Lealdades (Delphine de Vigan)

segunda-feira, 30 de novembro de 2020

  Contém spoilers

Delphine de Vigan é exímia na forma como cria personagens atropeladas na própria sombra. «Lealdades» é um livro que traz a lume um tema muito importante e que requer, urgentemente e mais do que nunca, uma atenção generalizada: a dependência do álcool na adolescência na sequência de separações que são guerras, e os filhos que se perdem entre fronteiras, angustiados sobre como serem leais sem quebrar por dentro.

Muitas vezes a lealdade pode congelar-nos os movimentos e, sobretudo, a capacidade de pensar por si mesmo. Quando são crianças, púberes que ainda nem alcançaram na plenitude a fase da adolescência, essa dificuldade de separação é ainda (e obviamente) maior.

Théo, um menino de 13 anos de idade começa a apresentar sintomas físicos de um enorme cansaço e alheamento. Quem repara é Hélene, professora e diretora de turma. Não consegue percebe, em concreto, o que se passa com o aluno mas sabe que há algo de muito errado.

E a verdade é que Théo, na sequência de uma feia separação dos seus pais, vê na bebida o alívio para uma dor e incompreensão que não consegue sustentar por si mesmo. O único apoio recai no seu melhor amigo Mathis, também ele imerso numa nuvem feita de dois pais perdidos e zangados em silêncio.

O livro de Delphine de Vigan aponta para um assunto, como já referi antes, de extrema relevância, não apenas pela questão das dependências que começam a nascer cada vez mais cedo nos jovens, mas todo um cenário subsequente das famílias, cada vez mais disfuncionais e esquecidas dos seus propósitos.

A maioria das personagens que vive neste livro estão destruídas por dentro. A destruição é-lhes tão pesadas que mal abrem os olhos para encarar a realidade e o que se passa fora delas. Uma mãe zangada pelo adultério do marido, ao marido que acaba numa depressão quando perde o emprego, o filho que tenta manter ordem na casa do pai com medo de nunca mais o poder ver. Uma outra casa, problemas pintados nos mesmos tons: uma mãe que descobre uma segunda vida do marido, que escreve secretamente as críticas sociais mais nojentas na internet, sob pseudónimo. É arrogante e minimiza a mulher pelo facto desta ter crescido num meio mais pobre do que ele. E Mathis capta tudo isso num radar sem espaço para erro.

Por fim, Hélene. A professora e única pessoa atenta aos problemas do jovem Théo. Mas não pense o leitor que esta professora vive feliz e contente na sua bolha. Também ela esconde traumas fortes do passado, revendo no aluno a propagação da sua própria dor. Esta personagem reflete também o poder que o sistema educativo pode ter mas que, na maioria das vezes, lhes é vedado por um conjunto surreal de burocracias e costumes que inibem o mais afoito.

Mas a vontade de Hélene em fazer o bem, riscando regras das tão conhecidas ordens de trabalho, tornando os próprios fantasmas numa lanterna que permite enxergar o outro, apoiando-o, surge neste livro como uma luz de esperança num mundo cada vez mais distraído.

💓

Um livro urgente. Um lembrete às dificuldades da adolescência, a depressão globalizada, uma sociedade diferente, acelerada e desatenta. O sofrimento dos filhos que estão tudo menos alheios aos sofrimentos e percalços dos próprios pais.

 Delphine de Vigan figura já como uma das autoras que mais admiro.

Boas leituras e uma semana feliz!

Um livro para dormir que nem gente grande

quinta-feira, 26 de novembro de 2020

 "Quando nada acontece - Histórias aconchegantes que serenam a mente e ajudam a dormir", de Kathryn Nicolai, é considerado o primeiro livro de histórias de adormecer para adultos.
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Numa época em que dormir é um verbo difícil de encarar pela sombra da ansiedade e da pressa - angustiante - dos dias, estas 52 histórias ajudam a conquistar um sono profundo e reparador. É ideal para quem tem dificuldade em adormecer, ou para os que acordam durante a noite e vivem os dias profundamente ansiosos.
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Creio que todos nós, em algum momento da nossa vida, nos revemos nestas dificuldades. Agora, temos esta almofada para serenar e reencontrar o merecido descanso.

 

 Fica a minha sugestão. Espero que goste!

 

Seja feliz,


A Cidade das Mulheres (Elizabeth Gilbert)

terça-feira, 24 de novembro de 2020

«A Cidade das Mulheres» foi a minha estreia com a obra da autora Elizabeth Gilbert. Apesar de muito conhecida com o seu célebre «Comer, Amar, Orar», parti, ainda assim, com expectativas pouco elevadas. A verdade, porém, é que o livro aumentou e superou qualquer expectativa que pudesse ter a seu respeito.

Gilbert escreveu um livro para todas as mulheres e para todos os homens, porque também estes precisam de alargar a sua consciência quando o tema é a mulher na sua plenitude e, mais ainda, quando o assunto recai também no conceito de «feminilidade».

Esta é a história da jovem Vivian, 19 anos, rebelde e longe de, ao contrário dos seus pais conservadores, desejar uma vida pautada pelas regras impostas por uma sociedade passada a ferro, sem mácula de qualquer ordem.

Por não se adequar à universidade, escapando sempre que podia, os pais decidem enviá-la para Nova Iorque, para junto da tia Peg, que coordena e gere o teatro precário «Lily Playhouse».

Vivian aprendeu desde pequena a costurar com a avó. Não só uma habilidade importante como um dos seus grandes interesses e qualidades. Será nessa premissa que começará a dar os primeiros passos no teatro da tia Peg, a ganhar um lugar e o sentimento de pertença, pela primeira vez na vida.

A par de tudo isso, estamos nos anos 40 em Nova Iorque. É toda uma nova vida que desponta, amizades que nascem no seio do teatro e Celia, a corista mais bonita que alguma vez viu, iniciará a jovem Vivian a um mundo de muitos amores, folia, glamour, sexo e alcool.

"A juventude é um tesouro insubstituível, e a única coisa respeitável a fazer com um tesouro insubstituível é desperdiçá-lo. Por isso, faça o melhor com a sua juventude, Vivian... esbanje-a."

É quase como viver num carrossel. A energia e juventude de Vivian parecem não cessar. Descobre um mundo novo, uma cidade que depressa fez sua e um encantamento crescente de quem ainda se sente quase infantil. Ela descobrir-se-á como mulher e como pessoa, através de um despontar de uma sexualidade muito forte. Conhecerá o primeiro amor, e como a maioria, o seu fatídico fim. 

O livro pode facilmente ser dividido em dois momentos. O primeiro que descreve a sua chegada a NY e todo o manancial de novas experiências e, depois, fruto da inconsequência da idade, um pequeno grande mal entendido fará com que a vida da jovem jamais volte a ser a mesma.

Nesse caminho chega também a II Guerra Mundial. Vivian nos seus tenros anos vive um conjunto de fortes experiências, não indicadas para corações mais fracos. Mas se há coisa que não se verifica nesta mulher, é um coração fraco.

É um livro sobre a vida, sobre o papel da mulher sempre tão prontamente enquadrado em moldes esperados. A sexualidade vista sem pudores na perspectiva feminina. É um livro em que também nos faz pensar sobre o julgamento fácil, a presunção da sociedade que facilmente cataloga uma mulher como "putinha sem vergonha" porque vive a sua sexualidade como tão bem entende.

É um abrir de olhos, também, às consequências de se ver o mundo/ a sociedade/ as escolhas das pessoas como taxativas, como uma conta certa de matemática. Se te dás a mais do que a um homem, serás uma puta. Se gostas de te divertir, serás sempre uma cabeça de vento e a vida encarregar-se-á de te puxar as rédeas com o castigo certo na ponta do travão. 

Mas será mesmo assim?

Vivian é o reflexo de um tempo, de uma época, mas também de um marco que se estenderá ao presente e ao futuro. Esta mulher decidiu simplesmente viver a vida ao sabor da sua única e exclusiva vontade. Errou e do erro gerou as suas próprias leis, por onde sempre se governou. 

"A Cidade das mulheres" é um livro sobre mulheres, sim, mas é igualmente uma história que imprime aquela necessidade de relembrar, vezes sem conta, que somos sempre nós os responsáveis das nossas próprias escolhas. Dar, de olhos fechados, o nosso próprio livre arbítrio aos outros, é o equivalente a comprar dores alheias e fazê-las nossas. Nessa perspectiva, sejamos capazes de assumirmos quem realmente somos. Haverá sempre quem condene, quem idolatre, mas no fim, só conta o que fica em nós.

O amor verdadeiro que Vivian encontra quando menos espera é a prova que nada é o que parece e uma pessoa será sempre esse campo de batalha solitário. Não há vozes de burro que cheguem ao céu, já deveríamos saber.


Esta leitura contou com o apoio:



Seja feliz,

Um livro bonito

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

 

 "O Menino, a Toupeira a Raposa e o Cavalo", de Charlie Mackesy, é um belíssimo livro que está (muito) longe de ser indicado apenas para crianças. É um livro para *todas* as pessoas, sem exceção.

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Esta pequena história vem relembrar o poder (e dever) de admitirmos a nossa total responsabilidade em tudo aquilo que nos acontece.

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É a nossa liberdade de *escolher* a forma como reagimos às coisas que muda, para sempre, a nossa visão do mundo.

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Uma das grandes leis herméticas, "A Lei da Causa e Efeito" cai neste livro como uma luva: as causas externas negativas só ganham força se permitirmos que assim seja. Seremos sempre nós a escolher e essa liberdade é um poder sem limites.

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Um recurso valioso e que pela sua simplicidade consegue, magistralmente, mostrar o quanto o sofrimento pode ser transformado nas mais poderosas lições de vida. A escolha será sempre nossa.

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Uma novidade que nos chega pela mão da • Suma de Letras • e já se encontra nas livrarias. Não há escala possível para lhe indicar o quanto o recomendo.

 

 

 

Seja feliz, uma boa semana!


Madrugada suja (Miguel Sousa Tavares)

segunda-feira, 16 de novembro de 2020

Em «Madrugada Suja», Miguel Sousa Tavares traz-nos um livro sobre o poder do passado e sobre aquelas raras, e felizes, oportunidades em que nos é possível remediá-lo.

Tudo começa numa noite de festa académica. Filipe, estudante de Arquitectura na Universidade de Évora está cansado, já embriagado mas quando se decide a regressar a casa, conhece Eva, uma jovem magra, desastrada, igualmente bêbeda. Do nada, se beijam, do nada nasce uma história.

Quando ambos decidem caminhar juntos, eis que dois colegas os convidam a dar uma volta de carro. Começa assim a madrugada suja que perseguiu Filipe toda a sua vida. Na confusão típica dos convívios com jovens universitários, e muitas bebidas à mistura, aquela noite ficará marcada pelos abusos sexuais dos dois rapazes à jovem, a cobardia e passividade de Filipe que não os conseguiu impedir e mais tarde, o atropelamento acidental.

Naquele tumulto, os rapazes não pretendem voltar atrás, mas Filipe insiste. Poderia estar morta. Ferida. A precisar de cuidados médicos. Tanta coisa que poderia desenrolar-se a partir daquele minuto. Mas nenhum dos outros quis saber e o carro arrancou estrada fora, como quem foge.

Filipe nunca conseguiu fugir daquele passado. E Eva também não. Através de um cuidadoso entrelaçar de histórias diferentes, Miguel Sousa Cardoso vai cruzando essas linhas cheias de histórias de cada personagem, juntando-as no fio comum do passado.

Conheceremos a história familiar do introvertido Filipe e as mentiras que todas as famílias guardam nas gavetas. Dessas mentiras, surge um caminho de perguntas à procura de respostas, e é isso que acaba por fazer. É também uma história que nos mostra a força daquilo que tem de ser. Deus põe-nos no caminho que sabe estarmos preparados para tal, como aquele que é fiel no pouco para que assim, aos olhos atentos de Deus, o eleve sobre o muito.

Filipe é a personificação de um passado mal amanhado e a esperança de o remediar. É também a personagem que dá esperança a uma sociedade corrompida, a uma política pouco direita, sempre a esgueirar-se pelos caminhos mais dúbios, mais tortuosos.

Desde o panorama político de Portugal, ao 25 de Abril e a todo um País em mudança, o autor pincela personagens fortes, determinadas a fazer a diferença mesmo correndo o risco de nada mudar. É o verbo tentar que dá força a um mundo que se quer diferente e se não há vivalma que viva nesse paradigma, serão sempre as sombras dos outros a imperar num lugar que só alguns, tão oportunamente, desejam.


Uma boa surpresa.

A si, desejo-lhe tudo de bom e uma ótima semana.


 

Seja feliz,


Meio-irmão (Lars Saabye Christensen)

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

 | AVISO| Contém spoilers

Não vou estar com rodeios. «Meio-irmão» do norueguês Lars  Saabye Christensen é o melhor livro que li este ano e se me apontassem uma arma à cabeça para escolher, em toda a minha vida, apenas um livro, adivinhe? Seria este.

Já conhecia a escrita magistral do autor aquando da minha leitura de «Herman», um livro que também desde logo figurou - e figura - como um dos melhores de sempre.

Em «Meio-Irmão» conhecemos a história de uma família muito peculiar. Mas a verdade é que todas elas são peculiares à sua maneira e será sempre no seu seio que todas as vidas começam.

A história é narrada por Barnum, que nos relata a sua história de vida que é, também, a história singular da sua família. É um narrador presente e participante, sabendo de antemão todas as trajetórias e todos os segredos da casa onde nasceu.

A mãe, Vera, é uma mulher sem sorte. Ainda jovem é violada por um misterioso homem, com uma mão sem dois dedos, que como surgiu, desapareceu. A mãe, Boletta e a Velha, a avó, não conseguem explicar o mutismo em que entrou, negando o mundo e escondendo a barriga que começava a crescer e dando voz ao seu forçado silêncio. Nasceria Fred, o meio-irmão. Com ele, a voz de Vera volta mas a tristeza tolheu-a e isso parece ser um facto que se arrastou a vida toda.

As três mulheres cuidam agora do menino mas quis o destino que o misterioso homem regresse de cara lavada e com uma aliciante viagem de carro e um ramo de rosas brancas, consegue apagar o passado que só ele conhece, e case com Vera. Nasce Barnum, o irmão.

Esta ironia mordaz da vida de uma mulher destroçada por si só, é o grande ponto de partida que me leva a considerar este livro um dos mais ricos de que tenho memória. É que nele conseguimos encontrar as ironias de que a vida é feita, o remorso, o desejo de corrigir o passado, o desgosto, a revolta, a esperança, o amor e os sonhos como promessa que dificilmente se cumpre. 

Não sou capaz de descrever o poder da escrita de Lars S. Christensen. Desde a originalidade de todos os contextos que, magistralmente, pincela nos momentos mais cruciais, à beleza e ao secretismo que transfere ao leitor, dando-lhe também a ele o crédito de confidente, este autor merece uma vénia cuidada. 

«Meio-Irmão» é a história de uma família cujo começo nasce nas sombras de uma mentira. É a relação entre dois irmãos em que o supostamente «meio-irmão» é tido como o grande exemplo e, ao mesmo tempo, o maior medo de Barnum, o pequeno irmão. 

 

  " - Como é que é ser-se tão pequeno, porra? - Eu olhei para baixo. A pele estava toda arrepiada. Fazia comichão e ardia onde escorria. E então respondi uma coisa que jamais pensei dizer: - É um pouco solitário - disse eu. Fred levantou o olhar e olhou-me nos olhos, não durou muito, apenas um segundo, menos que um segundo, mas olhou-me nos olhos, de repente, como se ficasse tão surpreendido como eu, e talvez reconhecesse algo de si mesmo, talvez percebesse também a sombra da escuridão no meu olhar, que éramos irmãos."

 

«Meio-Irmão» faz-nos regressar à nossa própria infância. Um regresso que nos recorda aqueles anseios doentios com a auto-imagem, os dilemas da infância que ninguém entende e muito menos quando o pé já resvala para uma adolescência cheia de dúvidas. É também um regresso às aventuras, às brincadeiras, o poder das paixões, a sexualidade que desabrocha e o medo que o coração rebente de amor. É a família como estrada, um caminho raramente feito a direito, parando aqui e ali para ganhar fôlego, aprendendo e desaprendendo. É, acima de todas as coisas, um livro sobre as desilusões da vida e a determinação que vai entre escolher a vitimização ou a superação. 

 

"A imaginação é a maior de todas as coisas! Porque não é aquilo que vês que é o mais importante. É aquilo que não se vê que é o mais importante. É aquilo que pensas ver!"

 

Por muito que possa escrever a respeito, nunca vou ser capaz de lhe transmitir - na totalidade - a qualidade deste livro, em todos os sentidos. Não lhe escapa nada. 

 

Aceite a minha sugestão e leia. Mas leia já.

Boas leituras.


 💓


Seja feliz,


As Ilhas dos Pinheiros (Marion Poschmann)

segunda-feira, 9 de novembro de 2020

Penso que estamos perante um bom livro quando no momento em que o lemos e depois, quando o fechamos, nos nasce na cabeça uma infinidade de realidades possíveis.

É isso que acontece, de uma forma muito intensa, em «As Ilhas dos Pinheiros» de Marion Poschmann.

A história começa quando Gilbert Silvester sonha que a mulher o traiu. Não pensa duas vezes, sai de casa e apanha o primeiro voo que encontra disponível, voo esse que o levará para Tóquio.

Está certo de que a mulher o traiu e nada o demove dessa quentura feita dos desgraçados, dos atraiçoados. Agarra-se a essa dor com unhas e dentes, justificando assim a sua retirada sem causa aparente.

Esta é a história de um homem que poderia, muito facilmente, ajustar-se a cada um de nós. Há sempre um dia, dois, três, em que a vontade de mandar tudo às urtigas ganha uma força muito maior do que o tido como socialmente aceite. O largar tudo porque estamos cansados, porque não há poesia que nos valha, não há história que nos agarre. Não há nada a não ser o fardo cansado do nosso próprio corpo.

É o que a nossa personagem faz e as aventuras vão-se sucedendo umas atrás das outras. Conhecerá o misterioso Yosa, jovem que tentara, sem sucesso, pôr termo à vida. Gilbert acolhe o rapaz com uma responsabilidade acrescida e, na mesma medida, incompreensível. Sente a necessidade de o proteger, o medo constante de que volte a tentar a sorte de fintar a vida. E ele que também gosta de companhia.

Das inúmeras realidades possíveis em que este livro parece desdobrar-se, eu assumo a beleza desta história, sobretudo, quando pressinto que a esposa morreu. Nada no livro nos diz que sim ou que não. Perante a liberdade que nos é de direito enquanto leitores, ao assumir a morte desta mulher, percebemos melhor a dor de um homem que, zangado pela não aceitação do vazio da sua vida, foge para longe. O encontro com Yosa, que também ele provoca a vida tentando fugir, é outra possível personificação da saudade e a vontade, tão humana, de fintar a morte e controlar a realidade à luz dos sonhos.

Precisamente pela riqueza das diferentes perspectivas possíveis, considero este livro uma grande e feliz surpresa. Mas há muito mais a garantir-lhe a mestria. Gilbert é uma personagem muito rica, um solo fértil para nos fazer pensar em temas como a saudade, o arrependimento, o amor, a vontade de fintar a vida e a morte, o sonho e, por fim, a esperança.

 

 

Seja feliz,

Três mulheres inesquecíveis da literatura

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

 

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 Jane Eyre | Charlotte Bronte

«A correção de Jane»

Para mim, «Jane Eyre» não é uma história sobre o feminismo. É antes a história de uma mulher que sabe aquilo que quer e que se sujeita a nunca o alcançar se, para tal, transgredir a sua verdade. Esta é uma mulher cujos valores e moralidade tão acesos fazem dela uma das minhas personagens preferidas de sempre.

Quem disse que uma mulher, para o ser de facto, deve renunciar ao amor de um homem? Jane encontrou a sua verdade e, com ela, a certeza de não estar só no mundo.

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 "O Paraíso das Damas" | Émile Zola

«A integridade de Denise»

Numa história feita de apontar de dedos a uma época de novos valores em que consumismo assume lugar, Zola criou Denise, jovem íntegra, desejosa de crescer pela força do seu trabalho, sem se deixar encantar pelo dinheiro ou, até, por convites para jantar.

Denise é uma personagem magnífica, de fortes convicções e uma determinação inabalável, capaz de fazer frente aos seus próprios sentimentos, quando necessário.

Numa história sobre o impacto de uma sociedade consumista e cada vez mais fútil, esta mulher surge como a prova de que pensar pela própria cabeça é um risco que sempre vale a pena correr. Magnífica!

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"Longe da Multidão" | Thomas Hardy
«A convicção de Bathsheba»

Bathsheba é uma das personagens mais inesquecíveis da literatura. De temperamento forte, quase selvagem, esta mulher não se coíbe de transgredir os traços certos de uma sociedade rígida, abraçando a difícil gestão de uma quinta. A par com tudo isto, verá o seu coração cobiçado por três homens distintos. Será a sua convicção e a certeza de se ver a si mesma como único apoio, que a fará viver o maior desgosto de amor. Será, também, o preço da sua convicção a mostrar-lhe que, tantas vezes, é preciso cair para, finalmente, dar de caras com a felicidade que lhe tocava, todos os dias, no ombro.

 

 

 

 

Seja feliz,


Seja o que for (Miguel Araújo)

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Miguel Araújo regressa com mais um conjunto de pequenas crónicas em que o olhar atento sobre a forma distraída de levarmos a vida, dá lugar a reflexões necessárias, nem sempre tidas em linha de conta.

A atenção plena, um termo (felizmente) cada vez mais conhecido, atravessa todo o livro do autor, que nos provoca, subtilmente, a pensar a necessidade de estarmos mais atentos, mais conectados a nós mesmos e menos um pouco às tecnologias que nos vão devorando. A pressa dos dias parece prevalecer sobre os ponteiros do relógio, acelerados e convidativos à necessidade de preencher os espaços vazios com mais tarefas, tantas vezes, igualmente vazias.

O que andamos nós a fazer com o nosso tempo? Com os nossos dias? Com as nossas pessoas?

É o ponto de partida para a leitura destas crónicas, leves na forma, profundas na mensagem que deseja transmitir. A ideia romantizada do viver melhor como um eufemismo é, por si só, um erro tremendo. Porquê romantizada? A verdade é que é, sim, possível viver melhor com o tempo que nos é dado mas essa proeza tem água no bico. Viver melhor não passa por ter mais. Pois sim, que seja um cliché, mas a troca dos verbos entre ter e ser é a chave para que saiba que nos breves momentos em que lava a loiça com toda a atenção, aos movimentos, ao som, ao olho, está a viver o melhor que a vida vai trazendo.

Este talvez seja um livro de pequenos nadas que, somados, dão forma a ideias mais completas, com mais sentido. Basta, como se fosse simples, olhar para dentro. Numa era em que o trabalho, o número de tarefas riscadas na agenda, as novas tarefas que se arranjam apenas para nos intitularmos de pessoas altamente apressadas e produtivas (?), esquecemos que o verdadeiro emprego/trabalho que temos de fazer é em nós mesmos. 

Corra um bocadinho na praia, como o Miguel Araújo faz. Medite. Nem que sejam apenas dez minutos mas faça-o, de forma consistente. Lave a loiça à mão e decifre a origem de cada nódoa nos pratos, copos e panelas. Ouça. Veja. E sinta.

Crie raízes em torno de si mesmo porque no fim, será sempre você quem conta a história que os dias foram desenhando. A escolha é sempre sua.

💗

"Eu faço por substituir o mantra em vigor pelo mais maravilhoso dos estribilhos, o do poeta Daniel Faria. Não nos é dado conhecer o rumo deste carrossel desenfreado que é a vida, mas podemos sempre repetir este estribilho até à exaustão: «Seja o que for/ Será bom./ É tudo.»"

 

Boas leituras!

 

Com o apoio:


 

Seja feliz,


Os rapazes de Nickel (Colson Whitehead)

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

«Os rapazes de Nickel», de Colson Whitehead, é uma história de ficção inspirada no caso verídico da Dozier School for Boys, em Marianna, na Florida.

Esta é uma história sobre a crueldade e a violência em nome da cor da pele. O regresso do autor é pautado por uma profunda história de amizade e os horrores que se vivem em pano de fundo no reformatório Nickel, o lugar que acolhia todos os rapazes que se afastavam a passos a largos das supostas regras da sociedade.

Elwood Curtis é um rapaz com muitos sonhos. Assume as palavras de Martin Luther King como forma de vida, de superação, de quem deseja mais da vida. Ele quer estudar, entrar na universidade, ser alguém. Mas um acaso muito infeliz rouba-lhe a oportunidade dos desejos que tem por cumprir. Acabará preso na Nickel onde conhecerá aquele que se tornará no seu melhor amigo, Turner.

A história criada por Colson Whitehead tem um impacto emocional tremendo. É um apelo à reflexão sobre o peso das leis raciais e o quanto essas mesmas leis destruíram tantas pessoas. O quanto essa realidade, infelizmente, ainda se espelha nos dias de hoje.

Ao longo da leitura acompanhamos um rol de violência contínua que leva Elwood a ver a tentativa de fuga como a única solução possível. Ao seu lado, e sem esperar, contará com a amizade de Turner. E é aqui que a força do livro acontece. É precisamente o final que marca a certeza da resiliência como palavra de ordem, a que percorre todo este livro para nos relembrar que, muitas vezes, quando a vida parece não nos dar qualquer esperança, haverá sempre alguém, presente ou não, a empurrar-nos em direcção à janela que Deus sempre abre.

Colson Whitehead volta a surpreender com esta que é, acima de todas as coisas, uma verdadeira história de superação. Recomendo.


 

 

Seja feliz,


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