Thérèse Desqueyroux (François Mauriac)

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020


Este livro gerou-se no interesse do autor (prémio Nobel da Literatura, 1952) por uma notícia daquela altura sobre uma mulher que tentara envenenar o próprio marido. Desse facto, que muito o impressionou, acabou por dar vida a uma personagem muito singular, apenas comparada à célebre e inesquecível Madame Bovary.
Confesso-lhe, caro leitor, os meus remorsos após fechar este livro. Se aquando a leitura de Flaubert, fiquei com aquela raiva miudinha pela mesquinhez e ingratidão de Madame Bovary, no caso de Mauriac, foi-me muito difícil não gostar de Thérèse. Se isto faz de mim uma pessoa má, o que poderei dizer em minha defesa e na de Thérèse, é que o desejo de reencontro com si mesma é tão grande e avassalador que, por momentos, o desespero de se ver casada por mera conveniência com um homem gordo mas sem solidez no espírito, fá-la perder o foco do razoável. Não dizem, tantas vezes, que o desespero nos pode cegar? É isso que acontece a esta mulher e, acredite, o desespero de se ver livre de uma situação que abomina, será materializado por um acaso. É que num dos momentos de medicação em que o marido, acidentalmente, perde a certeza de ter tomado as gotas, nasce a ideia casada em comunhão de bens com um desejo de fuga maior do que qualquer outra coisa. E se ele continuar enganado quanto ao número de gotas que ingere todos os dias?

Assim se junta a fome com a vontade de comer, dizia a minha avó. Será este o mote para uma desventura de tamanho considerável. Poderá o leitor espantar-se ao saber que o marido a perdoará, defendendo-a, inclusivamente, em tribunal. Não é spoiler. Calma. Mas diga-me, não é de ficar impressionado? Deverá amá-la cegamente, ansiando o perdão como esperança de um amanhã novo, fresco e cheio de amores.

Não. Esqueça lá os amores de bolso. Este homem decide perdoar Thérèse pela afronta social. Recorda-se de lhe falar num homem gordo, porém, sem qualquer solidez de espírito? Este é o exemplo que melhor define um gordo de corpo, magro de alma. Este homem tirou-me do sério, desculpe-me o desabafo. 

Esta irritação é o prenúncio dos efeitos milagrosos que só a literatura nos dá. Obviamente que não desejo sentir-me arreliada mas quando um livro tem esse poder, então sim, vale a pena. E vale a pena porque Mauriac, em linhas muito ténues, deixa-nos nesta incógnita sobre o peso e o poder da moralidade. Seria óbvio uma postura reta, nariz empinado e dedo em riste, para nos suportar palavras convictas sobre o quanto Thérèse é desprezável. Mas porquê que não o consigo fazer? Porquê que estaciono o meu pensamento nas posturas posteriores de um homem que, na iminência de morrer envenenado, continua a venerar o coletivo, uma sociedade repleta de normas sombrias?


E assim me despeço, caro leitor, passando-lhe - esperançosamente - o desejo de se imiscuir numa história que lhe trará não só os dissabores óbvios que qualquer tentativa de envenenamento provoca como, acima de todas as coisas, aquele azedume de quem confirma que, quando o assunto são sentimentos e emoções, a paleta do preto e branco acaba, sempre, por se misturar num agonizante cinzento.




Seja feliz e prometa-me que vai ler.

Os lugares certos

terça-feira, 25 de fevereiro de 2020


Se pudesse, mascarava-me de gata e vivia dentro de uma estante.
Esse seria, sem dúvida, o meu melhor disfarce de Carnaval (risos).



Seja feliz,

A menina que roubava morangos (Joanne Harris)

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020


Ler um livro de Joanne Harris é saber, à partida, que estão abertas as portas a um mundo muito singular. Quando falamos, especificamente, da série «Chocolate», então, todo esse mundo se torna ainda mais especial de tão único, tão bonito.

A história de uma mãe, guiada pelo misterioso vento, que decide ficar numa pequena (e peculiar) vila francesa prosperando com a chocolaterie, vendendo encantamentos através do chocolate, conquistou inúmeras pessoas ao longo dos anos, eu incluída. Era ainda adolescente quando me rendi à autora e, desde então, todos os seus livros são por mim abraçados numa grande expectativa. Quando a conheci pessoalmente, percebi que era a autora que sempre imaginara e isso, enquanto leitores, é a melhor coisa que nos pode acontecer, concorda?

Em «A menina que roubava morangos», o enredo centra-se em Rosette, a filha mais nova de Vianne. Sabemos que Rosette parece ter um atraso no desenvolvimento, impedindo-a de conversar naturalmente com as outras pessoas. Sabemos, também, que no mundo criado por Joanne Harris nada é realmente o que parece ser e, quase sempre, as verdadeiras respostas são dadas pelo vento, que surge inesperado, envolto em novas surpresas.

Esta história é feita de uma quinta muito especial, de confissões de um velho ao conhecido e peculiar padre da vila, à relação desse mesmo senhor com Rosette e o momento em que, à sua morte, decide pôr aquele terreno em nome da menina. Este é o grande enredo que se ramificará a muitas outras questões.

Todos naquele lugar cospem intigas e questões feitas na ânsia de saberem os motivos de tal decisão. Há familiares zangados que vêem, assim, as partilhas roubadas e o desejo de prosperar com o trabalho de Narcisse, o velho que nos narrará grande parte desta história.

Não é novidade nenhuma, se é conhecedor da obra de Harris, que o mistério adensa à medida que as páginas avançam. Acalme o coração pois terá acesso a todas as respostas, desde as atitudes de Narcisse - reforçadas por um passado atormentado, de quem procura rendição no momento da morte - aos anseios do padre Reynaud, também ele coberto pelo peso do passado e, por fim, aos medos enraizados de Vianne.

Todas as personagens se unem, sem fios visíveis, no receio que todos têm da perda e da rejeição. Este livro, mais do que a intriga sobre decisões aparentemente pouco pensadas quando um idoso põe o seu melhor terreno em nome de uma menina que nem é sua familiar, é também uma exaltação à família, e muito particularmente, à maternidade.

Aqui nasce também uma história sobre a mãe enquanto pássaro, que inicialmente prepara o ninho mas que o tempo, e o vento, a empurram para o voo da sua cria. Ser mãe, creio, é muito isto: acolher, ensinar e empurrar. Vianne vê-se assim enredada no seu medo pesado da solidão, este, balanceado com o desejo maior de todos: a felicidade das suas filhas.

Joanne Harris surpreende com mais um livro muito especial, num cenário já conhecido e que, após a leitura, deixa desde logo, muitas saudades.





Seja feliz,

A forma do corvo (DeSales Harrison)

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

O romance de estreia de DeSales Harrison, integrado na categoria de policial, foi uma boa surpresa. Este é um livro recheado de temáticas dentro de temáticas, numa soma complexa de medos, receios, sentido de pertença, ou a falta dele.

«A Forma de Corvo» narra a história de Daniel Abend, um psicanalista renomado e pai de uma adolescente. Vive a vida de forma tranquila, dedicado ao seu trabalho, em Nova Iorque, e à sua filha que lida com as típicas agruras da adolescência.

O livro começa com um curioso prólogo, cheio de questões que estalam, desde logo, nas primeiras páginas. O suspense típico deste género literário está muito bem conseguido nesta história em que a vontade de perceber, de compreender, acaba por se sobrepor a tudo o resto.

E porquê?

Por detrás das inúmeras questões, do suspense, da estranha morte de uma paciente de Daniel, bem como a sombra que parece estar sempre presente nos monólogos daqueles homem, levarão o leitor a procurar - atentamente - a raiz de todos os males.

«A Forma do Corvo» é um livro que nos vende a premissa do medo e aquilo que um pai é capaz de fazer pela sua filha. Após a morte da paciente de Daniel, envolta em mistério e surpresa, mais tarde, é a filha dele que desaparece, quase por magia.

Seremos já todos muito grandes e adultos para crer, de olhos fechados, nessa magia pré-paga. É precisamente esta a linha condutora de um livro capaz de surpreender. Lembra-se quando referi uma história repleta de temáticas dentro de temáticas? Pois bem. Nesta história, nada nem ninguém, é realmente o que parece ser. 

O primeiro livro do autor merece uma vénia pela forma como aborda a complexidade humana, a tentativa de perdão e a desejada rendição. Porque é esse o assunto que «A Forma do Corvo» escorre em cada página: na impossibilidade de apagar um passado pesado, pesa a necessidade de remediar o presente, como quem compensa, como quem lava pecados.

Se me pedirem um motivo para a recomendação deste livro, eu diria que por detrás de uma intrincada história, há a sombra de um corvo que vem determinado para lhe mostrar que o arrependimento é uma força e um confronto. Poucos são aqueles que, capazes de olhar para dentro, o enfrentam sem esperar uma condenação à medida de todos os males. É que, repare, mais cedo ou mais tarde, cada passo dado em falso, será o equivalente a uma distância diminuída de encontro à desejada rendição. Signifique isso a morte ou uma espécie de nova vida.

"Se estivessem lá e tivessem ganho, como eu, a forma de um corvo no cimo de um teixo - um corvo agachado, as penas desalinhadas negras como pez, rouco do seu sombrio e desconsolado colóquio -, teriam reparado no modo como eles caminhavam sem pressa, lado a lado, pelo caminho de cinzas, na direção do Sol que nascia e do portão leste do parque: a minha filha, Miriam Oppen, e o seu bondoso companheiro, a cabeça dele inclinada para ela para ouvir melhor."


Um livro sobre o amor mascarado pelos medos do passado.
Recomendo a todos, não fossemos todos nós feitos daquilo que já foi e não torna.



Seja feliz,

O velho e o gato (Nils Uddenberg)

terça-feira, 18 de fevereiro de 2020


Nils Uddenberg é médico psiquiatra. «O velho e o gato» surge após um encontro muito especial com uma gata, que o escolheu para dono sem falsas modéstias.

"Atualmente, sou também dono de uma gata, ou será que é ao contrário? Pois, acho que sim."
É um livro especialmente indicado para quem adora e vive com gatos. No momento em que lhe escrevo, a minha gata faz-me companhia à janela. Está atenta ao seu próprio mundo. A independência de um gato é muitas vezes tida, apenas e só, como arrogância e um rei a viver na barriga. Talvez não seja bem assim. Estudos recentes confirmam uma ligação emocional deste animal pelo seu dono, e isso é muito bonito.

Neste pequeno livro, acompanhado com algumas ilustrações, conheceremos assim a relação que cresce entre um homem mais velho e a gata que decidiu aparecer, que decidiu igualmente ficar.

Entre a resistência de assumir um animal de estimação até ao gradual encantamento e ligação, toda uma família se vê presa (no sentido livre da palavra) a uma gata muito especial.

"Desconfio que a nossa relação se baseia numa boa dose de mal-entendidos. E depois? Vivam os mal-entendidos, desde que nos façam bem."

Ao longo desta feliz jornada, todo e qualquer leitor que se identifique com este animal, sobretudo aqueles que partilham a sua vida com um, viverá horas felizes de uma leitura compartilhada e recheada de aventuras comuns.


Seja feliz,

Mataram a Cotovia (Harper Lee)

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020


«Mataram a Cotovia» é, provavelmente, um dos livros mais conhecidos e comentados de sempre. Decorrido na década de 30, em Maycomb, uma cidade no Sul dos Estados Unidos e tida como uma das mais racistas da História, este é um livro que grita preconceito e, na mesma medida, a bondade como única resposta possível.

Narrado pela jovem e peculiar Scout, uma menina de 6 anos de idade conheceremos, numa primeira fase da história, o seu crescimento e maturidade conjuntamente com o seu irmão mais velho, Jem. Ambos conhecerão Dill, um menino que vem passar as férias de verão naquela cidade. A amizade entre eles rapidamente se cria e, juntos, viverão inesquecíveis e imperdíveis aventuras.

Scout e Jem perderam a mãe ainda pequenos. A relação com o seu pai, Atticus, advogado de profissão, é uma das mais bonitas alguma vez escrita. Atticus é, também, na minha opinião, uma das personagens mais íntegras, consistentes e convictas da literatura.

Numa primeira fase da história, conheceremos em maior detalhe Scout, as suas agruras enquanto criança pequena, atrevida e aventureira. Conheceremos, na mesma medida, os anseios já adolescentes de Jem e a relação de irmãos, firme como cimento, independentemente dos conflitos típicos que só este tipo de laço produz.

Nas muitas aventuras vividas nas férias, atormentar Boo Radley parece ser a preferida dos três amigos. Boo Radley é um vizinho tido, por todos na cidade, como uma pessoa estranha, sombria, que não sai de casa. O interesse em perceber os motivos daquele isolamento, leva a que as crianças se atrevam - mais do que lhes seria permitido - a aproximar-se daquela casa. A partir do momento em que essa proximidade se cria, as crianças serão surpreendidas com pequenas oferendas escondidas numa árvore. Este é um dos pormenores mais bonitos desta história e poderá o leitor pensar que estas passagens são apenas marcos ligeiros na narrativa, contudo, lá mais para a frente, veremos em Boo uma das personagens mais determinantes de «Mataram a Cotovia».

A segunda parte da história desenvolve-se com a notícia de uma alegada violação perpetrada por Tom Robinson, um trabalhador negro. Atticus assume-se como advogado de defesa de Tom e a partir desse momento, toda uma nova viragem acontece na história, e em todas as suas personagens, ao longo do julgamento de Tom.

Este livro, através dos olhos de uma criança, apresenta-nos - num primeiro momento - a inocência da infância e um olhar puro sobre uma sociedade cheia de vícios e preconceitos. Numa segunda parte, encontraremos, uma vez mais, o contraste de um olhar infantil e as chispas dos olhares dos mais velhos, sempre tão prontos a acusar, a apontar dedos mas, acima de tudo e qualquer coisa, sem o desplante de pensarem na possibilidade de inocência daquele homem.
 
E se Tom for inocente?

Os grandes conflitos existenciais da obra são fortemente retratados ao longo do julgamento, num hiato de 3 anos e em que, constantemente, novas questões surgem no coração daquelas crianças e na implicância gratuita de adultos centrados no próprio umbigo. 
 
Atticus, enquanto advogado, será quase crucificado por um povo que não admite um novo olhar quando, em frente, se encontra uma pessoa negra. Scout, a nossa menina valente, sofrerá bullying, viverá constantemente preocupada e o seu irmão, Jem, viverá esse conflito interior na relação com o seu pai e no confronto com as atitudes firmes daquele.

Quando falo sobre este livro, a minha tendência é não mais me calar. A vontade é esmiuçar todo e qualquer pormenor de uma história tão rica, tão bonita. Mas o fim, caro leitor, seria um massacre literário se ousasse aqui escrevê-lo. Acredite.

Deixo-lhe no entanto, este meu registo final: lembra-se de lhe falar sobre o impacto de Boo Radley? O mesmo impacto é sentido na personagem de Tom e, fugindo do aparentemente óbvio, considero estas as duas personagens mais importantes criadas por Harper Lee.

Esta é uma história sobre racismo, contudo, o final lança uma nota de esperança num mundo movido pelo ódio. Essa nota, em jeito de resposta e esperada solução, é escrita pela mão da bondade mais pura, sem subterfúgios. Boo e Tom representam essa pureza, a bondade e a imagem dos que, na luz pesada dos outros, são intitulados como diferentes, os que a sociedade não compreende. 
 
Quando os incomprendidos, apenas e só, despertam o interesse das crianças, a autora lança essa semente de esperança, uma janela aberta, que pede um novo olhar sobre o mundo, sobre as pessoas. A promessa, e o desejo, que o olhar cristalino das crianças jamais atinja a maioridade, que sejamos, todos nós, para sempre, feitos desse olhar que não recrimina sem antes, pelo menos, permitir-se a compreender a diferença.
 
 
Um dos livros mais belos que li. O melhor do meu 2019.



Seja feliz,

O mais desejado

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020


«Doutor Jivago», de Boris Pasternak, é um dos livros que mais desejo ler em 2020.
Quem me conta coisas boas a respeito?
Sem spoilers. Bem haja!
 
 
Seja feliz!

O teu corpo é teu! (Rachel Brian)


Numa época cada vez mais exigente quando o assunto é privacidade e filtragem de questões/comportamentos que dispensam exposição, o livro de Rachel Brian surge como um recurso essencial nesta que é uma temática cuja intervenção se assume urgente.

Através de um grafismo muito apelativo, a autora conduz os mais pequenos (todos os adultos estão igualmente convidados nesta leitura) a caminhos de reflexão sobre o que é isso de consentimento. Mais do que centrado apenas em questões de abuso sexual - mas também - o livro aborda questões práticas do quotidiano da criança e no qual, eventualmente, se possa sentir constrangida, sem arnês de resposta.

A tendência a dizer «sim» quando queremos dizer «não» é um dos muitos exemplos destacados, bem como a capacidade de empatia, de espaço pessoal e, acima de todas as coisas, de amor próprio.

Numa cultura tão tipicamente portuguesa em que aceitar «só porque sim» nos parece (infelizmente) prática comum, nessa tendência de casar sacrifício com uma aura (errada) de bondade, este livro vem desmistificar alguns dos assuntos relacionados com o espaço pessoal que requerem ajustes na compreensão e, sobretudo, na sua prática.

Por uma inteligência emocional mais aguçada e para a promoção de competências sociais, ambos facilitadores de uma vida mais feliz e consciente, este livro de Rachel Brian assume-se de extrema relevância como recurso essencial para pais e professores. Um livro que merece lugar de destaque na sua estante.


Uma leitura com o apoio:

megustaleer - NUVEM DE LETRAS



Seja feliz,

Desfigurados pelo amor

terça-feira, 11 de fevereiro de 2020


 


" - Mas não é isso que nos acontece, mais cedo ou mais tarde? - disse ela. - Não acabamos todos desfigurados pelo amor?
- Acabamos? - A ideia, estranha a tudo o que Spurlock sabia do amor, pareceu-lhe inopinadamente verdadeira.
- Eu creio que sim. - disse ela.
Por um longo momento, mantiveram-se em silêncio.
- Talvez ... - disse Spurlock finalmente. - Quando reconhecemos essa nossa desfiguração, talvez nos vislumbremos como Deus nos vê, com amor. Em amor.
- Ou mesmo como amor.
- Sim - disse Spurlock. - Como amor."


Em «A Forma do Corvo», de DeSales Harrison, a quinta e última leitura do mês de Janeiro. Uma das mais especiais. 



Seja feliz,

Uma noite de inverno (Simon Sebag Montefiore)

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020


«Uma Noite de Inverno», de Simon Sebag Montefiore, é um dos livros mais bonitos e românticos que alguma vez li. Não conseguiria encontrar melhor definição como a escolhida pelo Observer: "Desesperadamente romântico. Profundamente perturbador." 

Independentemente do quadro histórico e político em se desenvolve, este é um livro sobre o amor na sua plenitude. O próprio autor o refere nas páginas finais quando nos diz: "As personagens principais deste romance - Satinov, Dashka, Serafima, Benya e Belman - foram completamente inventadas por mim. Este romance não é sobre poder, mas sim sobre a vida privada - acima de tudo, o amor." (p.481)

Mais do que Estaline e as suas condutas (infelizmente) tão conhecidas, bem como a política restrita daquela época, o autor teceu uma história em que o amor se torna personagem principal, bem como os laços familiares e a urgência de até onde poderá ir um filho em prol da segurança dos seus pais. Assuntos como parentalidade, amizade e, por fim, o amor maior do que todas as coisas, tecem as principais linhas de uma das histórias mais bonitas que alguém ousou escrever.

O amor, caro leitor. É isso que, abundantemente, escorre das páginas de Montefiore. Ao longo do livro conhecerá personagens inesquecíveis, capazes e corajosas de amar. Acredito que concorda comigo quando digo que amar é a maior proeza da vida, um verbo onde se acumulam as agruras da vida, os imprevistos em cada esquina. Fazer-lhe frente é imperativo, mas não é para todos.

Personagens adornadas de uma enorme resiliência, bem como a capacidade de sacrifício, definem quase na totalidade o quadro criado pelo autor. Se a política assume um importante plano, o amor (atrevo-me a repetir) prevalece sobre todas as coisas. Como pergunta, como resposta, como redenção.

Atrevo-me a dizer-lhe que nunca li história de amor mais bonita e são várias as que encontra nesta história. Não se trata, apenas e só, de um casal apaixonado e todos os clichês que eventualmente poderia pensar. Não. Aqui as camadas das histórias e dos personagens, apesar de ligados entre si, demonstram uma autonomia e uma subtileza nos seus gestos incapaz de se comparar a qualquer outra.

Já percebeu, espero, o meu entusiasmo nesta que foi uma das melhores leituras de 2019. É também deste livro que extraio um dos excertos mais belos sobre o primeiro amor, sobre o primeiro beijo:

"Quando Frank segurou as mãos dela nas suas, ela virou-as para entrelaçar os seus dedos nos dele, e quando os apertou, ele fez o mesmo; e ambos ficaram ali parados na neve, cara a cara, dominados pela excitação de se encontrarem um ao outro. A neve acolchoara a cidade de tal modo, que eles mal conseguiam ouvir ou ver o que quer que fosse. Haviam passado horas desde que se tinham conhecido, mas a relação deles, fresca como a neve de uma noite, parecia já durar há muito, muito tempo. Ela nunca beijara ninguém. Nunca o desejara. Mas queria que ele a beijasse agora."

Um livro sobre o amor na Rússia de Estaline. O quadro histórico e político é igualmente e magistralmente descrito e tudo começa quando, em 1975 (Moscovo), numa ponte da cidade são encontrados os corpos sem vida de um casal de adolescentes. Daqui surgem uma infinidade de questões sobre a possibilidade de um crime, de um pacto ou de uma conspiração.

Está criado o enredo que envolverá o leitor de forma obsessiva, tentando encontrar respostas conclusivas sobre o que terá acontecido aqueles dois jovens, num cenário protagonizado pelas figuras históricas mais marcantes do século XX.

Permita-me, este é um livro obrigatório.
Faça o favor de o ler. Agora.


Seja feliz,

Alfaces que sonham

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

"Nós e os cães, e outros animais domésticos cuja sensibilidade está há muitos milhares de anos ligada à nossa, não somos os únicos a sonhar de noite, pois também mamíferos mais pequenos, os ratos e as toupeiras, vivem num mundo que só existe na sua vida íntima, como se vê pelo movimento dos seus olhos enquanto dormem e, quem sabe, disse Austerlitz, se sonham também as mariposas, se sonham as alfaces da horta quando contemplam, à noite, a Lua."

Em «Austerlitz» de W.G. Sebald


Seja feliz,
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