Mães e Filhos (Colm Tóibín)

sexta-feira, 23 de julho de 2021

Foi a minha estreia com Colm Tóibín e não poderia ter tido melhor surpresa. Gostei mesmo muito deste que é um conjunto de histórias em que a maternidade se assume como tema central.

Por muito que se tente contrariar, é inegável o poder quase místico em torno das mães. Seja pela sua presença adequada, ausente ou exagerada, a verdade é que o papel da Mãe na vida de qualquer filho imprime-se com o peso da inevitabilidade. Sonhamos, nessa medida, com uma inevitabilidade boa, de quem é amado profundamente, amparado nos medos, os sonhos que precisam de empurrões que só as mães sabem, gentilmente, dar.

É um pouco esta ideia que atravessa todas as histórias. Em cada um dos contos, em diferentes perspectivas, encontramos mães ausentes, mães de filhos criminosos, mães que se perdem na egoísmo de quem decidiu, talvez tarde de mais, viver por si só. A música como ligação entre mãe e filho, o fio que os ligará para sempre.

Aqui há também mães que se sentem desamparadas pelos erros atrozes, escabrosos, dos filhos e, ainda assim, permanecem plantadas, raízes mais vivas do que árvores centenárias, para o que der e vier, ali, bem de perto daquela que será, para sempre, a sua pequena cria.

É um livro realmente bonito, enternecedor, mas nem sempre fácil. O papel da mãe é aqui exaltado sobre as infinitas possibilidades que se vai desmembrando na vida de cada filho, também este, diferente de qualquer outro.

Pessoalmente, o meu conto preferido foi o último: «Um longo Inverno». Neste conto em particular, com passagens absolutamente belas, há todo um simbolismo que exalta o poder e a fragilidade de uma mulher mãe. O desaparecimento misterioso de uma mãe invoca os fantasmas de uma casa, uma família, e imprime a constatação de que os verdadeiros pilares que tornavam a casa sustentável, eram suportados pela presença da mãe, pela disciplina e pelo amor invocado no carinho das tarefas domésticas.

Colm Tóibin escreve maravilhosamente. Uma escrita muito visual, como quem entre no livro e parte, destemido, para novos lugares fazendo parte, como um narrador intrometido, mas que só pode ficar calado. Tudo é dito na escrita do autor e este é, sem dúvida, um livro que é homenagem sentida a todas as mães, seja pelo lado luz, seja pelo lado sombra.

Um livro lindíssimo que nos faz refletir na pessoa mãe, invocar as nossas próprias memórias, o desafio de retornar à infância e permitir, em tantos momentos, sermos levados pelo peso leve da nostalgia.

 

Recomendo sem reservas!

Seja feliz,


O Amigo do Deserto (Pablo d'Ors)

quinta-feira, 15 de julho de 2021

Pablo d'Ors, em "O Amigo do Deserto" traz-nos uma belíssima viagem ao deserto e que é, na mesma medida, uma viagem para dentro de si mesmo. Ao longo de uma jornada de descoberta, o autor vai tecendo a história e contando os pormenores que o levarão a travar, bem de perto, essa relação com o deserto e com os seus preciosos ensinamentos. 

 

"Ao contemplar aqueles desertos, o tempo parecia ter parado para mim."

 

Neste livro há uma partilha sincera do autor nessa descoberta e revelação do poder (aparentemente) escondido do deserto. O deserto como personificação do «nada que é tudo» e que nos segura, mais firmes e felizes, no verbo da vida. 

A escrita do autor é muito limpa, direta e sem grandes rendilhados. Ajuda, esta clareza de ideia, a transmitir ao leitor que está menos à vontade com as temáticas do autoconhecimento e do desenvolvimento pessoal, sentindo-se mais pronto a olhar para dentro, talvez uma das nossas tarefas existenciais que mais nos assustam e, paralelamente, que mais nos atraem.


"Vi com clareza que o deserto, essa terra de morte que pode transmutar-se num fértil jardim, só é um lugar vazio para quem não o souber ver."

 

A ter de definir este livro dentro de alguma categoria, talvez me arriscasse a criar uma nova e dizendo-lhe: este é um «livro porta», que lhe vai abrindo caminho a uma série de questões pessoais, potenciadas pelo autor, mas alastradas a todos os leitores que decidiram acompanhar essa mesma busca.

É muito isto, sim. Um livro que é uma procura pessoal capaz de se alastrar a todos aqueles que fazem parte desta leitura, uma leitura tanto solidária quanto solitária. Pablo d'Ors dá-lhe tudo o que sabe nesta jornada pelo deserto físico e o deserto que habita em todos nós.

Talvez, mais do que nunca, tenha chegado a hora de o encararmos sem freios, sem medos e, sobretudo, sem paninhos quentes. É um pequeno livro a conter uma vida inteira de quem procura e, por fim encontra, a resposta onde menos espera.

 

Recomendo muito.

Seja feliz,

O Médico e o Monstro (Robert Louis Stevenson)

quarta-feira, 7 de julho de 2021

 Contém spoilers

Hoje falo-lhe de um grande clássico da literatura que, apesar disso e sobretudo na época da sua divulgação, foi dos menos falados e comentados. Creio que o mesmo ainda acontece hoje, apesar do conhecimento quase popular em torno da figura do peculiar médico. Independentemente da imensidão de filmes, séries, e até jogos, que inspirou, a verdade é que Stevenson foi um dos autores menos tidos em conta na sua época. Foi, inclusivamente, considerado um «autor de segunda» sendo desprezado por muitos escritores de renome àquela altura, sendo Virginia Woolf um dos casos mais gritantes.

Independentemente deste contexto, a verdade é que a realidade agora é outra, pois «O Médico e o Monstro» é considerado uma história não só de extremas particularidades como, e acima de tudo, pela atualidade que ainda faz ressoar nos nossos dias. 

Um livro que nasce na Era Vitoriana, «O Médico e o Monstro» é um dos grandes percursores das histórias de mistério. Narrado pelo carismático advogado Utterson, a história tem início quando este e um amigo deambulam pelas ruas de Londres e se deparam com uma estranha porta. Dessa porta, surge uma história partilhada pelo amigo daquele, contando-lhe que reza uma quase lenda em torno de um misterioso homem que atacara numa noite, sem motivo aparente, uma menina de 10 anos que se encontrava sozinha. A conversa suscitou ainda mais curiosidade ao advogado depois de saber que o misterioso homem, numa tentativa apressada de minimizar os seus actos, passara um cheque à família da criança, de forma a resolver o assunto. Mas a curiosidade não estancou aí. Utterson ficara a saber que o cheque em questão fora passado em nome do célebre médico, e seu cliente, Dr. Jekyll.

Está assim criada a arquitetura de uma história que se pode firmar apenas numa palavra: dualidade. Esta história é marcada por um segredo que viaja do início ao fim do enredo, segredo esse que se torna, rapidamente, no mote de Utterson e na sua necessidade, quase física, de o desvendar e, acima de tudo, de o compreender.

Saberemos, no desfecho dramático desta pequena história, que Dr. Jekyll, o médico altruísta, é o mesmo que Mr. Hyde, o homem pequeno, «escondido» e que personifica o lado sombra do primeiro. É sobre isto que narra o livro: a dualidade, a distância entre o bem o mal. O ponto mais singular, e na minha opinião o mais interessante, passa pela ideia misturada do bem e do mal na mesma pessoa e não o sentido de rectidão e divisão entre ambas as polaridades. A verdade aqui transmitida é que todos nós somos feitos de diferentes níveis de luz e que, mediante a perspectiva, a sombra tende a diminuir ou a aumentar. A verdade nua e crua é que o ser humano é essa soma, por vezes assustadora, de sombras projetadas por uma luz que se destaca em primeira mão.

Através dos experimentos de Dr. Jekyll o leitor acabará nas suas reflexões pessoais sobre o que é isto de ser bom, de ser mau, de ser ausente ou presente. Por vezes, a necessidade de um propósito, de uma vida com mais sentido, faz-nos atravessar estradas escuras que mais não são do que ecos do nosso interior, assustado e, simultaneamente, apaixonado pela ideia de se perder um pouco.

Tudo nesta história pode facilmente ser ladeado pela ideia da dualidade, inclusivamente o próprio cenário e a carismática casa do médico. Desde as duas portas, uma central e a outra, estranha e quase escondida da rua, assim como os corredores específicos que apenas permitem uma forma de lá chegar, invocam essa ideia de pratos de uma mesma balança mas em que cada um, e à sua maneira, giram em posições opostas.

Até onde poderá ir a maldade? E a bondade, poderá esta prevalecer?

Estas são algumas das questões que nos ficam a ressoar por dentro. Um clássico incontornável, atual e carismático. Um livro para ler e reler com lições, embora conhecidas, nunca assimiladas na plenitude Sublinhe-se aqui a teimosia e complexidade humana como algumas das grandes justificativas para um questionamento que tende a perdurar para lá da vida que conhecemos.

 

Recomendo. Muito!

Seja feliz,


Emma (Jane Austen)

quinta-feira, 1 de julho de 2021

É inegável, para os leitores de Jane Austen, a constatação da ironia subtil das suas histórias. Ironia essa apontada a uma sociedade estigmatizada e muito padronizada. Desde o lugar da mulher, o seu papel em detrimento à valorização, quase total, do homem, é outro aspecto inequívoco das suas obras. Em «Emma», não será diferente. E será ainda melhor.

Creio que «Emma» seja uma das personagens menos adoradas pela maioria dos leitores. No meu caso, posso dizer que Emma se tornou uma das minhas personagens preferidas de Austen, se não a preferida. Ainda estou a ponderar de coloco Elizabeth Bennet em segundo lugar. Tarefa árdua.

Nesta história acompanhamos Emma, uma jovem de boas famílias, com a ideia de estatuto social e a consciência de classe muito enraizada. É consciente das suas capacidades, a nível intelectual, mas sobretudo a nível emocional. Sem rodeios, Emma tem-se em grande, grande conta.

O leitor entra no mundo de Emma no momento em que Mrs Weston, até então a preceptora da jovem, sai daquela casa para se casar e criar a sua própria família. A solidão de Emma faz-se sentir de forma avassaladora pelo que, sem demoras, dedica-se a encontrar uma nova amizade, que lhe preencha o vazio dos dias. Conhece Harriet, jovem de um estatuto social inferior, mas cuja amizade tem tudo para proliferar: Emma orienta, Harriet segue-lhe os passos.

Jane Austen construíu uma bela história em torno das aventuras e desventuras de uma jovem rica, sem preocupações e cuja intenção, verdadeira, é provocar e criar os casamentos mais promissores da zona. Emma sente-se detentora de competências emocionais para lá do razoável, usando essas mesmas capacidades para, na sua ideia, tornar o (seu) mundo mais feliz, mais harmonioso. Contudo, há uma palavra que está sempre presente nesta que é a grande premissa do livro: equívoco.

A vaidade, o quase egocentrismo de Emma, vão dar origem a uma catadupa de mal entendidos, de muitos equívocos, transformando as personagens em peqenas marionetas conduzidas ao sabor da sua própria, e inocente, vontade. 

Quando refiro que a maioria dos leitores não gosta de Emma, creio que o mesmo se deva à sua intromissão, contudo, não consegui percecioná-la com má intenção nas suas acções. Emma deseja, profundamente, criar uma sociedade mais feliz e sente, genuinamente, que tal pode estar ao seu alcance. Os equívocos, contudo, vai surgindo um atrás do outro, dando origem a uma teia de histórias que se misturam, a segredos que podem mudar vidas e a muitas situações caricatas.  

De todas as personagens, Mr. Knightley é a que se assume como pêndulo de Emma. Na minha perspectiva, esta é uma história não só de apontar de dedos a uma sociedade muito tacanha, bem ao jeito de Jane Austen, como é também a história de uma jovem, a desenvolver-se emocionalmente ao encontro da sua verdadeira maturidade, que aprende com os seus erros, cresce e distancia-se daquilo que, outrora, vivia como dado adquirido. Encontra, através do caos dos outros, ecos de si mesma e, finalmente, o equilíbrio de que tanto precisa.

«Emma» é, assim, uma história de crescimento e de maturidade na sombra de uma sociedade tipicamente recheada de maus vícios. E todos nós sabemos que maus vícios, não nos levam a bons lugares. Não concorda?

Mais um clássico incontornável da literatura e que só vem reafirmar o quanto Jane Austen tinha para nos dizer à sombra das aparentemente "simples histórias de amor". 


 

Seja feliz,

 

CopyRight © | Theme Designed By Hello Manhattan