O Moinho à Beira do Floss (George Eliot)

quinta-feira, 6 de maio de 2021

Há livros que nos surgem na vida como certas pessoas, que aparecem e ficam para sempre. Falo daquelas pessoas com quem podemos sempre contar, que são presença mesmo sem estarem ao nosso lado, que nos orientam independentemente do nosso próprio estado de espírito. E isto, cada vez me apercebo mais, acontece igualmente com determinados livros. Há livros que vamos ler para sempre, mesmo que não estejamos, consecutivamente, a abrir as suas páginas. Ficam connosco, tornam-se amigos e até, um pouco, orientadores dos nossos próprios receios e sonhos.

Aconteceu-me isto na minha estreia com George Eliot e o seu «O Moinho à Beira do Floss». Desde então, e já li o livro há uns meses, as minhas experiências de leitura ainda se mantêm na sombra desta história. É mais forte do que eu. Para juntar a tudo isto, Maggie Tulliver, a heroína desta história tão especial, destronou - sem dó nem piedade - Jane Eyre, a minha personagem preferida desde que me lembro.

George Eliot escreveu um livro sobre o papel da mulher e a transparência com que este se desenvolvia quer no seio da família como na esfera social do século XIX. Mulheres curiosas são perigosas, assim como mulheres que lêem, falam e gostam de aprender, são um perigo a reter em mão de macho, que sabe sempre o que faz.

Deixo, porém, um sublinhado que considero importante: não é minha intenção disparar aqui em favor do feminismo, falar mal dos homens no geral e passar a ideia de uma fragilidade inerente só ao sexo feminino. Não é nada disso, e é também um pouco disso. Pois.

«O Moinho à Beira do Floss» é um livro sobre uma família que conhecemos no seu auge financeiro, contudo, um incidente fruto do patriarca da família, deita tudo a perder e viveremos o declínio financeiro, e social, de uma família muito arreigada aos estatutos sociais e valores morais.

E depois, há Maggie. Além de escrever uma história sobre a família, o poder desta em cada um que a forma, George Eliot cria também uma espécie de romance de formação, uma vez que acompanhamos vivamos o crescimento de uma menina muito peculiar, inteligente e com o saco de sonhos no lugar do coração. Falar de emotividade quando nomeados Maggie, é falar pouco. Desde pequena, parece sentir tudo em dobro, de uma forma muito especial e única. A família, sobretudo o irmão Tom, assume tal importância que, o passar do tempo e o consequente crescimento, não a permitem - como gostaria - tornar-se a mulher independente que sabe ser, desde que nasceu.

É uma história de verdadeiro sacrifício por amor. Amor à família. Há um momento na vida desta mulher em que percebe que a sua inteligência e a vontade de amor em tudo o que diz e sente, são um prejuízo a si mesma, na imagem tosca de uma sociedade feita por e para homens. Por isso mesmo, decide a partir daquele momento anular o tumulto que sempre lhe vivera no peito, tornando-se morna, quase pálida e servente dedicada à família.

Apesar destas intenções, há uma verdade sempre difícil de aceitar: a essência de uma pessoa nunca morre. Pode mudar, pode reorientar-se, pode agrupar novas formas de ser e estar, mas a essência, aquilo que lhe vai dentro, isso nunca jamais alguém poderá aniquilar para sempre. 

Pelos caminhos mais inesperados, Maggie acabará por exaltar a sua verdadeira forma de ser e será precisamente esse o momento em que se tornará inesquecível, para tudo e todos os que vivem perto do Floss. Poderia contar-lhe tim tim por tim tim desta história e das vivências que levarão Maggie a renunciar a si mesma, mas não o farei. Não o faço porque acredito que este é mais um daqueles casos de leitura que não precisa de qualquer arnês prévio. O leitor não precisa de saber com o que conta aqui, dentro deste livro. A única coisa que precisa de saber é que estará, se se decidir à leitura, prestes a conhecer algumas das personagens mais marcantes da literatura, adornadas por uma história de aparentes temas repetidos mas que, na sua essência, se alastram pelo tempo e lhe aumentam a importância. Mas que tema é esse?, perguntaria. 

A família. O poder vitalício da família. Os seus laços, que nunca se rasgam e que por mais desavenças que a vida insista em tecer, há um amor maior do que tudo e que pode tudo.


Um dos melhores livros que já li e a entrar diretamente para a minha já tradicional lista de «Os Memoráveis» do ano.


Seja feliz,


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