Lealdades (Delphine de Vigan)

segunda-feira, 30 de novembro de 2020

  Contém spoilers

Delphine de Vigan é exímia na forma como cria personagens atropeladas na própria sombra. «Lealdades» é um livro que traz a lume um tema muito importante e que requer, urgentemente e mais do que nunca, uma atenção generalizada: a dependência do álcool na adolescência na sequência de separações que são guerras, e os filhos que se perdem entre fronteiras, angustiados sobre como serem leais sem quebrar por dentro.

Muitas vezes a lealdade pode congelar-nos os movimentos e, sobretudo, a capacidade de pensar por si mesmo. Quando são crianças, púberes que ainda nem alcançaram na plenitude a fase da adolescência, essa dificuldade de separação é ainda (e obviamente) maior.

Théo, um menino de 13 anos de idade começa a apresentar sintomas físicos de um enorme cansaço e alheamento. Quem repara é Hélene, professora e diretora de turma. Não consegue percebe, em concreto, o que se passa com o aluno mas sabe que há algo de muito errado.

E a verdade é que Théo, na sequência de uma feia separação dos seus pais, vê na bebida o alívio para uma dor e incompreensão que não consegue sustentar por si mesmo. O único apoio recai no seu melhor amigo Mathis, também ele imerso numa nuvem feita de dois pais perdidos e zangados em silêncio.

O livro de Delphine de Vigan aponta para um assunto, como já referi antes, de extrema relevância, não apenas pela questão das dependências que começam a nascer cada vez mais cedo nos jovens, mas todo um cenário subsequente das famílias, cada vez mais disfuncionais e esquecidas dos seus propósitos.

A maioria das personagens que vive neste livro estão destruídas por dentro. A destruição é-lhes tão pesadas que mal abrem os olhos para encarar a realidade e o que se passa fora delas. Uma mãe zangada pelo adultério do marido, ao marido que acaba numa depressão quando perde o emprego, o filho que tenta manter ordem na casa do pai com medo de nunca mais o poder ver. Uma outra casa, problemas pintados nos mesmos tons: uma mãe que descobre uma segunda vida do marido, que escreve secretamente as críticas sociais mais nojentas na internet, sob pseudónimo. É arrogante e minimiza a mulher pelo facto desta ter crescido num meio mais pobre do que ele. E Mathis capta tudo isso num radar sem espaço para erro.

Por fim, Hélene. A professora e única pessoa atenta aos problemas do jovem Théo. Mas não pense o leitor que esta professora vive feliz e contente na sua bolha. Também ela esconde traumas fortes do passado, revendo no aluno a propagação da sua própria dor. Esta personagem reflete também o poder que o sistema educativo pode ter mas que, na maioria das vezes, lhes é vedado por um conjunto surreal de burocracias e costumes que inibem o mais afoito.

Mas a vontade de Hélene em fazer o bem, riscando regras das tão conhecidas ordens de trabalho, tornando os próprios fantasmas numa lanterna que permite enxergar o outro, apoiando-o, surge neste livro como uma luz de esperança num mundo cada vez mais distraído.

💓

Um livro urgente. Um lembrete às dificuldades da adolescência, a depressão globalizada, uma sociedade diferente, acelerada e desatenta. O sofrimento dos filhos que estão tudo menos alheios aos sofrimentos e percalços dos próprios pais.

 Delphine de Vigan figura já como uma das autoras que mais admiro.

Boas leituras e uma semana feliz!

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