Por este mundo acima (Patrícia Reis)

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Em  «Por este mundo acima», Patrícia Reis convida-nos a entrar num cenário de uma Lisboa vítima de um terrível desastre. O mundo perdeu a forma que se conhecia até então e nesta história sobrará um velho editor que, sem o saber, escapa para viver o drama de quem se vê completamente só, os amigos todos eles mortos e esquecidos.

Ao longo da sua jornada, o leitor conhecerá os amigos deste homem perdido. A sua ausência a permitir-lhe conhecer os segredos que nunca soube pois no meio da destruição, há casas de portas escancaradas e as que não estão, facilmente se pode entrar. Tudo parece possível ao homem, conhecer, desbravar caminho entre destroços, e a depressão que lhe vai ganhando lugar desde o coração até aos ossos.

Será numa dessas muitas deambulações a que se permite, que conhecerá um rapaz e pelo meio, também, o confronto com um livro antigo, nunca antes lido e que, agora, haja tempo de sobra, pode dedicar-se a uma leitura que se apresenta inigualável. 

 Tenho um manuscrito e uma criança."

Através de um cenário apocalíptico, a autora cria uma história de enorme sensibilidade sobre o poder da amizade, a solidão e os livros como amparo. A amizade do velho editor e do jovem rapaz vai crescendo nos limites da desgraça e, talvez por isso mesmo, se estreitam ainda mais os laços que lhe durarão a vida toda. Há quem diga que é na memória de uns e de outros que nos tornamos imortais. A história de Patrícia Reis é a luva que cabe, na perfeição, dentro deste conceito tão bonito.


Boas leituras e seja feliz,

O lugar das coisas perdidas (Susana Piedade)

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

 

 «O lugar das coisas perdidas» é o segundo livro da autora Susana Piedade, finalista do Prémio Leya com o romance «As histórias que não se contam».

Há temas difíceis de serem tecidos numa história e acredito que o desaparecimento de uma criança, seja um deles. Susana Piedade soube como o fazer, deixando o leitor, também ele, com o sentimento de invisibilidade perante a impotência que não nos permite mudar o rumo de uma história que se adivinha, na melhor das hipóteses, sem resposta definitiva.

"Quando uma criança não volta para casa, até os mais próximos se tornam suspeitos."

Numa pacata vila de província, uma criança desaparece naquela típica sombra, ou tempo que congela, em que não há vivalma que tenha visto seja o que for. Todos os desaparecimentos parecem feitos de uma sombra que transforma a leveza típica de uma criança, numa espécie de maldição partilhada. A rua parece engolir todos os olhos que poderiam testemunhar, e evitar, as tragédias ali sempre tão prontas.

Conheceremos a história de Mariana, rapariga que desde a infância foi sendo surpreendida pelas vicissitudes da vida.  Desde a tragédia na ponte que levou a mãe e os irmãos, sente-se-lhe a vida presa por pouco. Salva-a a tia, que lhe abre a porta e a sustenta. A adolescência veio acompanhada pelos amores apressados e quando se vê grávida, o namorado também se apressa a fugir.

Se inicialmente a gravidez a amendronta, gradualmente, transforma-se na sua salvação. A Alice rapidamente se transforma no centro do seu mundo e com o seu crescimento, também Mariana cresce por dentro, torna-se mulher, mais segura, mais pronta.

Susana Piedade escreve uma história que é um crescendo de desgraças intercalado por breves momentos em que a vida sossega e se distrai. O nascimento de Alice e os anos que se seguem na maternidade, são o ponto alto da vida desta jovem mãe para, num estalar de dedos, tudo desmoronar, mais uma vez.

Ali ninguém parece culpado e todos parecem culpados. Instala-se na vila um clima de constante desassossego, de novidades que afinal são mentiras, de mentiras que afinal até poderiam ser verdades. Num tema difícil como este, a autora criou um ambiente de dúvida que prevalece. Uma dúvida que acaba por resumir todas estas 254 páginas. Na infelicidade de um tema muito atual, muito presente nos noticiários, a autora, sabiamente, lança-nos um fio de reflexão muito pertinente: mesmo que julguemos saber a verdade, há todo um mundo cão, obscuro e cruel, que se sobrepõe à curta sensação de paz que uma aparente verdade pode trazer.

Se por momentos o fim desta história o deixar arreliado, pare, sossegue com o livro no colo e pense. Pense no quanto o mundo tem andado ao contrário, o quanto andamos todos desaparecidos na falsa ideia de controlo quando, na verdade, a vida está sempre pronta a surpreender-nos e, nem sempre, pelos melhores motivos.


Um livro que foi uma surpresa. Uma boa surpresa.

Permita-me que lho recomende.


 

Seja feliz,


Franny e Zooey (J.D. Salinger)

quarta-feira, 5 de agosto de 2020


Escrito em 1961, «Franny e Zooey», de J.D. Salinger é um livro que reúne dois contos, inicialmente publicados separadamente. Pelas temáticas que se cruzam, numa continuidade muito nítida, os contos acabaram por ser reunidos num único volume, este, de que hoje vos falo.

Ao longo do livro conheceremos a família Glass, dotada de uma inteligência muito afinada e com especial ênfase nos dois filhos mais novos do casal: Franny e Zooey, fortemente influenciados pelos seus dois irmãos mais velhos.

No primeiro conto, «Franny», conheceremos uma jovem perdida e desiludida no ambiente da faculdade, cansada das pessoas, do ego desmedido, numa reflexão aprofundada com o namorado sobre o seu lugar no mundo. A desilusão que invade a jovem ganha forma no confronto com um livro em particular, «O Caminho do Peregrino», de carácter religioso. Desde aí a leitura do livro torna-se compulsiva e a religiosidade, nas mais diversas formas, toma lugar. Acaba por adoecer, do corpo e da alma.

O segundo conto apesar de, aparentemente, se focar no seu irmão mais novo, Zooey, continuamos a viver o conflito existencial de Franny. A mãe, sempre preocupada em como inteligência mordaz dos filhos os poderia arruinar, convoca o irmão para que, através de uma conversa que será profunda, possa ajudar a irmã a reerguer-se do torpor que a invadiu, quase sem explicação.

É essa conversa o grande motor deste livro, na minha opinião. O autor lança um claro apontar de dedo à religião cristã, criticando severamente a ideia de que para sermos merecedores, temos de sofrer amargamente. A psicologia é igualmente apresentada como o mal de todos os pecados, que levou o irmão mais velho ao suicídio tal a tendência de chafurdar na dor para, enfim, adormecer a alma.

A genialidade dos irmãos é vivida num sinónimo de sofrimento porque faz questionar, constantemente, o seu lugar no mundo, a missão, o que é suposto ser feito. Isso cansa, cresce a vontade de desistir de tudo, desse empurrão desmedido de um ego que quase nos obriga a ser quem não somos, a fazer o que não queremos, a viver longe das próprias leis.

"(...) Estou farta de não ter coragem para ser um zé ninguém."

Só uma pessoa altamente inteligente é capaz de sentir este tipo de cansaço e a vontade de ser nada, mediado pela distância que vai do parecer ao ser. Ambos os irmãos estão cansados desse torpor em que a vida os foi envolvendo.

Se até este momento o leitor quase cai desesperançado, é quando o autor decide, como só ele sabia fazer, lançar uma esperança capaz de ser interpretada por toda a gente, como melhor lhe convém. E essa esperança vem abraçada ao Budismo e à crença de que todos nós temos um Deus muito próprio que nos habita. É também um elogio à meditação como o caminho, a porta e a janela que nos leva a esse lugar tão nosso e tão longe da matéria, do ego. O lugar onde tudo acontece somos nós, de dentro para fora, de encontro a uma consciência que se expande, clarificando os passos dados e enchendo-nos dessa esperança que é arnês. É o princípio dos princípios.




Um livro belíssimo.

💓


Seja feliz,

Sobre o verbo ler

terça-feira, 4 de agosto de 2020


"É evidente que a tradição literária dá uma grande ajuda; daí a escrita (a boa escrita) ser, incontornavelmente, a consequência de ler muito, de ter lido muito e de ler sempre muito."

in "Manual de Sobrevivência de um Escritor" (João Tordo)


Seja feliz,
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