Até ao fim da terra (David Grossman)

terça-feira, 15 de setembro de 2020

 
Escrever a beleza da dor é algo que, à primeira vista, nos pode parecer difícil ou até impossível. Se é dor, a beleza parece ficar instantaneamente de lado. Mas David Grossman transforma a dor de uma mãe numa jornada de verdadeira beleza.
 
"Até ao fim da terra" é uma história de amizade, de amor, de família e, nessa mistura, o poder do passado que não se apaga, que prolifera pela vida toda, dando forma sólida ao que virá.

Acompanhamos a história de Ora e a amizade inesperada e eterna com Ilan e Avram, em contexto de guerra. Ilan tornar-se-ia o seu marido, anos mais tarde, com quem viria a construir a sua família. A amizade criada num passado que nunca deixou de o ser, guarda-os para sempre num fio que, independentemente das agruras da vida de cada um, jamais os separará. Estão unidos para sempre e é essa união que dá forma a uma das histórias mais bonitas que já li.

"Dá-me a mão, depressa. 
Mas temos autorização? 
Não sejas palerma, dá lá. 
Não, não percebeste, é por causa do isolamento. 
De qualquer maneira já fomos contagiados. Mas talvez... 
Dá-me lá a tua mão!"

Quando o filho de Ora, Ofer, decide voluntariamente alistar-se novamente ao exército, quando para ela já se reservava ao direito de festejar a sua desmobilização, não aguenta o peso da notícia. Transtornada ainda pelo divórcio recente com Ilan, e como quem se rebela, decide também ela partir naquela que seria a viagem de uma vida, sem conforto nem segurança, na tentativa sonhada de sofrer os sofrimentos do filho e assim evitar-lhe a dor. Uma mãe que decide entregar-se a um sofrimento feito de fé e salvação. 
 
Será nesse trajeto que a adolescência passada volta a ganhar forma, assim como os fantasmas que tenta ignorar. Avram, o amigo que a amou assim que esbarrou os olhos nela, ainda adolescente, está igualmente perdido e atordoado pelas mazelas que só a guerra inflige. Ora resgata-o e desafia-o para que ambos assumam a empreitada daquela viagem. Será entre medos, receios e muitas adversidades que Ora e Avram fazem uma sentida homenagem ao passado, arrumando-o nos lugares certos, reavaliando cenários, retomando uma via que assumiram de sentido único. 

David Grossman escreveu um dos romances antiguerra mais bonitos e inesquecíveis. Empurra-nos para o confronto que é imaginar a dor de viver uma guerra e de ver o filho lá, por decisão própria. Depois, lidar com o tanto que não lhe disse, com o passado que esconde segredos que lhe mudarão a vida para sempre.

Adornada por uma escrita de enorme beleza, esta é também uma grande história de amor e de confronto direto com o peso do passado, como quem modelou o que virá, e se na hora H falha a força para encarar a verdade do presente, sempre tão misturada nas histórias passadas, a vida estanca para deixar de ser. É dessa coragem que Ora é feita, quando no pior momento da sua vida, na iminência de perder o filho para a guerra, arregaça as mangas e encara, bem de frente, os seus fantasmas, numa espécie de expurgação de culpas e a humildade de quem espera, por fim, a redenção da alma feita alvoroço.


"E no fim, vais ver, ainda daremos à luz um livro. 
Ela ri baixinho para as estrelas que lhe piscam."
 
 
 💓
 
 
Um dos melhores livros que li este ano.
Leia. Leia já.


Seja feliz,


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