Quem nunca?

quinta-feira, 28 de novembro de 2019




" - Se eu estivesse a ler Fadayev, isso dir-te-ia algo diferente sobre o meu caráter do que se estivesse  a ler Wharton ou Akhmatova? Estás a analisar-me pelo que leio?"
In: "Uma noite de inverno" de Simon Sebag Montefiore
(a leitura do momento)


Seja feliz,

Uma questão de conveniência (Sayaka Murata)

terça-feira, 26 de novembro de 2019

conveniência
substantivo feminino

1. Vantagem, interesse
2. Proveito, utilidade
3. Decoro, decência

Sayaka Murata escreveu um livro que é, também, uma nota introdutória ao estigma e preconceito social, a praga de uma sociedade cada vez mais presente e mais destrutiva. Uma nota introdutória de muito valor e significado, deixe-me que lhe diga.

Esta é a história de Keiko, uma mulher de 36 anos, considerada estranha pelos seus pensamentos sempre práticos e desprovidos de emoção (possivelmente algum transtorno do espectro do autismo, mas que não é desenvolvido no livro, e bem.). A sua singularidade é motivo de preocupação para os pais, que lhe querem o melhor. Por melhor, entenda-se, um homem que a ampare, um casamento sólido, e já agora, um par de filhos para esfregar na sociedade um trabalho realizado com esmero e dedicação.

Mas Keiko é tudo menos isso. Aos 36 anos continua a trabalhar na loja de conveniência desde os seus tempos de faculdade, momento em que decidiu ser uma boa escolha para ajudar os pais e para, na mesma medida, se sentir mais autónoma.

Viu o mundo mais acertado dentro daquela loja, onde sente mais facilidade em lidar com as pessoas. Dentro de uma rotina calma, Keiko viu a vantagem (1) de uma escolha em proveito próprio e, acima de tudo, um lugar onde se sente acolhida e de bem com ela mesma.  Perante a inabilidade de se ajustar aos diálogos das pessoas, e dos seus amigos, esta mulher passou a ser vista na perspectiva de uma margem onde só os desajustados se inserem. Na loja tudo parecia certo e a utilidade (2) do seu trabalho inspirava-lhe o importante sentido de pertença.

Tudo parecia estar bem na vida desta jovem mulher até ao dia em que um rapaz é contratado para trabalhar na loja e uma aparente afinidade aliada à força das circunstâncias (sociais) a impele a questionar o rumo da sua própria vida. Enquanto os colegas de trabalho anseiam por uma história de amor, Keiko sente-se ainda mais estranha pelo entusiasmo e atenção que todos lhe dedicam. Até então, eram colegas de trabalho felizes na rotina de um trabalho exigente, mas agora as suas bocas palram num ritmo ajustado, frenético e angustiante sobre a sua (inexistente) vida amorosa. Aparentemente, havia encontrado um sentido diferente, um sentido gerado pelas expectativas alheias.

A sua vida, até então, feliz e ajustada com os seus próprios parâmetros, parecia empurrá-la para uma nova direção. Assim fez, na tentativa de se ajustar, de satisfazer os amigos, os pais e, particularmente, a sua irmã mais velha. Casada e com um filho, sim, escusa de perguntar. 

O igualmente peculiar rapaz é entretanto despedido da loja por considerar não se ajustar a um trabalho de merda e, ele sim, destinado a grandes feitos, a grandes sonhos que ainda o aguardam numa esquina qualquer. Num momento inesperado, em que Keiko o encontra na rua, decide então negociar uma vida a dois, compatível com ambos e, acima de tudo, compatível com as expectativas extenuantes das pessoas, da sociedade.

Decide acolher o rapaz, sem casa e sem dinheiro, para na sombra dessa decisão, poder encher a boca com os moldes ajustados de quem já se sente - Oh! Darwin! - um pássaro de bico forte para enfrentar o mundo. Keiko agora namora, faz amor (não, não faz), tem um homem (não, não tem)
Está uma senhora feita, mas não, não está. No momento em que esta mulher decide deixar de ser ela própria, desistindo inclusivamente de trabalhar na loja, vai morrendo a cada dia. A rotina que lhe trazia paz e felicidade, morre com ela nos dias sempre iguais, desajustados, ao lado de uma pessoa que a atormenta.

Sayaka Murata é sublime nesta crítica pungente, tão necessária, tão cómica da merda de sociedade a que pertencemos. E se é uma merda, porque é, a culpa também é nossa. É nossa a partir do momento em que nos identificamos com os tais moldes, o caminho esperado, as fases de um desenvolvimento não humano, antes mecanizado por uma orquestra desconhecida, mas que pesa muito nos corações e nos ouvidos, que de tão cansados de ouvir o mesmo, decidem entrar no rebanho dos infelizes, mas que não deixa de ser um rebanho.

Quando Keiko olha para dentro e reclama a decência (3) de ser quem é, a vida recomeça novamente, nesse sentido que só ela conhece como o certo para si, que só ela pode conhecer. É essa coragem de se saber quem é, de quem pensa por si, que faz desta personagem uma heroína dos tempos modernos. Uma heróina numa sociedade contemporânea que castra a individualidade e pressiona, sobretudo as mulheres e os seus úteros, a viver uma ideia fabricada das vidas ditas normais.



Um livro magnífico, o qual recomendo fortemente.


Seja feliz, seja ousado, seja você mesmo.
 


substantivo feminino
1. Vantagem, interesse.

2. Proveito, utilidade.

3. Decoro, decência.

"conveniência", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://dicionario.priberam.org/conveni%C3%AAncia [consultado em 25-11-2019].
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conveniência | s. f. | s. f. pl.

con·ve·ni·ên·ci·a

substantivo feminino
1. Vantagem, interesse.

2. Proveito, utilidade.

3. Decoro, decência.

"conveniência", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://dicionario.priberam.org/conveni%C3%AAncia [consultado em 25-11-2019].

con·ve·ni·ên·ci·a

substantivo feminino
1. Vantagem, interesse.

2. Proveito, utilidade.

3. Decoro, decência.

"conveniência", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://dicionario.priberam.org/conveni%C3%AAncia [consultado em 25-11-2019].

con·ve·ni·ên·ci·a

substantivo feminino
1. Vantagem, interesse.

2. Proveito, utilidade.

3. Decoro, decência.

"conveniência", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://dicionario.priberam.org/conveni%C3%AAncia [consultado em 25-11-2019].

paz traz paz (Afonso Cruz)

segunda-feira, 25 de novembro de 2019


Afonso Cruz é o escritor que trata as palavras por tu. Sabemos muito bem que nas relações mais próximas, em que podemos tratar o outro por tu, a proximidade fala mais alto e as palavras são sempre certeiras.

Afonso Cruz, cá para mim, deve ser o melhor amigo das palavras. Nas mãos do escritor, as palavras derretem e alastram-se em novos significados. Talvez, ainda mais poderosos. Na sua escrita, a palavra lágrima acaba num mar de sonhos e a tristeza, essa, pode ser travada por um canteiro de flores.

Serão palavras assim, aparentemente soltas, que fazem nascer poemas dos lugares mais improváveis. Sabemos também que a vida nos traz, sempre, as melhores surpresas vindas desses lugares que, por muito que se dê corda à imaginação, jamais lá chegaríamos. 


A imprevisibilidade da vida num poema, em muitos poemas, conduzem o leitor - atento ou desatento - a caminhos que se querem revisitados. Falo daquelas estradas repletas de encruzilhadas que, na pressa dos dias, já ninguém perde tempo para explorar. Falo do amor, da saudade e da esperança. 

Talvez a pressa dos dias seja tão grande que nos estreita a capacidade de enxergar. Só em frente, tamanha a pressa que nos faz esquecer de respirar, de parar, de acalmar e só assim, nessa tal imprevisibilidade, tocarmos a clareza das coisas. A clareza da vida.

Da mesma narradora de "O livro do ano", este pequeno livro, ilustrado magistralmente pelo autor, vem repleto de pensamentos soltos, cheios de sentido, por muito inusitados que possam parecer à primeira vista.
"Páginas feitas de inusitada poesia, para leitores de todos os feitios. Até os normais."

Um pequeno livro que é um exercício aplicado ao verbo viver: para ter sentido, exige uma repetição insistente. A repetição de quem aprende e desaprende, todos os dias.
Se isto não é viver, o que será?


Esta leitura contou com o apoio:
megustaleer - COMPANHIA DAS LETRAS


Seja feliz,

Dinheiro negro (Ross Macdonald)

quinta-feira, 21 de novembro de 2019


Quando nos dizem que este é um clássico imperdível, é mesmo. Ninguém me enganou. Este livro tem tudo para nos comprar a curiosidade e implorar por descobrir o fim de uma muito intrincada investigação. Todos parecem mentir.

Há um pouco de tudo nesta história de Ross Macdonald, desde a importância desmedida pelo dinheiro, dívidas enormes, segredos maiores ainda, acabando no homicídio e no sexo. Quando falamos em sexo, eis que surge também, e em todo o seu esplendor, a mulher como a causa de todos os problemas deste mundo.

Independentemente da irritação que isso possa suscitar, a verdade é que o autor criou uma história, além de muito bem construída, com pormenores que não são acasos, em que a mulher se torna o centro. Justo, ou não, cabe-lhe também o peso do amor como igual causa das maiores desgraças.

O leitor acompanhará as aventuras e desventuras do detective Lew Archer, contratado para resolver um mistério sobre um homem enigmático mas que acabará por, nesse desenvolvimento, descobrir outro mistério maior ainda. 

O autor, de forma direta e incisiva, mostra-nos as particularidades mais sombrias da alta sociedade sul-californiana dos anos 60. Tudo isto pelo olhar astuto de um detetive que aponta, sem pudores, a ambição e a inveja como dois atributos inatos de personagens que, acredite, não vai querer deixar de conhecer.


 Boas leituras.

 💖
Com o apoio,


Seja feliz,

Novo dia

terça-feira, 19 de novembro de 2019





"Sempre me senti encantado com a perspetiva de um novo dia, uma nova tentativa, mais um começo, com talvez um pouco de magia à espera, algures, por trás da manhã."
J.B. Priestley (1894-1984)
Escritor e Dramaturgo





Seja feliz,

O Véu Pintado (Somerset Maugham)

quarta-feira, 13 de novembro de 2019


No momento em que pouso este livro, dou comigo a pensar como seria o mundo se nele não houvesse um resquício de imperfeição. Em tudo. Na Natureza, nas pessoas, nos objetos e, acima de tudo, nas emoções. Um mundo onde imperasse a arte do sentir bem. 
Como seria viver num mundo onde tudo se encaixa, onde tudo faz sentido, onde os corações se alinham uns com os outros, onde os amores são igualmente alinhados numa linha transparente de compatibilidade? Como seria?
Não falta nada neste «Véu Pintado». É um daqueles exemplos em que nada falha num livro e tudo isto porque Somerset Maugham criou personagens de uma enorme riqueza e igual complexidade. Desde o enigmático e sombrio Walter, a Kitty, sua esposa inocente e egoísta, até à Charlie, homem despojado de qualquer sentimento ou sentido de moralidade. A ausência deste homem é tão grande, em todas estas coisas que lhe aponto, que quase se torna cómico.

É Kitty a personagem principal desta história. É uma mulher mimada, mal acostumada, muito levada pelo estatuto e preconceito social. É bonita e julga a beleza como forma de alcançar tudo o que deseja. Essa convicção movida pela vaidade, fará com que acabe com todas (as muitas!) oportunidades para conseguir aquilo a que chamam de "bom casamento". Aos poucos vai negando todos os jovens, talvez, por sentir que conseguirá sempre melhor. A idade avança e Kitty vê-se na iminência de não conseguir alterar o seu esperado e grandioso destino.

Walter, bacteriologista, homem tímido e muito reservado surge como a última possibilidade, e por assim ser, Kitty não olha para trás, não questiona, aceita casar sobretudo pela vergonha que sente quando pensa que a irmã mais nova, menos bonita, conseguiu casar-se primeiro do que ela.

Estas serão, pois então, as maiores motivações para um casamento. Conseguirá adivinhar o que se segue? Kitty não se sente feliz. As nítidas diferenças de temperamento, a timidez do marido em detrimento da sua extroversão e vontade de viver, resultam num progressivo afastamento e numa paixão assolapada por outro homem, Charlie.

Isto não é spoiler, caro leitor. Saberá desde logo que Kitty cometerá adultério. As consequências disso são, na minha opinião, magistralmente bem conduzidas e são a viragem daquilo que poderia ser uma história previsível. Walter informa Kitty que irá para uma localidade muito afastada na China, dizimada pela cólera e onde deseja aplicar os seus conhecimentos científicos, mas Kitty deverá acompanhá-lo.

[ A partir daqui, sim, poderá conter alguns spoilers. ]

Certa da sua sorte amorosa, Kitty corre para os braços de Charlie e aí percebe que este homem vazio nunca a quis assumir de verdade. Temendo que a sua própria vida seja posta em causa, este homem empurra igualmente Kitty para um destino que a apavora. Assim, decide acompanhar o marido ao invés de se perder para sempre.

Após uma viagem dificil e cansativa, a mulher decidiu já nada temer, muito menos, a morte. O risco de contágio naquela localidade é enorme e, ainda assim, é capaz de comer verduras e outros alimentos crus, como quem confronta a morte, e quase lhe pede misericórdia.

Kitty parece ter desistido de viver, entregue a uma solidão impossível de aguentar. Será nessa sequência e através de uma amizade que estabelece com o homem que auxiliou Walter, que conhecerá um grupo de freiras devotas. Esse é um novo ponto de viragem na história.

É precisamente neste contexto que a minha reflexão sobre um mundo perfeito toma lugar, uma vez mais. Kitty é tudo menos perfeita e são os erros que vai comentendo ao longo da vida que lhe darão clareza para um futuro muito diferente. Somerset Maugahm mostra, repito, de forma magistral, o quanto as dificuldades na jornada de uma vida são, muitas vezes, o impulso necessário às mudanças que, forçosamente, têm de acontecer.

Só após a consciência das falhas constantes ao longo da sua vida, Kitty percebe o quanto o mundo é feito de oportunidades e o quanto somos capazes de nos esmiuçar em inúmeras pessoas dentro de nós mesmos. Não se trata, na minha opinião, do verbo crescer e suas particularidades. Repare, Kitty é já uma mulher adulta. O autor escreve, acima de tudo, através de uma aparente mulher fútil, a capacidade de superação que existe em todos nós, nas situações mais atrozes, impossíveis sequer de conceber na própria imaginação.

Uma história de enorme tristeza, de superação e, por fim, a redenção como resposta a um véu que, finalmente, se rompe. A imperfeição como arnês e a escalada, sempre contínua, por respostas que a vida impõe e nos faz chegar muito mais longe.
 
 
 
Gostei muito e só posso recomendar.
 
 
Seja feliz,

Conveniências

segunda-feira, 11 de novembro de 2019


"Mais um dia que começa. É esta a hora a que o mundo acorda e todas as suas engrenagens se põem a girar. Também eu estou em movimento, como uma dessas engrenagens. Sou uma peça no mecanismo do mundo, a rodar dentro desta manhã."

In «Uma questão de conveniência» de Sayaka Murata



Seja feliz,

Uma vida inteira (Robert Seethaler)

sábado, 9 de novembro de 2019


Sempre gostei de dicionários. Dão-me, muitas vezes, a sensação de paz de que preciso quando, confusa com o sentido das coisas, encontro a palavra certa que me atenua a ansiedade.
Depois de ler «Uma vida inteira», de Robert Seethaler, será certamente atacado com os mesmos níveis de ansiedade do que eu. Depois de muito procurar, encontrei a palavra antídoto:

Esfera
"Corpo redondo cujos pontos superficiais estão equidistantes do centro; bola."
"Representação geográfica da Terra."

Eis a palavra certa para definir a história do inesquecível Andreas Egger, personagem principal deste pequeno, mas enorme, livro. Um livro que, aparentemente, se centra na história de vida de um homem. Na verdade, é disso que se trata e, à primeira vista, pode parecer redutor, simples, pequeno. E todas essas ideias pré-concebidas só (me) nos mostram o quanto somos humanos e o quanto em nós há por resolver. A vida é imensa nessa aparente pequenez e, de forma sublime, repleta de sensibilidade, Robert Seethaler escreve e prova o quanto isso é verdade. 

Esta é a história de Andreas Egger, que após a morte da mãe, é entregue a um homem que o aceita pelo punhado de moedas que leva ao peito. A vida nas montanhas começa assim a tecer-se e a crescer, repleta de desafios: os filhos do homem, sempre preteridos a si mesmo, encafuado num curral enquanto lhes ouvia os confortos da casa ao lado.

Muitas coisas acontecem na vida deste homem, sempre entregue à neve, às montanhas como apoio sólido a uma solidão que lhe parece congénita. Ele cresceu, partiu uma perna, curou-se quase sozinho, viu morrer os dois filhos daquele homem e, nessa sequência, à laia do azar de uns, a sorte de outros, começou a ser reconhecido pela sua força e pelo seu bom trabalho.

Marie surge e nessa esfera que parece sempre girar em torno da montanha e de uma vida isolada, a vida estala-lhe ainda mais os dedos gretados mas, desta vez, são fissuras que lhe deixam entrar o sol, brilhante como os cabelos de Marie, semelhante a si mesmo, pelas mãos gretadas de quem, também, nunca temeu o trabalho.

Um amor nasce, repentino e eficaz, como só os amores de verdade o são. Não exigem rascunhos, são escritos desde logo sem erros de ortografia e, muito menos, de sintaxe. De um namoro acanhado a um pedido de casamento que arde em fogo, a esfera de Andreas foi girando na medida exata do tempo.

E o tempo, esse, pode ser ingrato. Tanto traz, como leva. A história de Egger é assim, uma esfera que não para de girar e nessa sequência, se vê enredado, imerso na confusão de uma vida que lhe parecia certa e rotineira como os seus dias.

Este homem viverá muitas coisas, inclusivamente as amarguras de uma guerra. A dor que lhe nasce, nova, na perna. O caminho que parece mais árduo à medida dos dias, das semanas, dos anos. Esta é uma história de solidão, da vida de um homem que tudo fez e o vazio que se instale no peso da idade.


A escrita de Robert Seethaler casa a simplicidade com a sensibilidade. De uma forma majestosa faz imperar a necessidade de aprofundar mais sobre a natureza humana, sobre o nosso lugar no mundo, sobre a aridez dos dias mais difíceis, a resiliência que nos é exigida para, no fim de tudo, questionarmos se valeu a pena, perdidos num autocarro que nos desconhece o destino.

Gostei muito e recomendo, com ambas as mãos.


Seja feliz,

Sem Abrigo (Maria Inês Almeida e José Almeida de Oliveira)

quinta-feira, 7 de novembro de 2019


O livro infantil «Sem abrigo» de Maria Inês Almeida foi escrito a quatro mãos. A autora contou com o apoio do seu filho, de 8 anos, José Almeida de Oliveira e, em conjunto, na voz do menino, foi criada uma história de enorme sensibilidade debruçada sobre um tema, que por si só, é sensível e difícil de gerir. 

Esta é a história de um menino que, a certa altura, perceberá que os sem abrigo não são aquelas pessoas que, por tanto gostarem de ver as estrelas, não saem da rua. Perceberá também o quanto solitário pode ser isto de se andar sozinho na rua, com um cobertor para trás e para a frente, na imensidão de um mundo sem tetos brancos como o seu, e muito menos, sem o luar esbatido pela luz do seu candeeiro.

A autora criou uma história de enorme sensibilidade, tecida na ingenuidade tão bonita das crianças. Também é nessa ingenuidade que há espaço para crescer e ver com outros olhos, olhos maiores de quem já se prepara, aos poucos, para a desigualdade de que tantas vezes o mundo é feito.

Dessa desigualdade, e numa esperança que se deseja partilhada, este menino anseia por um mundo melhor onde o bom coração das pessoas - em que ele tanto acredita - prevalecerá em cada gesto.


Com o apoio,



Seja feliz,

As moscas de Outono (Irène Némirovsky)

quarta-feira, 6 de novembro de 2019


Em «As moscas de Outono», de Irène Némirovsky, encontramos uma pequena história em que dela se extrai mais uma espécie de amor improvável: o amor de uma empregada, Tatiana Ivanovna, pelos seus amos, os Karine.

«A escrita subtil e a afinada certeza psicológica recordam-nos do quanto a boa prosa pode conseguir em muito poucas palavras.»
The Times
É isto mesmo. A escrita sempre tão limpa, harmoniosa e direta, de Irène, transformam uma pequena história como esta, a de uma empregada que segue os amos na época anterior à Revolução Russa, num marco memorável sobre amor e resiliência.

Tatiana sempre dedicou toda a vida ao cuidado dos Karine. Quando os amos, pela força das circunstâncias políticas, se vêem obrigados a abandonar a sua casa e exilando-se em Paris, Tatiana é a última a abandonar o barco. Permanece, contra tudo e contra todos, na casa agora vazia, apenas cheia pelas memórias de um passado que, a ela, lhe parece sempre presente.

Nessa fase, entregue à solidão da casa, acolhe um dos filhos dos Karine, ferido e às portas da morte. A vinda deste jovem provoca-lhe uma catadupa de memórias passadas, as mais felizes, que parecem perdurar nos valores de uma mulher que sempre cuidou, preservou e acarinhou a família para quem trabalhou desde sempre.

Programado o seu coração, de forma vitalícia, no cuidado aos amos, também ela acaba por ir ao seu encontro, no pequeno apartamento em Paris. O choque de uma mudança nunca esperada reflete nela o medo do presente, o desejo do passado, a consciência dessa mesma impossibilidade.

O final deste livro, publicado originalmente no ano de 1931, sublinha a tragédia como redenção. A consciência como porta que se abre a todos os medos e o desejo, enfim, de continuar num passado que, tanto, se quer inalterável.

Leia. Leia já!




Seja feliz,

A ler «Uma vida inteira»

terça-feira, 5 de novembro de 2019



"Já estava há tanto tempo no mundo! Vira-o mudar e parecia que girava cada vez mais depressa de ano para ano, e Egger sentia-se um vestígio de uma era há muito enterrada, uma espinhosa erva daninha que teimava em esticar-se, enquanto pudesse, em direção ao Sol."
Em «Uma vida inteira» de Robert Seethaler 



Seja feliz,
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