Ler com as bruxas

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Estas são as minhas sugestões para o Dia das Bruxas, quase aí. Eu não acredito em bruxas, mas que as há, há. (risos)

Havendo, ou não havendo, dentro destes livros encontrará histórias mais sombrias, que nos deixam ansiosos por respostas ou, também, propensos a um salto repentino fruto de um barulho desconhecido.

Terá sido uma bruxa? 😒

 

Uma boa semana para si e, já sabe, seja feliz!


Cinco Esquinas (Mario Vargas Llosa)

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

«Cinco Esquinas» do Nobel Mario Vargas Llosa fez correr muita tinta, pelos piores motivos. Não conheço ninguém que tenha gostado deste livro ou que, no mínimo, se desse ao trabalho de ler as entrelinhas.

Não vou estar com rodeios. Para ler este livro de Llosa só tem duas opções:  1) encarar a história como uma fincada crítica social, uma comédia, uma paródia gigantesca ou, no melhor remédio de quem depressa se satura, 2) fechá-lo.

Não há forma de conhecer este livro sem que para isso de despoje do trabalho conhecido do autor, claramente distinto mas que, na minha opinião, serve um propósito maior. «Cinco Esquinas» é a crítica escrita e viva de Llosa contra Alberto Fujimori que o derrotou na corrida eleitoral à Presidência do Peru no ano de 1990. É conhecido o autoritarismo de Fujimori e as inúmeras críticas em torno do seu papel.

É importante entender este contexto para que, só depois, se abra o livro e possa, (porque não?), divertir-se com uma panóplia de personagens sem carácter, dúbias, vazias e quase cómicas por si mesmas.

Acontece um pouco de tudo na história de dois homens, ricos e bem sucedidos e, supostamente, bem casados. As mulheres, melhores amigas, levam a sua amizade a um ponto de rebuçado, estreitando uma forte relação sexual que é, também, outro lado da crítica que Llosa decidiu fazer.

Neste que é um livro transformado em crítica e dedos apontados, não deixa de lado a podridão da comunicação social, como abutres que não olham a meios para atingir os fins. Tudo acontece aqui. Em «Cinco Esquinas» temos personagens (intencionalmente) ridículas, temos uma escrita (intencionalmente) desprezada para que, na soma, se veja a verdadeira intenção do autor: ridicularizar para sensibilizar. Consegue-o. 

Não entro no grupo de pessoas que não gostaram do livro porque vejo nele uma intencionalidade muito evidente. Leia este livro despojado das anteriores ideias que possa ter da escrita de Llosa. Acredita que esta é uma dica valiosa para que possa apreciar uma história, não propriamente pela qualidade literária em si, mas pelo propósito (muito aceso) de um autor que decidiu escrever zangado, muito zangado.

O resultado só poderia ser uma comédia de dentes, muito, afiados.

 

 

Seja feliz,


O instante

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

 

"(...) e se a felicidade fosse isso, nem sequer um sonho, nem sequer uma promessa, mas o instante, nada mais do que o instante?"

Delphine de Vigan in "Nô e Eu" 

 

 

Seja feliz,


Os Anões (Harold Pinter)

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

«Os Anões», único romance escrito pelo vencedor do Prémio Nobel da Literatura de 2005, Harold Pinter, fez correr muita tinta. Há um consenso sobre o quanto este livro desagradou a maioria.

 Porquê? Não sei. 

Pessoalmente, gostei muito desta história peculiar, que nos conduz através de uma escrita pouco esperada, sublinhando a magistralidade dos diálogos. Há muito tempo que não era confrontada com uma série de diálogos tão bem construídos, audazes e repletos de mensagens escondidas.

A vasta experiência (e maioritária) do autor no teatro, está muito presente, também, neste que foi o seu único romance. Talvez por isso o desagrado venha daí, contudo, se o leitor começar a leitura deste livro sem a expectativa de uma história esperada, uma estrutura esperada, lançando-se ao desconhecido como quem caiu de pijama em pleno teatro, asseguro que se vai divertir.

«Os Anões» é a história de uma amizade entre três rapazes e uma rapariga, esta última, o centro (inesperado) de toda esta jornada feito de jovens corações sonhadores (esta frase saiu-me sem pensar e agora dou comigo a pensar no livro de Richard Yates, repleto também ele de personagens tristes e desamparadas), que deambulam pelas ruas soltas e aventureiras de Londres.

Nem sempre um livro tem de ser regido por uma profunda temática para que seja bom. Por vezes, escrever apenas sobre os anseios de quatro jovens, todos eles perdidos em si mesmos, as linhas que cruzam entre um e outro amigo, como quem tente encontrar-se no reflexo do outro, pode ser matéria mais do que suficiente para fazer nascer uma bom livro, uma boa história.

Creio que seja o caso. Harold Pinter escreveu sem pejo, como quem brinca com as personagens, pondo aqui e ali, desviando para acolá, talvez para regressar mais tarde e revelar-se, só no final. Ler este livro permitirá ao leitor mais despojado uma viagem engraçada por Londres e um entreabrir de portas para os segredos destas personagens, sempre imprevisíveis, a cobrirem-nos de ansiedade pelo inesperado, tal e qual como uma peça de teatro.


Já lhe referi que os diálogos são geniais?

Já? 

Queira desculpar-me. É que são mesmo e merecem a sua leitura, atenta, mas igualmente despojada. 

Fica a dica e os meus desejos de ótimas leituras.


Seja feliz,

Menina de Ouro (Chris Cleave)

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Se há qualidade que se pode distinguir nas obras de Chris Cleave é, sem pestanejar, a sensibilidade da sua escrita. Em todos os livros que já li do autor, há sempre esse registo que o distingue, feito de muito cuidado na forma como aborda e cria as suas personagens, todas elas, carregadas de segredos, de anseios e de esperança.

Em «Menina de Ouro» o mesmo acontece, nesta que é uma história de profunda amizade entre Kate e Zoe, e também, o reflexo dessa mesma amizade na relação distinta que ambas acabam por tecer com Jack, todos eles ciclistas de alta competição.
 
Nas notas finais do livro, o autor faz questão de frisar a resiliência que os atletas de alta competição precisam de ter. A par da resiliência, há uma mão cheia de características que acabam por distinguir estas pessoas dos comuns mortais. Desde o esforço físico, o foco, a concentração, os planos de ação que devem ser seguidos estritamente, sem falha, leva a que muitos aspectos da personalidade acabem por ficar submersos, como quem sofre em silêncio, não se vá distrair com os barulhos que não se podem encarar de frente.

Cada uma das personagens esconde mazelas de um passado pouco feliz mas é sobretudo o coração partido de Zoe que cria uma estrutura sólida, como a cola que une todas as partes desta amizade. E todos nós sabemos que são sempre os maus momentos aquele que decidem a fortaleza, ou a fragilidade, de uma relação.

Kate e Jack apaixonam-se, casam-se e nasce Sophie. A amizade dos três jovens, ladeada entre as sombras pesadas de Zoe e o cuidado que todos depositam na menina, diagnosticada com leucemia, será o grande mote de uma história de grande superação e a revelação de novos segredos.

A par com o empenho e esforço que as competições exigem, Zoe, Kate e Jack, revezam-se na capacidade que demonstram e no sacrifício que levam a cabo em detrimento de algo maior, o amor à menina e ao seu bem-estar.

Chris Cleave criou personagens de uma enorme complexidade para retratar o poder do amor aos nossos, o poder do foco e dos objectivos que nos define. Uma história que nos mostra o caos da vida, a superação, os resquícios que sempre ficam e que acabam, de uma maneira ou de outra, a imprimir-nos a nossa individualidade e a certeza do nosso papel na história que nos calhou em mãos. 
 
Cabe-nos a nós, sempre, o poder da escolha, o poder de uma decisão.
 
" Era assim o mundo. Havia dois tipos de pessoas quando o semáforo ficava vermelho. Um acelerava, o outro travava."
 💓

Um livro para todos aqueles que se sintam cansados, com tendência à reclamação e que precisam, urgentemente, de olhar a vida com o encantamento que merece.

 

Seja feliz,


Consentimento (Vanessa Springora)

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Vanessa Springora tinha 14 anos quando se apaixonou pela primeira vez. Nascida numa família disfuncional, um pai violento e uma mãe alienada, viu naquele seu primeiro amor a porta que se abria para um mundo novo, um mundo de amor que nunca tinha sentido de perto, em qualquer expressão.

O facto de ser um homem com mais de 50 anos, inserido no mundo literário, como a sua mãe, ter uma simpatia fora de vulgar e, no topo do topo, corresponder-lhe na paixão, não era motivo de alarme. A diferença de idades era, para uma rapariga acabada de se formar e sem qualquer estrutura de afetos, um factor que a fazia sentir-se ainda mais importante, ainda mais desejada. Quase interessante.

Com o livro «Consentimento», e trinta e três anos depois da história que lhe moldou a vida, a autora decide escrever para aprisionar o homem que a destruiu na falsa fé, que lhe vende a inocência como garantia de que está tudo bem, de que é perfeitamente normal ter uma relação amorosa e iniciar-se sexualmente com um homem que tem idade para ser o seu pai.

" Aos catorze anos, não devíamos ter um homem de cinquenta anos à nossa espera à saída do liceu, não devíamos viver com ele num hotel, nem estar na sua cama, com o sexo dele dentro da boca à hora do lanche. Tenho consciência de tudo isso, apesar dos meus catorze anos, não sou completamente desprovida de senso comum. Desta anormalidade, fiz, de certa forma, a minha nova identidade."

O livro traz a lume a crítica acesa a uma França permissiva nos anos 70 e 80, em que a pedofilia era vista como algo normal, natural até. Para Gabriel Matzneff, o escritor de que neste livro se fala e se aponta, defendia que a partir dos 16 anos, as crianças já eram livres de ter as suas pulsões sexuais, necessárias e essenciais, sobretudo, se acompanhadas por um adulto que, assim, os pudesse iniciar. Para um ser humano normal, sem um cérebro comido por traças, pensar e escrever uma barbaridade destas, deixa-nos à beira de um vómito que pode durar dias.

É um livro fortíssimo, uma história que apesar de muito bem contada, nos deixa totalmente impotentes na tentativa de salvar a «pequena V.», uma criança que fruto de toda a sua experiência de vida, cai nas mãos de um homem que nem lhe merece o nome.

A autora sabia que todo aquele cenário era bizarro, contudo, a imaturidade ligada à tenra idade e fragilidade que lhe nasceu de uma família pouco (ou nada) presente, acaba numa equação muito triste, com uma menina a considerar-se importante e digna de amor pela via mais suspeita de todas. E o mais grave, com a conivência de uma mãe, no mínimo, entorpecida na sua própria dor, incapaz de olhar para lá do seu próprio umbigo.

A juntar a este conjunto tão triste que soma as partes mais significativas  - e pelos piores motivos - da vida da autora, a história que finalmente ganha coragem para contar, revela igualmente um mundo literário conivente, o fascínio pelo artista acima de tudo e de qualquer coisa. Até que ponto a arte pode justificar e minimizar comportamentos? Não pode. Mas naquela altura, isso parecia ser - ridiculamente - possível.

Repito que este não é um livro fácil, aqui escreve-se uma história triste e que moldou, e moldará, a vida da autora. A capacidade e a coragem em lançar ao mundo a sua própria história, é uma forma de alertar para um tema que, infelizmente, está longe de se escrever no tempo passado. A atualidade atinge-nos com constantes notícias que dão lugar a inúmeras crianças abusadas sexualmente. 

Ninguém está à margem deste tema. Ninguém está fora do radar que a atenção face a este assunto merece. Há sempre alguma coisa que podemos fazer, sobretudo, estarmos atentos à nossa volta porque as crianças, e os adolescentes, largam sempre algum sinal, por mais subtil que seja. É aí que nós, adultos conscientes e atentos, devemos agir. 

Uma leitura obrigatória.


Esta leitura contou com o apoio:


💗

Seja feliz,


O (ilusório) tempo

sexta-feira, 9 de outubro de 2020


 

Seja feliz. Boa Sexta-feira!

 

A Bofetada (Christos Tsiolkas)

quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Hector e a esposa, Aisha, convidam os amigos para um churrasco na sua casa. Até aqui, tudo bem. Não fosse o primo Harry dar uma bofetada a Hugo, um menino de três anos de idade. Ah! Hugo não é seu filho. Está assim criada a premissa de uma história que, acredite, tem muito para contar.

Após o incidente, que assume proporções gigantescas, o leitor conhecerá a versão daquele acontecimento à luz de diferentes personagens. Desde Hector, dono da casa, primo de Harry, marido de Aisha que, por sua vez, é a melhor amiga de Rosie, a mãe de Hugo.

As opiniões são, forçosamente, diferentes. Em cada relato é possível o vislumbre de percepções distintas e estas são sempre marcadas pelas experiências de vida de cada um. Christos Tsiolkas escreve um livro original que, a partir de uma bofetada, nos leva a questionar assuntos como a parentalidade, o poder do legado familiar, o peso do passado e uma sociedade que muda cada vez mais rápido, num abrir e fechar de olhos.

Ao longo da leitura, o leitor perceberá que cada personagem carrega em si mesma alguma espécie de violência, seja ela física ou psicológica. Esta questão permite-nos, também, refletir sobre o poder das nossas experiências na infância como alavanca aos comportamentos que viremos a ter, quando adultos.

Harry aprendeu a ver a agressividade do seu pai e a violência deste sobre a sua mãe, como a resposta possível que traz paz - e silêncio - aos conflitos que não se resolvem. Também Rosie, mãe de Hugo, que vê no menino a sua única razão de existir, viveu ao lado de um pai entregue à bebida e a uma mãe ausente.

Este é um pequeno exemplo das muitas histórias de violência e abandono que encontrará neste livro. É também uma história de traições e a capacidade, que vai crescendo na medida da idade, para perdoar e seguir em frente.

 💓

Um livro que foi uma boa surpresa, que nos suscita uma infinidade de temas para refletir sobre a complexidade que tanto nos caracteriza e, simultaneamente, as semelhanças que acabam por se refletir numa conduta tão previsível. Tão humana. 

 

 

 Seja feliz, 


Um livro (muito!) engraçado

quarta-feira, 7 de outubro de 2020

 "Um pum pode ser problemático na vida de uma pessoa. E quando o Pum é um cão, então, é que ninguém o segura. 

O Pum passa a vida a escapar, a fazer barulho e a atrapalhar os adultos!

E há sempre alguém que pergunta:

- Quem é que soltou o Pum outra vez?

Coitado do Pum..."


Este livro é uma verdadeira pérola. Já há muito tempo que não me ria assim com um livro infantil, cheio de mensagens escondidas, essenciais a serem trabalhadas com os mais pequenos. É uma história cheia de humor e que pode ser uma ferramenta muito útil para bons momentos em família.

Para soltar gargalhadas com os mais pequenos e se, no meio de tanta risota, deixar escapar o Pum, este livro cumpriu a sua missão na plenitude! (risos)

 

Com o apoio:


 

 

Seja feliz e uma ótima Quarta-feira!


Apneia (Tânia Ganho)

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Um dos significados atribuídos à palavra «círculo» é «andamento em torno». E isto dá-me que pensar quando o assunto é este livro que hoje vos trago.

Tânia Ganho, em «Apneia», traz-nos uma história que começa e acaba com um acidente. Como um círculo que, na altura certa, se fecha definitivamente. Mas não nos adiantemos.

Numa manhã, como tantas outras, Adriana é testemunha de um acidente, uma tentativa de suicídio não consumado, precisamente no comboio onde estava. «O raio do corpo é uma coisa difícil de matar» (Anne Sexton).

Todos os acidentes se fazem ouvir. Há sempre um som de estilhaço em cada acidente que acontece. Assim será com esta mulher que se verá a braços com um divórcio litigioso, que quase lhe roubou as suas certezas, a convicção do seu próprio papel, da sua identidade, num longo caminho que parecia não ter fim. Sabemos, também, que todo e qualquer caminho começa com um primeiro passo. Se até aqui, Adriana estava convicta do amor do marido, mais convicta estava do seu próprio amor a Alessandro, acabando por esquecer, por ignorar, os primeiros sinais de um fogo posto, aqui e acolá.

"Adriana vira os sinais - os símbolos - e decidira não lhes dar importância. Rotulara-os de excentricidades e idiossincrasias, stress e ciúmes. Existe um rótulo complacente para tudo aquilo que queremos justificar."

E Alessandro era um fogo posto, que começa lento e inseguro na ponta de um fósforo mas que, se abandonado em si mesmo, cresce sem consequências. Adriana casara com um homem que não conhecia de todo e aos poucos, entre a fumaça que se vai antevendo, percebe que a sua vida está condenada. A magnitude dessa mesma condenação só a conhecerá à medida dos dias, cada vez mais difíceis, entre artimanhas e jogos sujos que só uma mente muito doente (mas que a psicologia jamais poderia justificar) é capaz de criar.

"Quantas crianças se tornariam depressivas, suicidas, rebeldes, delinquentes, por causa do ódio de um progenitor?"

Os dias cada vez mais arrastados de Adriana, na sequência de uma justiça que mal lhe merece o nome, têm um impacto inimaginável no seu filho que vai crescendo, até se tornar adolescente, na sombra de uma batalha injusta entre um pai irascível, capaz de tudo, e de uma mãe que, por amor, tudo faz para manter uma conduta correta.

A tendência de Adriana a trilhar pelo caminho da correção, pelo filho e por si mesma, criam mais e mais situações surreais de Alessandro, como quem se diverte a pôr o dedo nas feridas reais e nas inventadas, apenas para lhe esticar ainda mais os dias de sofrimento, de ansiedade, da sensação de perder o chão que a vai segurando. Mas ela mantém-se firme no desejo de manter o mundo do seu filho o mais normal possível.

A autora escreve o tempo arrastado de forma magistral. Se para o leitor mais impaciente o número de páginas o cansem um pouco, na minha opinião, a forma como escreve o tempo demorado e uma ansiedade crescente, é absolutamente magistral. O tempo parece adormecido na conduta absurda daquele homem. As páginas ganham peso, o próprio fluxo da leitura é afetado pela ansiedade do leitor que, comum mortal, precisa que a justiça venha à tona, mas demora, como demora. E desespera.

Este que é um livro sobre a violência doméstica e todas as ramificações em que sempre desmorona, é também uma história feita de dedos apontados à desvalorização do papel da mulher na sociedade, dos artistas, do estatuto social, do estatuto do homem, do abuso, do Direito que de direito nada tem, dos profissionais de saúde mental que negam a assinatura de um relatório que os possa comprometer, mesmo que ali se escreva a verdade que pode mudar todo o rumo de uma família desarrumada na dor.

"Existem papéis definidos nas relações familiares, papéis que se podem moldar e adaptar aos tempos e às circunstâncias, mas tem de haver fronteiras. Não tabus, mas limites. Um dos limites é o corpo."

Se todo o caminho foi pautado por provações, Adriana enfrentará ainda mais um pedregulho. Quando na sua fé, nada mais poderia pôr em causa a sua segurança e a do seu filho, eis que surge o fantasma do abuso. Alessandro, no intuito de a magoar, é capaz de usar o filho como arma de arremesso em todas as direções possíveis e impossíveis. E esse é momento em que a frase de Maggie O'Farrell assume a sua força máxima: «Nunca subestimem uma mãe em guerra.»

A força de Adriana para travar ainda mais uma luta num campo já minado até à exaustão, vai buscar a força à sua arte. Pintora, amante da arte, esta mulher nunca permitiu, em momento algum, que Alessandro lhe beliscasse a certeza do amor ao seu trabalho. Pessoalmente, esta é uma das características mais fortes, e bonitas, desta personagem e que esconde, também, a importante mensagem de que, seja lá como o mundo se apresente, se mantivermos a mais pequena raiz de nós mesmos, é porque ainda podemos aspirar a muito mais nesta vida.

"Ela não permitiria que ele se imiscuísse na sua arte. Quando tudo desaparecesse, restariam as suas telas."

É precisamente nesse refúgio que encontra as últimas forças para lutar contra tudo e contra todos mas sempre fiel a si mesma e ao carácter que agora também se reflete no próprio filho, que cresce e se desenvolve de mão dada com o exemplo desta mãe que lhe priorizou, sempre, o amor.

Quando a casa parece estar finalmente arrumada do passado, quando mãe e filho podem, finalmente, emergir de uma apneia de anos, o monstro antigo desperta e a ameaça regressa.

Eis que também o desfecho desta história se reveste de muitos simbolismos. Li este final com a mesma sensação despertada logo no início da leitura: que muitas vezes, por mais que façamos ou tentemos, só uma espécie de justiça divina terá o poder de agarrar na caneta para rabiscar o último ponto que fecha, definitivamente, aquele círculo.

E só aí, a vida recomeça.

"A arte de sobreviver não passa pelo esquecimento; consiste em aprender a viver com o que magoa e, aos poucos, ir desmontando a dor e separando os seus componentes como quem desarmadilha pacientemente uma bomba. Um dia, sobrarão apenas as peças, arquivadas em caixas."

 

Leia. Leia já.


 

Seja feliz,


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