma das características mais fortes, e bonitas, desta personagem e que esconde, também, a importante mensagem de que, seja lá como o mundo se apresente, se mantivermos a mais pequena raiz de nós mesmos, é porque ainda podemos aspirar a muito mais nesta vida.

"Ela não permitiria que ele se imiscuísse na sua arte. Quando tudo desaparecesse, restariam as suas telas."

É precisamente nesse refúgio que encontra as últimas forças para lutar contra tudo e contra todos mas sempre fiel a si mesma e ao carácter que agora também se reflete no próprio filho, que cresce e se desenvolve de mão dada com o exemplo desta mãe que lhe priorizou, sempre, o amor.

Quando a casa parece estar finalmente arrumada do passado, quando mãe e filho podem, finalmente, emergir de uma apneia de anos, o monstro antigo desperta e a ameaça regressa.

Eis que também o desfecho desta história se reveste de muitos simbolismos. Li este final com a mesma sensação despertada logo no início da leitura: que muitas vezes, por mais que façamos ou tentemos, só uma espécie de justiça divina terá o poder de agarrar na caneta para rabiscar o último ponto que fecha, definitivamente, aquele círculo.

E só aí, a vida recomeça.

"A arte de sobreviver não passa pelo esquecimento; consiste em aprender a viver com o que magoa e, aos poucos, ir desmontando a dor e separando os seus componentes como quem desarmadilha pacientemente uma bomba. Um dia, sobrarão apenas as peças, arquivadas em caixas."

 

Leia. Leia já.


 

Seja feliz,


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