Mães e Filhos (Colm Tóibín)

sexta-feira, 23 de julho de 2021

Foi a minha estreia com Colm Tóibín e não poderia ter tido melhor surpresa. Gostei mesmo muito deste que é um conjunto de histórias em que a maternidade se assume como tema central.

Por muito que se tente contrariar, é inegável o poder quase místico em torno das mães. Seja pela sua presença adequada, ausente ou exagerada, a verdade é que o papel da Mãe na vida de qualquer filho imprime-se com o peso da inevitabilidade. Sonhamos, nessa medida, com uma inevitabilidade boa, de quem é amado profundamente, amparado nos medos, os sonhos que precisam de empurrões que só as mães sabem, gentilmente, dar.

É um pouco esta ideia que atravessa todas as histórias. Em cada um dos contos, em diferentes perspectivas, encontramos mães ausentes, mães de filhos criminosos, mães que se perdem na egoísmo de quem decidiu, talvez tarde de mais, viver por si só. A música como ligação entre mãe e filho, o fio que os ligará para sempre.

Aqui há também mães que se sentem desamparadas pelos erros atrozes, escabrosos, dos filhos e, ainda assim, permanecem plantadas, raízes mais vivas do que árvores centenárias, para o que der e vier, ali, bem de perto daquela que será, para sempre, a sua pequena cria.

É um livro realmente bonito, enternecedor, mas nem sempre fácil. O papel da mãe é aqui exaltado sobre as infinitas possibilidades que se vai desmembrando na vida de cada filho, também este, diferente de qualquer outro.

Pessoalmente, o meu conto preferido foi o último: «Um longo Inverno». Neste conto em particular, com passagens absolutamente belas, há todo um simbolismo que exalta o poder e a fragilidade de uma mulher mãe. O desaparecimento misterioso de uma mãe invoca os fantasmas de uma casa, uma família, e imprime a constatação de que os verdadeiros pilares que tornavam a casa sustentável, eram suportados pela presença da mãe, pela disciplina e pelo amor invocado no carinho das tarefas domésticas.

Colm Tóibin escreve maravilhosamente. Uma escrita muito visual, como quem entre no livro e parte, destemido, para novos lugares fazendo parte, como um narrador intrometido, mas que só pode ficar calado. Tudo é dito na escrita do autor e este é, sem dúvida, um livro que é homenagem sentida a todas as mães, seja pelo lado luz, seja pelo lado sombra.

Um livro lindíssimo que nos faz refletir na pessoa mãe, invocar as nossas próprias memórias, o desafio de retornar à infância e permitir, em tantos momentos, sermos levados pelo peso leve da nostalgia.

 

Recomendo sem reservas!

Seja feliz,


O Amigo do Deserto (Pablo d'Ors)

quinta-feira, 15 de julho de 2021

Pablo d'Ors, em "O Amigo do Deserto" traz-nos uma belíssima viagem ao deserto e que é, na mesma medida, uma viagem para dentro de si mesmo. Ao longo de uma jornada de descoberta, o autor vai tecendo a história e contando os pormenores que o levarão a travar, bem de perto, essa relação com o deserto e com os seus preciosos ensinamentos. 

 

"Ao contemplar aqueles desertos, o tempo parecia ter parado para mim."

 

Neste livro há uma partilha sincera do autor nessa descoberta e revelação do poder (aparentemente) escondido do deserto. O deserto como personificação do «nada que é tudo» e que nos segura, mais firmes e felizes, no verbo da vida. 

A escrita do autor é muito limpa, direta e sem grandes rendilhados. Ajuda, esta clareza de ideia, a transmitir ao leitor que está menos à vontade com as temáticas do autoconhecimento e do desenvolvimento pessoal, sentindo-se mais pronto a olhar para dentro, talvez uma das nossas tarefas existenciais que mais nos assustam e, paralelamente, que mais nos atraem.


"Vi com clareza que o deserto, essa terra de morte que pode transmutar-se num fértil jardim, só é um lugar vazio para quem não o souber ver."

 

A ter de definir este livro dentro de alguma categoria, talvez me arriscasse a criar uma nova e dizendo-lhe: este é um «livro porta», que lhe vai abrindo caminho a uma série de questões pessoais, potenciadas pelo autor, mas alastradas a todos os leitores que decidiram acompanhar essa mesma busca.

É muito isto, sim. Um livro que é uma procura pessoal capaz de se alastrar a todos aqueles que fazem parte desta leitura, uma leitura tanto solidária quanto solitária. Pablo d'Ors dá-lhe tudo o que sabe nesta jornada pelo deserto físico e o deserto que habita em todos nós.

Talvez, mais do que nunca, tenha chegado a hora de o encararmos sem freios, sem medos e, sobretudo, sem paninhos quentes. É um pequeno livro a conter uma vida inteira de quem procura e, por fim encontra, a resposta onde menos espera.

 

Recomendo muito.

Seja feliz,

O Médico e o Monstro (Robert Louis Stevenson)

quarta-feira, 7 de julho de 2021

 Contém spoilers

Hoje falo-lhe de um grande clássico da literatura que, apesar disso e sobretudo na época da sua divulgação, foi dos menos falados e comentados. Creio que o mesmo ainda acontece hoje, apesar do conhecimento quase popular em torno da figura do peculiar médico. Independentemente da imensidão de filmes, séries, e até jogos, que inspirou, a verdade é que Stevenson foi um dos autores menos tidos em conta na sua época. Foi, inclusivamente, considerado um «autor de segunda» sendo desprezado por muitos escritores de renome àquela altura, sendo Virginia Woolf um dos casos mais gritantes.

Independentemente deste contexto, a verdade é que a realidade agora é outra, pois «O Médico e o Monstro» é considerado uma história não só de extremas particularidades como, e acima de tudo, pela atualidade que ainda faz ressoar nos nossos dias. 

Um livro que nasce na Era Vitoriana, «O Médico e o Monstro» é um dos grandes percursores das histórias de mistério. Narrado pelo carismático advogado Utterson, a história tem início quando este e um amigo deambulam pelas ruas de Londres e se deparam com uma estranha porta. Dessa porta, surge uma história partilhada pelo amigo daquele, contando-lhe que reza uma quase lenda em torno de um misterioso homem que atacara numa noite, sem motivo aparente, uma menina de 10 anos que se encontrava sozinha. A conversa suscitou ainda mais curiosidade ao advogado depois de saber que o misterioso homem, numa tentativa apressada de minimizar os seus actos, passara um cheque à família da criança, de forma a resolver o assunto. Mas a curiosidade não estancou aí. Utterson ficara a saber que o cheque em questão fora passado em nome do célebre médico, e seu cliente, Dr. Jekyll.

Está assim criada a arquitetura de uma história que se pode firmar apenas numa palavra: dualidade. Esta história é marcada por um segredo que viaja do início ao fim do enredo, segredo esse que se torna, rapidamente, no mote de Utterson e na sua necessidade, quase física, de o desvendar e, acima de tudo, de o compreender.

Saberemos, no desfecho dramático desta pequena história, que Dr. Jekyll, o médico altruísta, é o mesmo que Mr. Hyde, o homem pequeno, «escondido» e que personifica o lado sombra do primeiro. É sobre isto que narra o livro: a dualidade, a distância entre o bem o mal. O ponto mais singular, e na minha opinião o mais interessante, passa pela ideia misturada do bem e do mal na mesma pessoa e não o sentido de rectidão e divisão entre ambas as polaridades. A verdade aqui transmitida é que todos nós somos feitos de diferentes níveis de luz e que, mediante a perspectiva, a sombra tende a diminuir ou a aumentar. A verdade nua e crua é que o ser humano é essa soma, por vezes assustadora, de sombras projetadas por uma luz que se destaca em primeira mão.

Através dos experimentos de Dr. Jekyll o leitor acabará nas suas reflexões pessoais sobre o que é isto de ser bom, de ser mau, de ser ausente ou presente. Por vezes, a necessidade de um propósito, de uma vida com mais sentido, faz-nos atravessar estradas escuras que mais não são do que ecos do nosso interior, assustado e, simultaneamente, apaixonado pela ideia de se perder um pouco.

Tudo nesta história pode facilmente ser ladeado pela ideia da dualidade, inclusivamente o próprio cenário e a carismática casa do médico. Desde as duas portas, uma central e a outra, estranha e quase escondida da rua, assim como os corredores específicos que apenas permitem uma forma de lá chegar, invocam essa ideia de pratos de uma mesma balança mas em que cada um, e à sua maneira, giram em posições opostas.

Até onde poderá ir a maldade? E a bondade, poderá esta prevalecer?

Estas são algumas das questões que nos ficam a ressoar por dentro. Um clássico incontornável, atual e carismático. Um livro para ler e reler com lições, embora conhecidas, nunca assimiladas na plenitude Sublinhe-se aqui a teimosia e complexidade humana como algumas das grandes justificativas para um questionamento que tende a perdurar para lá da vida que conhecemos.

 

Recomendo. Muito!

Seja feliz,


Emma (Jane Austen)

quinta-feira, 1 de julho de 2021

É inegável, para os leitores de Jane Austen, a constatação da ironia subtil das suas histórias. Ironia essa apontada a uma sociedade estigmatizada e muito padronizada. Desde o lugar da mulher, o seu papel em detrimento à valorização, quase total, do homem, é outro aspecto inequívoco das suas obras. Em «Emma», não será diferente. E será ainda melhor.

Creio que «Emma» seja uma das personagens menos adoradas pela maioria dos leitores. No meu caso, posso dizer que Emma se tornou uma das minhas personagens preferidas de Austen, se não a preferida. Ainda estou a ponderar de coloco Elizabeth Bennet em segundo lugar. Tarefa árdua.

Nesta história acompanhamos Emma, uma jovem de boas famílias, com a ideia de estatuto social e a consciência de classe muito enraizada. É consciente das suas capacidades, a nível intelectual, mas sobretudo a nível emocional. Sem rodeios, Emma tem-se em grande, grande conta.

O leitor entra no mundo de Emma no momento em que Mrs Weston, até então a preceptora da jovem, sai daquela casa para se casar e criar a sua própria família. A solidão de Emma faz-se sentir de forma avassaladora pelo que, sem demoras, dedica-se a encontrar uma nova amizade, que lhe preencha o vazio dos dias. Conhece Harriet, jovem de um estatuto social inferior, mas cuja amizade tem tudo para proliferar: Emma orienta, Harriet segue-lhe os passos.

Jane Austen construíu uma bela história em torno das aventuras e desventuras de uma jovem rica, sem preocupações e cuja intenção, verdadeira, é provocar e criar os casamentos mais promissores da zona. Emma sente-se detentora de competências emocionais para lá do razoável, usando essas mesmas capacidades para, na sua ideia, tornar o (seu) mundo mais feliz, mais harmonioso. Contudo, há uma palavra que está sempre presente nesta que é a grande premissa do livro: equívoco.

A vaidade, o quase egocentrismo de Emma, vão dar origem a uma catadupa de mal entendidos, de muitos equívocos, transformando as personagens em peqenas marionetas conduzidas ao sabor da sua própria, e inocente, vontade. 

Quando refiro que a maioria dos leitores não gosta de Emma, creio que o mesmo se deva à sua intromissão, contudo, não consegui percecioná-la com má intenção nas suas acções. Emma deseja, profundamente, criar uma sociedade mais feliz e sente, genuinamente, que tal pode estar ao seu alcance. Os equívocos, contudo, vai surgindo um atrás do outro, dando origem a uma teia de histórias que se misturam, a segredos que podem mudar vidas e a muitas situações caricatas.  

De todas as personagens, Mr. Knightley é a que se assume como pêndulo de Emma. Na minha perspectiva, esta é uma história não só de apontar de dedos a uma sociedade muito tacanha, bem ao jeito de Jane Austen, como é também a história de uma jovem, a desenvolver-se emocionalmente ao encontro da sua verdadeira maturidade, que aprende com os seus erros, cresce e distancia-se daquilo que, outrora, vivia como dado adquirido. Encontra, através do caos dos outros, ecos de si mesma e, finalmente, o equilíbrio de que tanto precisa.

«Emma» é, assim, uma história de crescimento e de maturidade na sombra de uma sociedade tipicamente recheada de maus vícios. E todos nós sabemos que maus vícios, não nos levam a bons lugares. Não concorda?

Mais um clássico incontornável da literatura e que só vem reafirmar o quanto Jane Austen tinha para nos dizer à sombra das aparentemente "simples histórias de amor". 


 

Seja feliz,

 

A infância é um território desconhecido (Helena Vasconcelos)

quarta-feira, 23 de junho de 2021

Helena Vasconcelos foi, e continua a ser, uma das grandes surpresas deste 2021. Escreve com clareza e bondade, não se resguarda e dá o conhecimento sem pejo. Isto, por si só, já descreve um bom autor.

«A Infância É Um Território Desconhecido» é um ensaio centrado na literatura e na criança como personagem principal. Aqui a infância é retratada, e respeitada, em torno das inúmeras histórias que ficarão para sempre no nosso imaginário. 

A premissa não poderia ser mais bonita. Aqui lemos as variações que o conceito da infância tem sofrido ao longo do tempo, desde a época em que a criança era vista como "um adulto em miniatura" até às novas concepções da Rainha Vitória, que sempre deu especial atenção às dinâmicas familiares e o cuidado aos mais pequenos (independentemente das conhecidas oscilações de humor da Rainha, a verdade é que o seu papel foi e continua a ser determinante na forma como ainda hoje percecionamos as famílias). A par de toda esta evolução conceptual, Helena Vasconcelos vai tecendo pontos de reflexão muito pertinentes à luz das personagens infantis que revestem o nosso imaginário. Desde "Peter Pan", "Alice no País das Maravilhas", "Tom Sawyer" ou "Mulherzinhas", vamos conhecendo curiosidades imperdíveis e que nos fazem pensar sobre o lugar da criança. Será a criança má ainda antes de nascer? De onde vem a associação das crianças à inocência?
Estas são só algumas das muitas reflexões que acabamos por fazer e que se perpetuam. 

Num trabalho de pesquisa e investigação muito aprofundado, a autora revela aqui o seu enorme à amor à literatura e, à luz da infância, convida-nos a também nós refletirmos sobre uma das fases mais especiais, desafiantes e importantes do nosso desenvolvimento.

"(...) afinal, como é que adultos imaginam figuras de crianças e escrevem sobre elas?"

Este é um exemplo, entre muitos, dos questionamentos feitos pela autora e que nos levam a considerar, na mesma medida, a infância dos próprios autores que tanto gostamos e de que forma os seus tenros anos formaram os escritores que foram, que são.

Correndo o risco de me repetir, esta é uma das premissas mais bonitas de que tive oportunidade de ler num ensaio. Neste pequeno livro abrem-se inúmeras curiosidades muito apetecíveis aos prezados amantes da literatura. 

É um ensaio no qual se aprende muito e, ao mesmo tempo, nos divertimos na curiosidade saciada entre (tantas) peripécias de alguns dos nossos autores mais estimados.

" Os contos para crianças - e com crianças - têm acompanhado as mudanças da sociedade, e a forma de «ler» a infância tem alterado a maneira como criamos, educamos e amamos os nossos filhos e netos, bem como a forma como todos nós como indivíduos construímos o nosso imaginário, a partir da infância."

 

Espero que leia. E espero que goste.

Boas leituras.

Instinto (Ahsley Audrain)

quarta-feira, 16 de junho de 2021

 

Esta é uma história que não o vai deixar indiferente. Tudo começa quando um homem e uma mulher se apaixonam. A partir daí, sucede a dita ordem "natural" das coisas: apaixonam-se, namoram, sentem cada vez mais a necessidade de partilharem as suas vidas, casam-se e, mais tarde, vivem a realidade de uma gravidez muito desejada.

Até aqui, caro leitor, parece-nos uma história bonita, previsível, mas não tanto assim. Na verdade, de previsível, pouco tem. A partir do momento em que a sua filha nasce, esta mulher sente a vertigem constante em que a sua vida se transformou. Não há sossego. Seja porque a filha grita sempre quando está perto da mãe. Seja porque a mãe não se sente intimamente ligada à sua bebé. Seja pelos os sentimentos de comparação com o marido e o amor que a filha nutre por este, há uma série de acontecimentos que só afundam ainda mais o abismo em que esta mulher parece estar destinada a cair.

O facto de não se sentir verdadeira e emocionalmente ligada à sua filha, esta mãe vive um tormento quase palpável ao longo das páginas que dão forma a esta história. Questões relacionadas com o seu desempenho enquanto mãe, as suas qualidades e capacidades vão sendo, gradualmente, postas em causa. Uma a uma, igualmente potenciadas pela menina, agora, mais crescida e com uma intenção clara de afastamento da mãe.

A primeira questão que surge e que faz deste livro um dos suspenses psicológicos mais aflitivos que já li, é: estará esta mãe a contar-nos a verdade? Estará esta mãe realmente convicta de que a filha não a ama? Estamos, de facto, perante uma criança naturalmente má?

No momento em que a mãe é agraciada por uma segunda gravidez, tudo parece mudar. O amor materno é uma certeza assim como a vontade, quase inconsciente, do típico "agora farei tudo muito melhor". Concentrada nesta realidade, parece-nos, por vezes, que o afastamento da mãe e da filha é ainda mais evidente, além de que a estrutura do casamento e a relação do casal, está igualmente nas ruas da amargura. Mas esta mãe não quer saber assim tanto disso, é o que nos parece. O mais importante é o amo que nutre pelo seu filho e que sabe ser amplamente recíproco.

Até ao dia em que uma tragédia acontece. O estalar do verniz de uma família aparentemente já ditada a um caos inimaginável. Não poderei contar-lhe mais até porque é este o momento de viragem e que nos deixa com ainda mais questões para refletir e, de certo modo, nos assustar com as infinitas possibilidades que um sistema familiar pode abarcar. Acredite, pode realmente ser assustador pensar nas temáticas que a autora nos propõe.

A verdade é que, mais do que um suspense psicológico, "Instinto" é um livro que nos narra a experiência da maternidade não romantizada.
De forma muito crua, muito real, conhecemos uma mãe feita de dúvidas, desamparada nas inúmeras questões e projeções de uma sociedade que parece saber tudo na ponta da língua mas que não passa disso mesmo: um saber muito estereotipado e redutor.


Este livro surpreendeu-me pelas verdades difíceis, que ninguém, muito menos uma mãe quereria enfrentar: terei dado à luz um bom ser humano? Terei criado um monstro? Qual o meu papel no seu presente e no seu futuro? Serei eu, afinal, boa mãe?


Uma história muito bem construída e que se alimenta, para lá do suspense, de verdades dificilmente expostas sobre o amor maternal e o poder sombrio que se esconde (e vive) em todos os sistemas familiares.

 

Seja feliz,

 

O Homem mais Feliz do Mundo (Eddie Jaku)

sexta-feira, 11 de junho de 2021

Eddie Jaku é um sobrevivente. Jurou a si mesmo que se saísse vivo do campo de concentração, iria sorrir todos os dias. E assim fez. A vingança improvável de um homem que, ao invés de se focar na perda e no sofrimento sem escala, optou por responder às agruras da vida, sendo feliz. Este livro é uma lufada de ar fresco, que sublinha o poder que nos é transversal a todos: seremos sempre nós os responsáveis pelas nossas escolhas e que a felicidade é possível se assim o decidirmos. Eddie decidiu e escolheu. Escolheu ser o homem mais feliz do mundo.

Este é também um livro que se transforma em estalo de luva branca: que andamos nós a fazer da vida? Vítimas queixosas porque tudo nos corre mal ou responsáveis pelas voltas que a vida dá e pela nossa mestria em transformar a adversidade em oportunidade? Para pensar, não me dirá?

Ao longo desta leitura, sobre um tema tão pesado e difícil, o leitor dá consigo mesmo a pensar que a vida é, realmente, uma preciosidade e que somos os únicos responsáveis pelo ponto de foco ao qual decidimos concentrar a nossa atenção. Eddie Jaku é um homem bem disposto, confessa-se pouco hábil na escrita mas a verdade é que passa a sua mensagem como ninguém. Este é um livro sobre um tema que, infelizmente, todos reconhecemos como um dos piores de sempre e, ainda assim, na escrita sorridente do autor, assistimos a brechas de luz, aqui e ali, pela forma consciente que assumiu ao longo de toda uma penosa jornada.

Este é um daqueles casos em que as agruras da vida se transformam em oportunidades. A vontade de viver superou os sofrimentos constantes, físicos e psicológicos. Eddie construiu uma vida após os escombros em que a mesma se havia tornado. Semeou as sementes certas e, independentemente do solo não adivinhar boas colheitas, a sua consciência forte e focada, permitiu-lhe virar a página e seguir em frente. Obviamente, com as bagagens do passado bem perto, relembrando que a vida é esse oscilar de pêndulo, ora para lá, ora para cá, mas sempre embalada no igual ritmo de quem sabe que tudo passará.


Um livro que é uma verdadeira lição de vida e o qual recomendo com ambas as mãos.


Seja feliz. Feliz Sexta-feira.

💖

Seja feliz,


O Moinho à Beira do Floss (George Eliot)

quinta-feira, 6 de maio de 2021

Há livros que nos surgem na vida como certas pessoas, que aparecem e ficam para sempre. Falo daquelas pessoas com quem podemos sempre contar, que são presença mesmo sem estarem ao nosso lado, que nos orientam independentemente do nosso próprio estado de espírito. E isto, cada vez me apercebo mais, acontece igualmente com determinados livros. Há livros que vamos ler para sempre, mesmo que não estejamos, consecutivamente, a abrir as suas páginas. Ficam connosco, tornam-se amigos e até, um pouco, orientadores dos nossos próprios receios e sonhos.

Aconteceu-me isto na minha estreia com George Eliot e o seu «O Moinho à Beira do Floss». Desde então, e já li o livro há uns meses, as minhas experiências de leitura ainda se mantêm na sombra desta história. É mais forte do que eu. Para juntar a tudo isto, Maggie Tulliver, a heroína desta história tão especial, destronou - sem dó nem piedade - Jane Eyre, a minha personagem preferida desde que me lembro.

George Eliot escreveu um livro sobre o papel da mulher e a transparência com que este se desenvolvia quer no seio da família como na esfera social do século XIX. Mulheres curiosas são perigosas, assim como mulheres que lêem, falam e gostam de aprender, são um perigo a reter em mão de macho, que sabe sempre o que faz.

Deixo, porém, um sublinhado que considero importante: não é minha intenção disparar aqui em favor do feminismo, falar mal dos homens no geral e passar a ideia de uma fragilidade inerente só ao sexo feminino. Não é nada disso, e é também um pouco disso. Pois.

«O Moinho à Beira do Floss» é um livro sobre uma família que conhecemos no seu auge financeiro, contudo, um incidente fruto do patriarca da família, deita tudo a perder e viveremos o declínio financeiro, e social, de uma família muito arreigada aos estatutos sociais e valores morais.

E depois, há Maggie. Além de escrever uma história sobre a família, o poder desta em cada um que a forma, George Eliot cria também uma espécie de romance de formação, uma vez que acompanhamos vivamos o crescimento de uma menina muito peculiar, inteligente e com o saco de sonhos no lugar do coração. Falar de emotividade quando nomeados Maggie, é falar pouco. Desde pequena, parece sentir tudo em dobro, de uma forma muito especial e única. A família, sobretudo o irmão Tom, assume tal importância que, o passar do tempo e o consequente crescimento, não a permitem - como gostaria - tornar-se a mulher independente que sabe ser, desde que nasceu.

É uma história de verdadeiro sacrifício por amor. Amor à família. Há um momento na vida desta mulher em que percebe que a sua inteligência e a vontade de amor em tudo o que diz e sente, são um prejuízo a si mesma, na imagem tosca de uma sociedade feita por e para homens. Por isso mesmo, decide a partir daquele momento anular o tumulto que sempre lhe vivera no peito, tornando-se morna, quase pálida e servente dedicada à família.

Apesar destas intenções, há uma verdade sempre difícil de aceitar: a essência de uma pessoa nunca morre. Pode mudar, pode reorientar-se, pode agrupar novas formas de ser e estar, mas a essência, aquilo que lhe vai dentro, isso nunca jamais alguém poderá aniquilar para sempre. 

Pelos caminhos mais inesperados, Maggie acabará por exaltar a sua verdadeira forma de ser e será precisamente esse o momento em que se tornará inesquecível, para tudo e todos os que vivem perto do Floss. Poderia contar-lhe tim tim por tim tim desta história e das vivências que levarão Maggie a renunciar a si mesma, mas não o farei. Não o faço porque acredito que este é mais um daqueles casos de leitura que não precisa de qualquer arnês prévio. O leitor não precisa de saber com o que conta aqui, dentro deste livro. A única coisa que precisa de saber é que estará, se se decidir à leitura, prestes a conhecer algumas das personagens mais marcantes da literatura, adornadas por uma história de aparentes temas repetidos mas que, na sua essência, se alastram pelo tempo e lhe aumentam a importância. Mas que tema é esse?, perguntaria. 

A família. O poder vitalício da família. Os seus laços, que nunca se rasgam e que por mais desavenças que a vida insista em tecer, há um amor maior do que tudo e que pode tudo.


Um dos melhores livros que já li e a entrar diretamente para a minha já tradicional lista de «Os Memoráveis» do ano.


Seja feliz,


Dia internacional do livro infantil

sexta-feira, 2 de abril de 2021

Eu digo que os livros são, para mim, o portal sagrado que não me deixa desnorteada no mundo chato dos adultos.
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Por tudo isto, não podia escolher melhor história para assinalar o Dia Internacional do Livro Infantil: "Isto é meu!" de Blandina Franco e José Carlos Lollo. Esta é uma história obsessiva e de posse em torno de um livro, contra tudo e contra todos.
Quando o assunto é o poder dos livros, sejamos todos pequenitos a bater com o pé e a morder, se for preciso, contra quem ouse estragar as nossas melhores histórias e as nossas convicções.
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Leiam para e com as crianças. Leiam todos os dias. Leiam muito e deixem-nas perguntar mais ainda. A ler se cresce, por dentro e por fora.

 

 Com o apoio:



 

Seja feliz,


Leitura do momento

segunda-feira, 22 de março de 2021

É uma leitura verdadeiramente inspiradora, sobretudo nestes tempos de pandemia em que é menos fácil enxergar alguma luz entre a escuridão. Mas é sempre possível.

Um dos ensinamentos do autor que mais impacto teve em mim, e por já me ter confrontado com essa máxima mais vezes, é que a felicidade é algo que podemos escolher.

Se é fácil? Talvez não.

Se é possível? Absolutamente.

 

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Com o apoio,

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Uma boa semana e seja feliz!

Mulheres Excelentes (Barbara Pym)

segunda-feira, 15 de março de 2021

Sobre "Mulheres Excelentes", de Barbara Pym, John Updike disse "Uma lembrança surpreendente de que a solidão pode ser uma opção (...)". Creio que talvez seja uma das formas mais inteligentes de trazer a lume a grande essência desta história.
Aqui conheceremos Mildred, uma jovem com trinta e poucos anos, solteira, e que vive sozinha. A história começa no momento em que vê chegar os seus novos vizinhos, os Napier. A senhora é antropóloga e o marido, oficial da marinha. Só pela distâncias de tais áreas, a nossa jovem torceu o nariz, mas veremos.
Atrás da cortina, a nossa personagem vai seguindo os passos dos recém-chegados mas, mais tarde, e quis o destino, que se cruzasse com a Helena Napier quando se dirigia ao contentor do lixo. Começa uma amizade sem saber bem como mas deixa-se arrastar em parte por um sentimento de vazio que se tem instalado na sua vida ao longo dos anos.
Desde o trabalho monótono ao tempo que dedica às benfeitorias da igreja, onde estão os seus dois grandes amigos, o Padre Malory e a irmã Winifred, vai vivendo os dias na tranquilidade de quem sabe o que espera.
A relação conflituosa do casal vizinho vem agitar a sua vida calma, monótona e muito arrumada. Através de uma série de quezílias entre a esposa e o marido, e um terceiro elemento para reforçar a fragilidade do casal, Mildred vê-se envolvida numa trama em que tem um papel apaziguador, de quem é vista com sabedoria para dar e vender quando, nem ela mesma, se perceciona assim.
Barbara Pym foi uma autora conhecida, particularmente, pelo tom irónico que atribuiu às suas histórias e à forma como aborda o tema da mulher na sociedade. É visível a distinção nítida entre homem e mulher, sendo que a mulher excelente é aquela que tem os maiores méritos mas que por ser "uma boa mulher", não atrai o interesse dos homens. Entre ironias e farpas bem afiadas a toda uma sociedade que continua a priorizar o homem como detentor de escolhas e o especialista em definir a distância entre certo e errado, a autora vai-nos divertindo com uma língua muito afiada e um dedo em riste às formas tacanhas de pensar o papel da mulher.

Repare, ao longo desta história, Mildred percebe que está cansada de os aturar. Que na verdade a paz da sua casa, os horários que define para si mesma e as amizades que decide semear, são de exclusiva decisão sua. Esta mulher excelente ficou cansada de apaziguar todas as vidas, menos a sua. 

É aqui que o pensamento de Updike ressoa na minha forma de ver e analisar este livro. A solidão é, para surpresa de muitos, uma opção e talvez por isso mesmo, de solidão não tenha nada, sobretudo pela forma, também tacanha, como a maioria pensa. Se uma mulher está quase a pisar a barreira dos 40 anos e vive sozinha, solteira, deve ser muito solitária. Entenda-se solitária como sinónimo de uma enorme tristeza. Não é isso que acontece quando conhecemos Mildred, uma excelente representante, eu diria, de todas as mulheres que são felizes na presença de si mesmas, na vida que construíram e que, por isso, não mudariam nada.

Um livro com alguns laivos de comédia mas, na minha opinião, é sobretudo um livro sobre a figura desenquadrada da mulher que tanto insistem em perpetuar.

Apesar de ter acolhido este livro com enormes expectativas em torno da ideia de comédia e de que me iria rir bastante, pois na altura estava a precisar disso mesmo, acabou por se tornar numa interessante, e mais aprofundada, experiência de leitura.


Seja feliz!

Na companhia de George Eliot

domingo, 14 de março de 2021

Percebo que a minha felicidade genuína de leitora vive, aconchegada, dentro dos clássicos. Estou a ler de momento «O Moinho à Beira do Floss» e está a ser uma feliz companhia.

O que anda a ler?


Um bom fim de semana e seja feliz!

Pássaros Feridos (Colleen McCullough)

quinta-feira, 11 de março de 2021

"Existe uma lenda acerca de um pássaro que só canta uma vez na vida, com mais suavidade que qualquer outra criatura sobre a terra. A partir do momento em que deixa o ninho, começa a procurar um espinheiro-alvar e só descansa quando o encontra. Depois, cantando entre os galhos selvagens, empala-se no acúleo mais agudo e mais comprido. E morrendo, sublima a própria agonia e despende um canto mais belo que o da cotovia ou do rouxinol. Um canto superlativo, cujo preço é a existência. Mais o mundo inteiro para para ouvi-lo, e Deus sorri no céu. Pois o melhor só se adquire a custo de um grande sofrimento. Pelo menos é o que diz a lenda."


Assim começa «Pássaros Feridos» de Collen McCullough. Sabemos, consciente ou inconscientemente, que a vida vai passando numa espécie de rimo pendular. Que nada é estanque e aquilo que emanamos, mais cedo ou mais tarde, acaba por nos atingir. Seja isso bom ou mau.

Esta é uma poderosa história de amor entre Meggie e o Padre Ralph. Num romance que considero de formação, vamos conhecendo a jornada de vida de Meggie, menina ruiva, cheia de vida e de uma enorme maturidade, a par da sua família, pais e irmãos. 

Não é uma vida fácil, dedicada aos trabalhos do campo e tratamento de animais. Meggie parece adaptar-se facilmente à vida mais calejada mas é uma menina que crescerá, tornar-se-á uma jovem de enorme beleza e no momento em que a família se muda na sequência de oferta de trabalha da irmã rica do pai, a vida parece ter-se escancarado numa janela de possibilidades.

No entanto, no momento em que conhece o Padre Ralph, homem belo, bem falante e cuidador, ela parece saber, desde os tenros 10 anos de idade, que a sua história já estaria escrita. O mesmo sentimento de derradeira certeza apodera-se, na mesma medida, do padre. A diferença, porém, é que a fé e devoção do homem a um Deus Superior, fê-lo desde logo fechar os olhos ao amor indigno à sua condição perante a lei a que cedo se prostrou. Honrar Deus sob todas as coisas.

Esta é a grande premissa do livro. Não pense o leitor, no entanto, que é apenas uma história, como tantas outras, em que um padre sucumbe à beleza de uma mulher pondo em causa a religiosidade e o propósito de vida de quem se entregou a Deus. A relação de ambos cresce de uma forma muito bonita.

Há muitas voltas e reviravoltas na vida de Meggie. Ela cuida dos irmãos, aprenda a lidar com os cavalos, aprende a amar a Austrália com um amor desmedido, aprende a viver na ausência do padre que após usufruir plenamente da herança da sua tia, parte de encontro a uma renovação da sua suposta fé.

Os anos passam. Meggie torna-se mulher. Casa-se. Tem esperança. Perde a esperança. Aumenta a saudade da família, agora longe, e na ausência de um marido que concentra todas as suas atenções na apanha da cana, amealhando sem parar e sem nunca gastar um tostão. Meggie ultrapassa-lhe as vontades de riqueza e consegue engravidar. Nasce-lhe uma menina de temperamento muito forte.

E tantas, tantas outras coisas esperam o destino de Meggie. A vida feita num caminho tortuoso, que lhe exige o canto mais sofrido pois sabe que é na luz desse mesmo sofrimento, acarretando com todas as consequências desse pêndulo que sempre volta disparado, que poderá ser verdadeiramente feliz, mesmo que num rasgo pequeno de tempo.

Nesse caminho pautado pelo sofrimento, pelos acasos que não existem, pelos anos que passam, o padre Ralph acaba sempre por voltar. Destino? Amor? Algo mais forte do que tudo isso junto?

Nunca saberemos. Sabemos apenas que a vida tem uma matemática muito própria e que entre somas e subtrações, Meggie alcançou os sonhos a que sempre aspirou desde pequena e que, na mesma medida e na audácia de uma ironia que só Deus consegue ter, vê-os desaparecer da forma mais penosa.

 💗

Colleen McCullough escreveu uma história sobre o poder destruidor do amor e a beleza que, independentemente do sofrimento que se sabe atrás da porta, impera sobre todas as coisas, indo de encontro a esse último canto do pássaro. Mesmo sabendo ser derradeiro, e final, Meggie foi feliz na sombra de um sofrimento certo mas que, ainda assim, lhe proporcionou a forma certa de um destino que sempre soube ser o seu.


Um drama intenso sobre uma linda e proibida história de amor, feito de personagens fortes, decididas e sem medo de enfrentar a sombra de uma decisão que vai contra tudo e contra todos.


A insustentável leveza do ser (Milan Kundera)

segunda-feira, 8 de março de 2021

 

Creio que a maioria concordará com a beleza deste título. Torna-se ainda mais bonito, e significativo, quando paramos para pensar no grande intuito do autor: Kundera refere-se à problemática do tempo, como insustentável leveza que ninguém consegue guardar para si mesmo e largamente dependente do contexto em volta. O tempo é sentido como uma corrente que passa uma vez, tornando cada um dos nossos gestos completamente únicos, estanques, que não mudarão jamais. Sendo então fragmentos de tempo que não se repetem, tornam-se leves mas, precisamente por isso, insustentavelmente leves. Logo na primeira página o autor faz referência ao conceito de «eterno retorno» (Nietzsche), plantando a teoria de que o peso desse eterno retorno às nossas vivências, anulando a espontaneidade dos nossos gestos, não pode ser comparável ao peso da insignificância e falta de sentido dessas mesmas vivências (únicas) num mundo que não se repete, que é único e que as nossas decisões são taxativas, sem direito a um rascunho prévio.

Não é tão confuso como pode parecer, à partida. Este é um livro feito de filosofia. Mais do que um romance inserido numa época histórica muito específica (Primavera de Praga), é um livro que escorre filosofia de uma forma muito bela. Dei comigo a pensar várias vezes no quanto aqui podemos encontrar os grandes princípios da filosofia oculta e o quanto esta questão da vida vista pela leveza ou pelo peso de um tempo que só se vive uma vez, ser tida em linha de conta pelas polaridades. Se a sombra é tão somente a ausência de luz, então, a leveza da vida mais não é do que a ausência desse peso, tantas vezes tido como fardo. Kundera, precisamente neste ponto, faz-nos pensar na necessidade tão humana de nos inserirmos nos extremos, na ponta de uma escala, se assim for mais simples entender.

Se levar uma vida leve nos deixa aparentemente livres, então porquê que a maioria das personagens neste livro necessita, com uma força capaz de lhe arrancar as entranhas, de viver à luz de um peso que vai sustentando uma vida feita de dúvidas?

"Mas, na verdade, será o peso atroz e a leveza bela?
O fardo mais pesado esmaga-nos, verga-nos, comprime-nos contra o solo. Mas, na poesia amorosa de todos os séculos, a mulher sempre desejou receber o fardo do corpo masculino. Portanto, o fardo mais pesado é também, ao mesmo tempo, a imagem do momento mais intenso de realização de uma vida. Quanto mais pesado for o fardo, mais próxima da terra se encontra a nossa vida e mais real e verdadeira é. Em contrapartida, a ausência total de fardo faz com que o ser humano se torne mais leve do que o ar, fá-lo voar, afastar-se da terra, do ser terrestre, torna-o semi-real e os seus movimentos tão livres quanto insignificantes.
Que escolher, então? O peso ou a leveza?"

Representado por quatro personagens principais, Tomas, Teresa, Sabina e Frank, o leitor viverá estes dilemas à luz de quatro personagens perdidas em si mesmas, fragilizadas e perdidas de um sentido de vida. Na mesma medida, questionamos o que é. de facto, ter um sentido na vida? E eis que volta a temática que resume este livro: o poder do tempo e a necessidade que o ser humano tem de viver o mundo como um mar de possibilidades e angústia de um tempo que nos imprime, momento a momento, uma marca eterna, por dentro e por fora.

O narrador parece um alter ego do próprio autor, dando-nos os seus pareceres e, acima de tudo, incutindo no leitor uma série de dúvidas. Há certos trechos da história que parecem tão reais quanto um sonho, serão de facto? Acredito que as dúvidas interiorizadas em cada personagem não só dão forma ao romance como às próprias dúvidas de quem lê.

Ao longo da história acompanhamos a relação entre Tomas, um adúltero inveterado e Teresa, mulher meia perdida, numa clara representação de suposta leveza e suposto peso. Também em Sabina, artista, amante de Tomas, mulher independente e que cativa o amor incondicional de Frank, podemos ver essas polaridades bem nítidas. Neste livro, ninguém está bem. Ninguém é feliz. E todos procuram um propósito. Quanto mais perto parecem chegar, mais rapidamente surge a vontade de inverter a marcha, de viver outra vez, de um novo ângulo. É um livro feito de acasos, em que seis outros acasos tornaram possível a Tomas conhecer Teresa e tantos outros acasos fariam Sabina querer fugir do amor de Frank.

Tal como as bonecas russas, «A insustentável leveza do ser» é um sublinhado constante à difícil arte de existir. É a existência pessoal, a colectiva a par de um contexto histórico marcante e em que as próprias personagens se misturam nele, para no final chegarmos a uma aflitiva questão: e se?

Houvesse um sinónimo feito de questão para esta história e eu atribuía, de olhos fechados, um grande "e se?" E se Teresa não tivesse ido embora? E se Tomas não traísse Teresa constantemente? E se Sabina encontrasse um propósito na vida? E se Frank tivesse tomado uma decisão mais cedo?

E então este é o momento em que, caro leitor, paramos, fechamos o livro e sentimos que dentro dele há um esboço perfeito do verbo viver. É tentativa e erro, uma atrás da outra, é a história que se repete fora e dentro de nós, que nos define mas nunca inteiramente. É o amor melancólico, feito de desculpas, é a constatação de que não podemos viver duas vezes o minuto que já passou. É a vida a entrar-nos pelos olhos dentro e o querer, ávido, de enxergar tudo, memorizar para, enfim mais descansados, reviver dentro de nós o que já foi, o que nunca será e o que desejaríamos que realmente fosse. Nessa compensação, a vida vai acontecendo.

Um livro muito especial em que atrelado a um enredo e a um conjunto de personagens a questionarem o tempo, a existência e o amor, nos leva também a perder-nos entre filosofias e anseios sobre o que fazemos nós das nossas vidas e até que ponto gostaríamos de retornar e subtrair ou somar uns quantos «e se?». Seria isso peso ou leveza?


Um livro que jamais nos fará deixar de questionar.

Um livro, eu diria, intemporal.

Gostei muito e só posso recomendar.



Seja feliz,

A ler «Mulheres Excelentes»

domingo, 7 de março de 2021

"É óbvio que nunca foi casada - disse ela, pondo-me no meu lugar entre as fileiras de mulheres excelentes."

 

«Mulheres Excelentes» é a leitura do momento e é considerada a comédia mais divertida de Barbara Pym. É, também, a minha estreia com a autora. 

Desejo-lhe um bom Domingo, repleto de boas leituras.

 

Seja feliz,


Arco-íris (Banana Yoshimoto)

quarta-feira, 3 de março de 2021

 

No dicionário, «arco-íris» é definido como: "Fenómeno atmosférico luminoso, em forma de arco, apresentando as sete cores do espectro solar, e determinado pela refracção e reflexão dos raios solares sobre as nuvens."

Na vida da jovem Eiko, «Arco-íris» significa, maioritariamente, o restaurante onde trabalha e onde é feliz pelo que faz. Sente que é esse o seu grande sonho, trabalhar num restaurante, e se para muitos olhos o seu sonho pudesse ser míope, a ela pouco interessava. É no «Arco-íris» que é feliz.

Após a morte da sua mãe e da avó, Eiko sente que a solidão a empurra de encontro à necessidade de conhecer novas realidades, de se encher um pouco do vazio que a sua vida se tem vindo a transformar. Dessa forma, parte para o Taiti , onde deseja conhecer em profundidade a grande influência do restaurante onde trabalha. O dono do restaurante é um apaixonado  pelo Taiti tendo daí extraído a essência do seu próprio restaurante.

Será na viagem de Eiko que conheceremos em maior pormenor os reais motivos daquela viagem e toda uma vida que ficou lá atrás, por acabar de se escrever e o medo, incluído, do final dessa mesma história, tão sua. E tão cheia de um amor intrometido.

É sempre bom relembrar a delicadeza da escrita de Banana Yoshimoto que em muito pouco, diz tudo sobre isto de viver, de amar e de sonhar. Parecem coisas tão pequenas, em frases que nos rasgam a atenção e nos dividem entre a história da própria Eiko e, sem querer, a nossa própria.

É um livro enternecedor sobre uma jovem mulher que sente estar na hora de crescer. É a história de uma menina mulher que, pela primeira vez, ousa viver para lá das regras impostas. Há moralidade, há respeito mas há, acima de tudo, o amor avassalador que acaba por ir contra a corrente das coisas (supostamente) bem feitas.

Com temas universais como a procura de um sentido, o amor, o medo e a rebeldia, a autora escreve uma história sobre recomeços e o desejo de viver num sentido mais amplo, mais fincado. Se o arco-íris representava para Eiko o lugar onde podia ser feliz, a trabalhar, também o tempo lhe foi mostrando um duplo sentido daquela palavra, um sentido que lhe escondia a promessa de uma felicidade por desbravar:

 🌈

"No meu futuro, a verdade faria o seu caminho por sua conta e risco. (...) Num ápice as coisas haviam mudado de um modo surpreendente, mas agora tinha um arco-íris em frente aos meus olhos.
Isto é um sinal do destino. Um sinal demasiado belo para ser verdade. Fixo na memória este panorama e depois não olharei para mais nada, deixarei que as coisas sigam o seu curso, pensei, quase a rezar. Enquanto isso, de olhar fito no céu, observava aquele pequeno arco-íris que brilhava imóvel."

Os raios solares começam, então, a brilhar sobre as nuvens. 


Boas leituras, seja feliz.

A Mulher de Branco (Wilkie Collins)

segunda-feira, 1 de março de 2021

«A Mulher de Branco», de Wilkie Collins, foi considerado o primeiro livro a integrar um subgénero vitoriano tido como «romance de sensação». Este subgénero é, essencialmente, definido por narrativas sobre crimes, como identidades falsas ou infidelidade, ambientadas nos lares ingleses, e cujos personagens parecem estar sempre acima de toda e qualquer suspeita, sendo simpáticos, cordiais, quase irresistíveis. Existem sempre novos segredos a cada página, incitando no leitor uma grande curiosidade.

Este subgénero viveu o seu melhor momento na década de 1860, contudo, não foi aplaudido unanimemente, muito pelo contrário. A criação do novo género literário surge no paralelismo das mudanças de hábitos dos leitores até então que, no surgimento de novos pontos de interesse culturais, começaram a desejar histórias mais estimulantes. Enquanto a classe alta da sociedade considera negativamente este tipo de literatura, a classe média sente nestes livros a distracção de que precisava, pelo tempo sempre ocupado, uma geração cheia de projectos e que, por isso mesmo, o estímulo de uma leitura cheia de segredos a serem revelados, página a página, lhes comprou total atenção. Esse surgimento de uma nova perceção do tempo, da pressa constante, e de novos entretenimentos, suscitou na literatura a necessidade de criar outras maneiras de instigarem o interesse no leitor de classe média. Assim, a fórmula passava pela ansiedade e curiosidade em descobrir as desventuras dos personagens sempre tão intrigantes e reviravoltas constantes. Uma outra característica  vital deste género é a "inquietação": as sensações provocadas pela ficção são tão vivas que acabam por se espelhar nas sensações do próprio leitor. 

Sobre as fontes de inspiração de Collins para a criação desta obra, existem duas teorias, ambas pautadas pela ambiguidade, sem nunca terem sido, de facto, confirmadas. Apesar dessa mesma ambiguidade, ambas as propostas de inspiração são geniais: a primeira defende que a inspiração do autor teve lugar num julgamento francês a que o autor teve acesso, sobre a viuvez de Adélaide-Marie-Rogres-Lusignande Champignelles e um dos filhos se ter apropriado, injustamente, da herança da sua mãe. A segunda hipótese é ainda mais interessante e aponta para que numa noite de Verão, na década de 1850, os irmãos Collins acompanhavam um amigo de volta a casa quando, subitamente, ouviram um grito de mulher e naquele breve espaço de tempo enquanto pensavam na atitude que deveriam tomar, foram surpreendidos pelo surgimento de uma mulher de branco. Corajoso, Collins fora o único que deixara os companheiros para trás, indo ao encontro da mulher (relembremos a cena de Walter e vemos aqui um nítido espelho de ambas as cenas), mulher essa que viria a ser o grande amor da sua vida, Caroline Graves.

Suposições à parte, a verdade é que já há muito que não tinha uma tão boa companhia como este «A Mulher de Branco». Reforço aqui todas as características do género e sublinho que a curiosidade é um dos factores sempre presentes ao longo de toda a leitura.

Independentemente o género literário não ter granjeado, na época, os melhores elogios por parte da classe alta, a verdade é que o autor, que começou a escrever esta inesquecível história no dia 15 de Agosto de 1859, obteve um enorme sucesso. A recetividade foi tão grande que acabou por se popularizar  em todo o lado desde a venda de perfumes inspirada na mulher de branco, vestuário de mulher na cor branca, os convidados em festas dançavam quadrilhas inspiradas pelo romance e grandes autores como Thackeray, leram o livro num só dia, não o conseguindo largar.

Outro dos aspectos que só valorizam ainda mais este livro, é a complexidade e o cuidado que incutiu em cada uma das suas personagens. Pensemos em Fosco, por exemplo, e será impossível negar o quanto esta personagem é enervante e, simultaneamente, genial.

Sobre a história em si tem como protagonista Walter Hartright, um professor de desenho, residente em Londres, e que lhe surge a oportunidade de um novo emprego em Cumberland,onde passaria quatro meses em Limmeridge a ensinar a arte do desenho a duas irmãs, com excelentes condições de trabalho. Precisamente por não gostar muito de Londres, o nosso personagem aceita o trabalho numa espécie de refúgio. 

Na noite em que caminha em direção à mansão, encontra uma estranha mulher, que virá a descobrir mais tarde que se trata de uma paciente psiquiátrica, toda vestida de branco e bastante ansiosa. Ajuda essa mulher a encontrar o caminho que precisa e segue para aquele que será o lugar do seu novo emprego.

No dia seguinte e depois de conhecer a irmã mais velha, Marian (uma das mais incríveis personagens!), comenta o sucedido na noite anterior. A partir deste momento, e movido também pela curiosidade de Marian, esta, encontra referências daquela enigmática mulher numa das cartas da falecida Sra. Fairlie, mãe de Laura, a sua meia-irmã e de quem é inseparável. A partir do momento em que ambas as personagens percebem, mais à frente, as parecenças físicas da mulher de branco com a sensível Laura, o mistério ganha forma e aumenta a um nível sem precedentes.

Se o amor de Walter por Laura se estabelece logo no primeiro olhar entre ambos, o mistério de que falava, só aumentará ainda mais quando Glyde, o noivo de Laura, parece ter, também ele, uma estranha ligação à jovem vestida de branco.

Este é assim o ponto de partida para uma história repleta de infortúnios, sofrimento e uma enorme sede de justiça. Desde Glyde, marido de Laura e homem intragável, ao seu amigo Fosco, estranho, mau e implacável, as irmãs terão de lutar para defender o seu próprio património, longe de Walter que, pela força das circunstâncias teve de partir para longe. Contudo, este nosso personagem trará as respostas necessárias para desvendar mistério atrás de mistério conquistando, por fim, a tão ambicionada justiça e o amor que se assume como a resposta, infinita, a todos os males que viveram.


Um dos grandes clássicos góticos, «A Mulher de Branco» foi, sem dúvida alguma, a minha melhor leitura do mês de Fevereiro.

Recomendo sem pestanejar.

 

Boas leituras e que Março seja um mês inesquecível.

💗

 

 

Seja feliz,

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