Olive Kitteridge (Elizabeth Strout)

quarta-feira, 29 de julho de 2020

Escrito em 2008 e vencedor do Pulitzer Prize em 2009, «Olive Kitteridge» é, sem rodeios, um livro sobre a vida.

O leitor, ao longo dos treze contos narrados em Crosby, uma pacata povoação no Maine, conhecerá gentes comuns que, à laia dos lugares pequenos, todos se conhecem por pouco que seja. No meio está uma ilha de nome Olive Kitteridge. É assim que a vejo, uma personagem que parece estar em todos os lugares, de forma mais ou menos evidente, agitando a vida dos que passam por ela, igualmente solitários, igualmente perdidos.

É um livro sobre a vida e a vida tem sempre muito que contar, Olive sabe-o bem. Professora de Matemática, odiada por muitos, adorada por outros tantos, conheceremos num hiato de trinta anos aquela que foi a sua vida, bem como os anseios que o peso da idade vai trazendo e, num registo muito próprio, a sombra da solidão como o fim de tudo o que foi e a possibilidade do que poderia ter sido.

Todas as personagens vivem de uma dor que as sustenta. A ideia de que a felicidade mora ali ao lado e que nós, quanto mais apressados para a alcançar, mais perdemos, surge aqui numa evidência que nos convida, a todos nós, a fazer parte dessa ilha que é Olive e, no seu jeito desordenado, tantas vezes inconveniente, aprendermos com as palavras que vai largando, sempre certeiras.

Se há amor verdadeiro no casamento de Olive é precisamente pelas diferenças gritantes entre a sua brutalidade e a doçura de Henry. É essa disparidade que os une, assim como a maioria das personagens deste livro: serão sempre os detalhes pouco prováveis a dar sentido à complexidade disto que é viver.

É o amor aos filhos que facilmente esquecem o esforço dos pais e vão embora sem grandes explicações. Os amores da adolescência que ficam ali a ferver em banho-maria, a borbulhar um futuro destinado a não acontecer. É a esposa que decide não querer mais intimidade com o marido. É o marido que, após lutar com a sua afiada moralidade, aprende a amar fora de casa. São os adolescentes inexperientes que aprendem, tantas vezes, da maneira mais cruel. É todo o conjunto dessas dores que vão sustentando os dias e justificando uma vontade crescente de viver independentemente da equação que subtrai horas, soma agruras e, ainda assim, abençoados sejamos pelos dias novos que ainda nos esperam.



"Não tenham medo da vossa fome. Se tiverem medo da vossa fome, serão só mais uns patetas, como toda a gente."

Um belíssimo livro.


Com o apoio:





Seja feliz,

Prioridades

terça-feira, 28 de julho de 2020



Ninguém disse que as nossas prioridades, por serem nossas, sejam fáceis.
E nós vamos olhando de lado, como quem passa despercebido.



Seja feliz,

O quarto de Giovanni (James Baldwin)

terça-feira, 21 de julho de 2020


James Baldwin, reconhecido romancista, foi igualmente destacado como uma das vozes mais influentes do movimento dos direitos civis.

«O Quarto de Giovanni» é considerada uma das suas obras mais importantes. Esta é uma história de amor entre dois homens, escrita por um homem negro que sempre sentiu de perto o peso do preconceito, a todos os níveis.

Se consultarmos o dicionário, a palavra «preconceito» é, entre algumas definições, entendida como «Opinião desfavorável que não é baseada em dados objectivos. Intolerância.»

Nesta obra lemos de perto o quão longe o preconceito pode ir e, na mesma estrada, levar todos à frente, sejam eles peças centrais de uma história ou não. David é um homem feito de preconceito, que não aceita a sua homossexualidade. Será essa não aceitação que dará azo a isto que defendo: o quanto uma ação, por mais inocente que possa parecer a olho nu, se perpetua e alastra à vida dos outros. Imaginemos pessoas dispostas como cartas num castelo prestes a ruir só porque alguém decide espirrar sem pensar. O impacto desta obra, além do preconceito palpável é, numa sequência muito triste, a constatação da ideia de um contágio associado a uma palavra que, por si só, é pesada.

David, em conflito interno e constante com os seus próprios demónios, destrói a vida da noiva que nunca quis, destrói os sonhos de um pai a quem nunca permitiu dar-se a conhecer, e depois, Giovanni. Personagem singular, este homem é a personificação do amor tal como deve ser: despojado de todas as coisas. A intolerância de David, que o ama sem admitir a si mesmo, será uma colher cheia de veneno a ser dividida por ambos. Mas a culpa, essa, só a ele pertence. Se o veneno mata logo, a culpa corrói e assim é a vida deste homem que se perdeu na nostalgia do que poderia ter sido.

Se a paixão de ambos, resumida e instalada no pequeno quarto de Giovanni, nasceu e cresceu, depressa morre envolta na tragédia clássica dos cobardes. Uma tragédia que é também uma chamada de atenção à indiferença, ao orgulho desmedido, ao ego inflamado.

James Baldwin escreveu sobre um tema que, à luz de uma sociedade que teima em não mudar, se mantém mais atual do que nunca. Um livro que se tornou num clássico da literatura, uma obrigatoriedade para o despertar urgente de uma consciência (que se deseja) colectiva.


Recomendo sem reservas.





Esta leitura contou com o apoio:



Seja feliz,
Opinião desfavorável que não é baseada em dados objectivos. = INTOLERÂNCIA

"preconceito", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2020, https://dicionario.priberam.org/preconceito [consultado em 20-07-2020].
Opinião desfavorável que não é baseada em dados objectivos. = INTOLERÂNCIA

"preconceito", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2020, https://dicionario.priberam.org/preconceito [consultado em 20-07-2020].

O Vinho da Solidão (Irène Némirovsky)

segunda-feira, 20 de julho de 2020


O Vinho da Solidão é considerada a obra mais autobiográfica de Irène Némirovsky, que sempre manteve uma relação muito difícil com a sua própria mãe.

Nesta história conheceremos a vida da jovem Helène, em que o dinheiro e as mordomias assumem lugar em contraste com o vazio de afeto, sobretudo, por parte da mãe. Aos olhos tenros da menina, a mãe só se preocupa com a aparência e o medo incontrolável de envelhecer. Sabemos que na vida da própria autora, quando a mãe soube que estava grávida, pediu-lhe que abortasse pois não queria ser avó.
Para quem conhece em maior detalhe a vida da autora, é fácil perceber a estreiteza da história com a realidade dos factos.
 
A mãe  nesta história é também uma pessoa fútil, interessada no marido apenas pelo vislumbre dos bens materiais que usufrui. Tem amantes e a descoberta dessa realidade abre um foço na menina para sempre, roubando-lhe a infância e somando, a si mesma e na mesma medida, uma maldade que não sabia ter.

A solidão, a par com a abundância (o vinho em sentido figurado), resultam num duplo vazio e numa tristeza que se vai adensando à medida que se torna numa adolescente mais bonita e com formas bem desenhadas.

Será no florescer do corpo que aquela maldade se materializa num único objetivo: a desgraça da mãe, espezinhá-la no silêncio. Para isso, decide seduzir Max, o amante da mãe. O misto de emoções que sente é notório, sabe estar a errar, sabe, inclusivamente que não deseja aquilo para si mesma, mas a falta de amor parece gritar-lhe uma vontade de se impor, independentemente do caminho que siga ser pontuado pela moralidade, ou não.

"É um crime trazer filhos ao mundo e não lhes dar uma migalha, um átomo de amor!"

Pela temática que encerra, o vazio/maldade de uma mãe e a ânsia de amor de uma filha, esta é uma história difícil e de enorme tristeza. É nessa linha que sempre me encontro para explicar a grandeza da escrita de Irène: não há ninguém que consiga escrever a beleza de uma dor como a autora. Porque há sempre uma espécie de beleza rendida quando o assunto é uma dor profunda, que quase reconforta, como única companhia possível, e que nos pede um afastamento de tudo e todos que nos relembram, dia após dia, os nossos infortúnios.

É nesse afastamento que a jovem Helène se volta a reencontrar, na solidão de si mesma como a promessa dos (esperados) recomeços.

"Não tenho medo da vida, pensava. Foram anos de aprendizagem. Foram extraordinariamente duros, mais temperaram a minha coragem e o meu orgulho. Isso é meu, é a minha inalienável riqueza. Estou só, mas a minha solidão é ávida e inebriante."
 
Uma obra de enorme beleza a comprovar, uma vez mais, Irène como uma das minhas autoras preferidas de sempre.


Seja feliz,

Matéria Escura (Blake Crouch)

segunda-feira, 13 de julho de 2020


Imagine a sua vida em formato de encomenda. Agora, imagine que, de um momento para o outro, lhe trocam a encomenda levando-a para um cenário totalmente novo e diferente. Esta é a grande premissa do livro de ficção científica de Blacke Crouch, «Matéria Escura».

Conheceremos Jason Dessen e a sua pacata vida. É professor de Física numa Universidade, é casado com Daniela e têm um filho adolescente. Sabemos de antemão que tanto para Jason como para Daniela, existiam sonhos que, à luz das suas escolhas,  ficaram guardados na gaveta do passado, evitando olhares mais discretos, como quem nega o que foi. Ele sonha com um prémio na área da Física, ela sonha ser uma pintora famosa.

Agora imagine novamente o cenário que lhe descrevi acima. Imagine que um dia, infeliz e um pouco cansado com a monotonia dos seus dias, alguém o aborda na rua e troca a sua vida, tal como uma encomenda que se perdeu no caminho. É isto que acontece a Jason, sem tirar, nem pôr.

"É assustador imaginar que todos os pensamentos que temos, todas as escolhas que podemos eventualmente fazer, abrem novos mundos, (...)"

O autor é exímio nas explicações científicas da realidade que nos expõe, e com isso, faz-nos refletir na importância de avaliarmos, constantemente, o nosso lugar no mundo, valorizar a nossa realidade, agradecer às mais pequenas coisas numa premissa muito básica de que apenas e só quando perdemos, somos atingidos pelo vazio do que tínhamos e não sabíamos.

Parece um cliché barato, bem sei. Mas não é.

"A interpretação da mecânica quântica postulada pela Teoria dos Muitos Mundos defende que todas as realidades possíveis existem (...)."

O tema que o autor traz a lume não deixa de surpreender o leitor mais céptico, mais que não seja, pela reflexão obrigatória que daqui surge: o que faríamos se nos substituíssem na nossa própria vida?

Numa era em que tudo nos parece tão instantâneo, onde o tempo parece ser sempre tão pouco para gastar com uma conversa barata ou um gesto que requeira mais do que um click no telemóvel, urge pensar com cuidado o que fazemos dos nossos dias, pois eles acabam, e o pior ainda, é a sensação de sabermos não estar a fazer o suficiente e, ainda assim, mantermos a postura de vitimização face a um mundo em constante mudança. A culpa nunca é nossa, que seguimos a corrente sem protestar, num «porque sim e porque todos vão» tão lamentável. Mas e depois? Quando nos tiram aquilo que realmente importa, o que fazemos?

"Talvez exista um milhão de mundos como o teu onde nunca cheguei a ser bem-sucedido. Mas basta um em que o fui (...)"

Basta saber que há um lugar onde nós fazemos sentido, tal como somos. Uma encomenda que jamais alguém quer devolver. Descobrir essa verdade aparentemente básica não só relativiza sonhos insuspeitos à vista de um futuro que não se vê, como valida o nosso lugar como certo e irrevogável.

Deixemos de aspirar tanto, de desejar tanto, não vá o Diabo tecê-las para que aconteça e você perceba, já tarde, que afinal estava muito bem onde sempre esteve.





Esta leitura contou com o apoio da Suma de Letras

💓
Seja feliz,

Memórias do Subterrâneo (Dostoievski)

terça-feira, 7 de julho de 2020


Para quem já conhece minimamente os ambientes criados por Dostoievski sabe, à partida, que está prestes a conhecer mais uma história vincada em críticas sociais e que, também, se arrisca a desnortear a sua própria paz de espírito.

«Memórias do Subterrâneo» é um monólogo de personagem sem nome. A necessidade de um desabafo solto, sem filtros ou ornamentações, é ainda mais vincado por essa falta de nome, de quem não se assume. Ele não pretende marcar posições ou tornar os desabafos num livro que se leia, de facto. Os leitores, se assim o decidirem, assumem o risco da sombra que este homem carrega.

Conheceremos um homem perdido, cheio de mágoas e as culpas, quase totais, que imputa a uma sociedade, segundo ele, muito fútil e corrompida.

"E de resto: de que é que um homem digno pode falar com mais prazer? Resposta: de si mesmo. Portanto, será de mim que falarei."

Ao longo do livro podemos perceber muitas das sombras deste homem, contudo, a sombra do arrependimento parece aquela que ficou enraizada como o grande mal dos seus pecados. Desde amigos que não tolera mas que, ainda assim, insiste num convívio até à iminência de um amor que não consegue, sequer, suportar a ideia, este homem opta pela solidão e pelo silêncio que nada cobram.

É um livro triste, doloroso e que muitas vezes, apesar da dificuldade de criar qualquer elo de empatia com o personagem, acabamos por nos rever na sua dor, tantas vezes desamparada pelo medo de a encarar de frente. A dor de não saber o que realmente se deseja e qual o propósito da vida.
"Mas será possível, será possível um homem ter algum respeito por si mesmo, quando se atreve a procurar prazer no sentimento da sua própria humilhação?"

Com estas memórias, Doistoievski surge, mais uma vez, implacável na sua arte de apontar dedos às feridas que preferimos ignorar. As feridas de quem sente não pertencer e que no cansaço da incompreensão, opta pela escuridão de um lugar muito único, inacessível, onde magoado e triste, decide viver para sempre, como quem foge irremediavelmente de si mesmo.

Quem nunca?


Boas leituras!



Seja feliz,

O homem lento (J.M.Coetzee)

quarta-feira, 1 de julho de 2020

O que é suposto fazer quando a vida deixa de ter sentido? Na sequência desta leitura, dei-comigo a pensar numa frase de Pearl S. Buck que gosto muito. Algo aproximado a «Nem sempre morremos quando a vida acaba.»
«O Homem lento» é essa história aparentemente crua, mas repleta de sensibilidade, sobre o nosso lugar no mundo e o envelhecimento como um contrato que cessa tudo o que foi. Aqui conheceremos a história de Ryan, um homem mais velho, sozinho, divorciado e sem filhos, que gosta de andar de bicicleta. Num dia como tantos outros, sai de casa para mais um passeio e é violentamente atropelado. A bicicleta fica torcida pelo impacto e pelo mesmo caminho, Ryan acaba com uma perna amputada.
Esta é a premissa de uma história que nos abre cortinas para uma reflexão cuidada sobre isto de viver, de envelhecer e a marca, a tal marca que todos nós desejamos que aqui fique plantada, antes de irmos embora.
Ao longo desta sua nova jornada, conheceremos os medos e receios de um homem velho mas que pouco se sente como tal, que não admite a possibilidade de um quase amor, para isso, opta pela solidão nua e crua, mas verdadeira.
Conheceremos uma vida vazia e o quanto caminha, ainda que desalinhado, pela esperança de reencontrar os  resquícios da juventude, do amor, do sexo, e até, da parentalidade como fantasma.
As personagens que lhe amparam os dias, algumas bem peculiares, não são mais do que projeções dessa esperança e do medo simultâneo de quem viveu mal, de quem gastou os dias sem pensar na conta final. O crédito mal parado de decisões fugazes, como quem se sente imune às consequências.

Um livro solitário, este. Uma história que nos convoca a ternura e a compaixão mas, na mesma medida,  servindo como um lembrete de que também nós, usuários do verbo «viver», precisamos de virar os olhos para dentro, descalçar os pés, caminhar em terra mais firme, não vá isto acabar sem percebermos que a magnitude da vida estará, sempre, na matemática de um passo a seguir outro, pensado e repensado.

"Que coisa singular, que coisa positivamente antiquada, acreditar que seremos avisados, quando a ocasião chegar, para pormos a alma em ordem!"



Seja feliz,

Os finais



Seja feliz,
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