Irmão de gelo (Alicia Kopf)

segunda-feira, 29 de janeiro de 2018


Alicia Kopf agitou o mundo da literatura com a sua obra de estreia «Irmão de Gelo». Foi vencedor do Prémio Llibreter, Prémio Documenta, Prémio Cálamo, Prémio Ojo Crítico.
 
O título não é apenas um acaso feliz: o irmão da autora, diagnosticado com autismo, personifica de forma alargada esse gelo que de físico pouco tem quando comparado ao gelo emocional, que derrete, que queima, que zanga:
 
"A deficiência costuma ser entendida como aquilo que impede um indivíduo de ser auto-suficiente e, por isso, de ter habilidades pelas quais os outros - a sociedade - queiram pagar. Embora vivendo deste modo, no aspecto económico muitos de nós poderíamos incluir-nos nesta categoria. Também há muitos deficientes que cobram quantias muito avultadas; deficientes emocionais severos, cretinos de vários níveis que dirigem empresas e países. Deste modo, por um ou por outro motivo a deficiência parece uma característica bastante comum à maior parte da população, incluindo eu própria, se nos ativermos ao facto de que ninguém é de todo independente e completamente funcional." p.34 e 35
Um livro original, que cresce numa escrita cansada, de quem não quer realmente saber se vão apreciar um tom mordaz, zangado, talvez resignado. Uma enorme sensibilidade, porém, obrigará o leitor a saber casar, e destrinçar, essas camadas de gelo que a autora, com um entusiasmo cauteloso, lhe faz chegar.
 
«Irmão de Gelo» tem nele a vida, a família, o amor no seu estado mais puro, a individualidade que reclama um Eu cheio, que não se encontra:
 
"Uma vez gostei de alguém que não gostava de mim. Isso fez com que gostasse ainda mais. Algum tempo depois, o comportamento absolutamente indiferente dele para comigo foi convertendo a atração em fascínio; uma imagem com a qual sonhar de uma forma masoquista tendo absoluta consciência disso." p.43
Alicia Kopf, entre essas camadas de gelos diferentes entre si, convida-nos a conhecer a sua caminhada, as suas convicções, reflexões e medos enquanto mulher, filha e irmã, até porque:
 
"(...) as regiões polares deixam uma marca naqueles que lutaram por elas, cuja profundidade não se explica facilmente aos homens que nunca saíram do mundo civilizado."

O irmão está lá, nessas regiões polares, a fazê-la questionar o quanto amada poderá ser ou, ao invés, qual o nível de perfeição esperado, à imagem de um vazio que ninguém percebe, apenas sente.
 
"Nas famílias por vezes há pessoas particularmente fortes, carismáticas ou luminosas. Estas personagens, se estiverem demasiado concentradas em si próprias, costumam fazer vítimas à sua volta." p.125

É nesse conjunto de camadas de vida, e de gelo, que Alicia Kopf põe a nu uma mulher congelada entre passado e presente, entre anseios de um futuro estagnado pelo medo de amar e, sobretudo, pelo abismo que sempre se pressente nos mal amados. 


Um livro que aflige, que é uma aventura de quem se busca a si mesmo, entre ventos e chuvas que nem sempre arrefecem só as mãos, os pés ou a ponta do nariz. É lá dentro que tudo congela, uma intempérie chamada coração.
 
 
Uma leitura que recomendo com as duas mãos e mais houvessem.
 
Com o apoio:
 



Love

quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

... make the air light. (John Updike)
 
Seja feliz,

Verão sem homens (Siri Hustvedt)

domingo, 21 de janeiro de 2018

 
«Verão sem homens» de Siri Hustvedt relata-nos a história da poetisa Mia, personagem peculiar que após trinta anos de casamento, se vê confrontada com um pedido, por parte do marido, de uma pausa. De um interregno. De um "vamos ver como corre."
 
O cenário deste pequeno livro enfatiza a rejeição e abandono que Mia sente após o marido decidir envolver-se com uma mulher mais nova, colega de trabalho, francesa e com todo um conjunto de características que colocarão Mia, sempre, na dúvida das suas capacidades, das suas potencialidades enquanto mulher madura. Houve uma Pausa, os nomes não são necessários e é, precisamente, nessa pausa que tudo parece acontecer.
 
Mia decide ir viver para perto de sua mãe, alugando uma casa próxima, com o intuito de lecionar poesia a um grupo de sete menina púberes. Gradualmente, a sua vida começa a reinventar-se numa nova ordem: as aulas com as jovens meninas e, também, a aproximação ao grupo de amigas séniores de sua mãe.
 
É neste confronto de gerações que o leitor se conhecerá as profundas reflexões de uma personagem marcada pelo abandono inesperado (não o é sempre?) e a sua tentativa, ainda que sempre sentida como frustrada, de lhe escapar. De se superar a si mesma.
 
O livro de Siri Hustvedt fala-nos, abertamente, da diferenciação de género, colocando em opostos extremos o papel de cada um, homem e mulher, bem como a dor da perda, os amores e desamores, a família, e a estrutura abalada de um coração que se dispensa, de um momento para o outro.
"A loucura é um estado de profunda autoabsorção. É necessário um esforço extremo só para não perdermos o rasto ao nosso próprio eu, e a viragem para a cura acontece no momento em que permitimos a entrada a um pedaço do mundo exterior (...)." p.21
Com um humor contagiante, o discurso de Mia não nos deixa indiferentes. Tal acontece não necessariamente pela riqueza dos assuntos que expõe, nem tão pouco pela originalidade parca de um tema muito abordado mas, sobretudo, pela empatia que a personagem nos vende: o dramatismo, a sensibilidade e a necessidade de uma redescoberta em si mesma, obrigará o leitor a querer saber o desfecho de uma história tantas vezes repetida.
O final, esse, com contornos sempre diferentes pelo peso, também ele diferente, de uma traição.


Boas leituras e faça o favor de ser feliz,

Poemas ao Sábado

sábado, 20 de janeiro de 2018


In: "Os cem melhores poemas portugueses dos últimos cem anos" | Organização de José Mário Silva
Edição:
Companhia das Letras Portugal

 
Seja feliz,
 

A Biblioteca da Piscina (Alan Hollinghurst)

quinta-feira, 18 de janeiro de 2018


O livro «A Biblioteca da Piscina», de Allan Hollinghurst, é já considerado um clássico pela relevância social daquela época, com um assunto emergente mas ainda altamente vedado pelo preconceito e pela vergonha. Este é um livro sobre homossexualidade na cultura inglesa, intercalado entre os anos 50 e os anos 80.
 
Hollinghurst conta-nos a  história do aristocrata William Beckwith, 25 anos, homossexual assumido, convicto das suas escolhas, seguro, rico, praticante do ócio ao mais alto nível, fruto da vida afortunada do seu avô, Lorde B.
 
Tudo se inicia num dos passeios de William pelo parque, parando nos urinóis, e acabando por ser confrontado com o desmaio de um homem mais velho: Charles Nantwich, pertencente à elite homossexual inglesa, e o homem que viria a alterar a consciência (quase) presunçosa de William.
 
Cedo descobrirá que também Charles frequenta o mesmo clube que ele, o Corry, um local onde a comunidade gay se sente plena de si mesma, independentemente dos graus de quem se assume inteiramente e os que os fazem intervaladamente.
 
Nascerá uma amizade genuína entre o jovem William e o sénior Charles, um homem enigmático, perdido num discurso que oscila, resultado de uma idade avançada e de um passado repleto de segredos que deseja ocultar, aparentemente.
 
A escrita de Alan Hollinghurst é soberba. Ele escreve com o coração veloz, sem ornamentos desnecessários, de quem deseja dizer o que realmente diz. Sem pudores, sem moralidades desajustadas, refletidas numa personagem segura de si mesma, seguro das suas preferências sexuais e do seu modo de estar na vida: William é a personificação da segurança, de um amor próprio narcísico.
 
Com o aprofundamento da amizade de ambos, Charles sugere a William que este escreva a sua biografia. Entre receios e dúvidas de quem vive uma vida ociosa, William acaba por aceitar tendo, posteriormente, acesso a todos os diários do velhote.
 
O autor, com «A Biblioteca da Piscina», tece um relato sublime sobre a condição da homossexualidade e o preconceito sempre associado. Se nos anos 50 temos um Charles reservado, numa necessidade urgente de desinibição, acalmada pela escrita que imprime cada um dos seus desejos,  os anos 80 mostram-nos um William destemido mas, abalado por uma série de acontecimentos futuros, cairá numa consciência que deseja negar: a do preconceito que nunca ousara confirmar a si mesmo.
 
É nesse paralelismo que o autor toca nas feridas sociais para afirmar, a alto e bom som, que nem o decorrer dos anos acalma essa agressividade e intolerância pela diferença.
 
 
Allan Hollinghurst, autor galardoado com diversos prémios literários, entre eles o Somerset Maugham Award (com o presente livro), é considerado um dos nomes cimeiros da literatura anglo-saxónica.
 
Da parte que me toca, só o posso recomendar sem qualquer reserva.
 
 
 
Boas leituras,

A ler Alicia Kopf

terça-feira, 16 de janeiro de 2018



"Algum tempo depois tive um amor daqueles que nos fazem compreender o significado da palavra casa. Deixei de pensar nele, mas por vezes ainda me aparecia em sonhos. Nos sonhos também era distante. Etimologicamente, o Árctico é o território do urso. Foi aí que situei a geografia de Icebergue, um homem alto, solitário e fleumático."

Alicia Kop in "Irmão de Gelo"
 
 
 
Uma leitura:
 
 
 
 
 
Boas leituras,
 

O que só vemos quando abrandamos (Haemin Sunim)

segunda-feira, 15 de janeiro de 2018



O livro do monge budista Haemin Sunim é um daqueles estalos de luva branca que todos nós precisamos, em algum momento das nossas vidas. Porquê?
Aparentemente a pressa dos dias leva tudo pela frente, sobretudo, o que deveria ficar. Falo do tempo dedicado, esse chamado tempo de qualidade, a capacidade de priorizar, de rentabilizar, de escutar essa ignorada voz interior que imprime, em nós, aquilo que realmente conta.
 
Dividido em vários temas, todos eles considerados da máxima pertinência, o autor sublinhará questões relacionadas com o tempo, o amor, o saber dar e receber mas, particularmente, o autoconhecimento e a dedicação a nós próprios.
 
Não se trata de egos mal colados, não. Trata-se, antes, de uma obrigação subtil por parte do autor em nos fazer questionar o nosso lugar no mundo, as nossas supostas obrigações sociais e, no fim, o saber virar os olhos para dentro, nessa cuidada meditação capaz de, com o seu tempo, nos trazer as respostas mais ambicionadas.
 
Um livro com leitura própria, recomendo como a esperança capaz de nos fazer mudar, quando a vontade impera mas o medo congela.
 
 
Boas leituras e sejam felizes,

A Rapariga dos Lábios Azuis (Francisco Duarte Mangas)

segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

Francisco Duarte Mangas nasceu em Vieira do Minho, em 1960. É jornalista, poeta, ficcionista, já com uma bibliografia bastante extensa e premiada, destacando-se o Prémio Carlos de Oliveira, Prémio Eixo Atlântico de Narrativa Galega e Portuguesa e Grande Prémio de Literatura ITF.
«A Rapariga dos Lábios Azuis» é o seu primeiro romance. Asseguro-vos que a escrita do autor é surpreendente, carregada de sensibilidade e empatia.
 
A história deste romance centra-se nessa mulher, de lábios azuis, que morre envenenada envolta em segredos profundos e fortes como as raízes das árvores. Dizem que morreu de amor.
 
Narrado a duas vozes, em tempos distintos, por uma avó e o seu neto, o leitor percorrerá o passado e o presente que se afirma, sempre, pela busca desenfreada de uma resposta face à morte, essa que sempre intriga, sobretudo, quando alguém decide confrontá-la, ultrapassando-a contra a sua vontade.
 
Através de uma escrita poética, vamos flutuando entre diferentes tempos narrativos, conjeturando, questionando, formulando intrigas e suspeitas para, no fim, as questões continuarem presentes.
 
E é a avó quem, às portas da morte que se anuncia, decide desvendar essa história ao menino, agora homem, cujas questões e efabulações em torno da rapariga dos lábios azuis, foram sempre uma constante.
 
Um livro que proclama o amor, a morte, a família e as dúvidas intrincadas que, a bom rigor, fazem parte da complexidade do ser. A escrita de Francisco Duarte Mangas inquieta e seduz, levando-nos a um enredo repleto de questões que não deixará o leitor acalmar até, por fim, chegar à sua última página. 
 
 
Boas leituras e sejam felizes,

Pax (Sara Pennypacker)

quinta-feira, 4 de janeiro de 2018



Hoje falo-vos de um livro infanto-juvenil, repleto de ternura e a sublinhar a importância inegável da ligação emocional com os animais de estimação.
Pax é um raposinho e a história de Sara Pennypacker vem contar-nos a sua ligação com Peter, um menino de 12 anos, tímido, reservado, órfão de mãe e distante do seu pai.
No momento em que este último parte para combate, Peter terá de abandonar a sua terra natal e ir viver com o avô. Esta mudança origina a despedida de Pax que, segundo o pai, terá de o largar novamente na floresta.
Toda a história se centrará, então, na cruel separação de ambos. Enquanto Peter tem de se adaptar a uma nova casa, a um avó ausente, Pax deambula assustado pela floresta, com aventuras ainda por descobrir.
Nesse paralelo, Peter foge de casa do avô e Pax começa a travar novas amizades na floresta: é toda uma nova vida, com descobertas infindáveis e muitos perigos ao virar da esquina.
Também Peter viverá muitos contratempos quando decide fugir, mas o desejo de reencontrar aquele que sempre fora o seu melhor amigo, define-lhe o caminho certo.
Encontrará, finalmente, Pax.
A questão, porém, a impor-se e a demarcar a história de Pennypacker reside em: poderão as coisas voltar ao que eram depois de tantas provações? Poderá a vida retomar de onde ficou, sem que a marca do tempo e os seus desafios reclame um novo destino?
 
Uma pequena e singela história sobre o poder da amizade e as provações que, sempre, nos obrigam a dar o melhor de nós mesmos.
 
Boas leituras e sejam felizes,

A ler Francisco Duarte Mangas

segunda-feira, 1 de janeiro de 2018


"Só um amor, dos que parecem eternos, justifica gesto assim de despojamento total. Ou teria a pobre rapariga pensado como a senhora Bovary - «a morte é coisa insignificante»."

Francisco Duarte Mangas in «A Rapariga dos Lábios Azuis» 
 
 
Muitos livros, sempre.
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