Os memoráveis de 2019

terça-feira, 31 de dezembro de 2019



Tenho andado desaparecida nesta corrente de festas. 2019 foi um ano cheio, feliz. Cheio também de grandes livros. Pela primeira vez, tive dificuldade em conseguir reunir os meus clássicos dez memoráveis. Mas cá estão eles.

Um bem haja, a si, que me segue ao longo desta jornada que já vai longa. E que bom que assim é.


Bom 2020!
Seja feliz, sempre.

Parem todos os relógios (Nuno Amado)

segunda-feira, 16 de dezembro de 2019


Com «Parem todos os relógios», Nuno Amado foi Finalista do Prémio Leya. 
Em 2012 li o seu primeiro livro, «À espera da Moby Dick». Lembro-me de ter gostado muito da forma bonita, e verdadeira, como descreveu o luto. Assim, tal como é, sem grandes (e possíveis) subterfúgios. 

O presente livro não tem um ponto de comparação entre o primeiro que li. Isso não tem de ser bom nem mau. São livros totalmente distintos, pese embora, a delicadeza do autor e da sua escrita. Falamos de uma escrita limpa, quase ternurenta. A voz de Nuno Amado é extremamente empática e isso nem sempre é fácil de atingir enquanto escritor. Sobretudo quando escreve uma mulher.

Helena é a personagem principal de «Parem todos os relógios». Esta é uma história de uma mulher que nunca havia amado, professora, tia dedicada, solteirona como tanto gostam de indicar. Um dia, porém, Helena apaixona-se. A vida mudará para sempre e dentro dessa história de amor, como bonecas russas, outras surgirão, pela força do tempo e do legado que os amores são feitos.

Acredite, eu podia escrever muito sobre este livro, contudo, não sinto necessidade de o fazer. Escrevo para lhe contar que nunca um título de um livro fez tanto sentido. Haverá forma mais bonita do que escrever um amor que nos nasce do nada? Parem todos os relógios, disse ela. Parem tudo já. Parem tudo agora. Há um amor a nascer e nestas coisas o tempo não pode, não deve, nunca deveria impor-se na pressa dos ponteiros.

É um bonito livro, apesar de considerar alguns desenvolvimentos um bocadinho inusitados, e desnecessários, como a aventura inesperada de Helena que larga tudo para, no confronto com criminosos italianos, fazer prevalecer esse amor que há pouco lhe falei.

Limando essas arestas, compreensíveis para o decorrer da história na luz do objetivo do autor, este livro torna-se pertinente, sobretudo, pela mensagem que se deveria repetir até à exaustão : o amor é a força de todas as coisas possíveis e impossíveis.

Este é um livro sobre mulheres, família, legados que nos ficam, aventuras de uma vida. Este é um livro que resume todas estas coisas para se subtrair numa só: o amor. O amor em todas as vertentes e a coragem que sempre agrega ao felizardo que o vive. A coragem de viver uma aventura chamada vida e para que assim seja, é forçosamente necessário que parem todos os relógios, como quem reclama o agora, e só o agora.



Seja feliz,

Fantasias de uma Mulher (Siri Hustvedt)

quinta-feira, 5 de dezembro de 2019


O título não engana. Siri Hustvedt, em «Fantasias de uma mulher», tece uma história em torno de uma jovem mulher, de 19 anos, Lily Dahl. Esta mulher vive o sonho de se tornar atriz e nesse entretanto, trabalha num café para ganhar dinheiro e sustentar o caminho que a levará à tão esperada fama. Sem correr o risco de lhe contar mais do que a conta, acredite, Lily não chegará lá, chegará a um lugar muito mais importante.

As fantasias são ventos que passam, muitas vezes, pelos dias cansados e monótonos. A vida de Lily é pautada pelos ritmos e horários rígidos do café, e os ensaios, à noite. Vive no andar de cima do Café Ideal e será após a chegada de um estranho pintor, que a sua vida ganhará um descontrolo que jamais imaginaria.

Passa as noites à janela enquanto vislumbra, do outro lado da rua, a janela do hotel onde o pintor se instalou e onde este se concentra, quase dramaticamente, na pintura dos seus quadros.

O esboço desta história está descrito mas Siri escreveu muito mais do que uma jovem mulher apaixonada por um pintor,  14 anos mais velho.

Há muito simbolismo nesta obra. Na minha opinião, o sangue é um deles. Serão várias as vezes que o leitor será confrontado com o sangue, símbolo da vida e do afeto. Creio que foi este pormenor que me fez gostar, particularmente, desta história.

Mais do que a fantasia de se tornar atriz, Lily, no confronto com as peculiares pessoas que frequentam o café, as suas histórias misturadas com a sua, criam-lhe a ânsia de viver acima de qualquer coisa. Encontra, então, o amor como resposta, caminho que lhe permite, agora, enxergar medos, anseios e fraquezas sobre a perspetiva de quem ousou, primeiramente, encontrar-se a si mesma.

Um livro de amor próprio, de questionamento e, por fim, de redenção.
Apesar de não ser o meu livro preferido (continua a ser, sem dúvida, «O Mundo Ardente»), a combinação do amor e da arte, como referência conhecida da autora,  fazem dele um livro merecedor.



Seja feliz,
 

Agora, sim!

terça-feira, 3 de dezembro de 2019



Agora, sim. Chegou o mês do Natal!
Gosto tanto! 

Quem nunca?

quinta-feira, 28 de novembro de 2019




" - Se eu estivesse a ler Fadayev, isso dir-te-ia algo diferente sobre o meu caráter do que se estivesse  a ler Wharton ou Akhmatova? Estás a analisar-me pelo que leio?"
In: "Uma noite de inverno" de Simon Sebag Montefiore
(a leitura do momento)


Seja feliz,

Uma questão de conveniência (Sayaka Murata)

terça-feira, 26 de novembro de 2019

conveniência
substantivo feminino

1. Vantagem, interesse
2. Proveito, utilidade
3. Decoro, decência

Sayaka Murata escreveu um livro que é, também, uma nota introdutória ao estigma e preconceito social, a praga de uma sociedade cada vez mais presente e mais destrutiva. Uma nota introdutória de muito valor e significado, deixe-me que lhe diga.

Esta é a história de Keiko, uma mulher de 36 anos, considerada estranha pelos seus pensamentos sempre práticos e desprovidos de emoção (possivelmente algum transtorno do espectro do autismo, mas que não é desenvolvido no livro, e bem.). A sua singularidade é motivo de preocupação para os pais, que lhe querem o melhor. Por melhor, entenda-se, um homem que a ampare, um casamento sólido, e já agora, um par de filhos para esfregar na sociedade um trabalho realizado com esmero e dedicação.

Mas Keiko é tudo menos isso. Aos 36 anos continua a trabalhar na loja de conveniência desde os seus tempos de faculdade, momento em que decidiu ser uma boa escolha para ajudar os pais e para, na mesma medida, se sentir mais autónoma.

Viu o mundo mais acertado dentro daquela loja, onde sente mais facilidade em lidar com as pessoas. Dentro de uma rotina calma, Keiko viu a vantagem (1) de uma escolha em proveito próprio e, acima de tudo, um lugar onde se sente acolhida e de bem com ela mesma.  Perante a inabilidade de se ajustar aos diálogos das pessoas, e dos seus amigos, esta mulher passou a ser vista na perspectiva de uma margem onde só os desajustados se inserem. Na loja tudo parecia certo e a utilidade (2) do seu trabalho inspirava-lhe o importante sentido de pertença.

Tudo parecia estar bem na vida desta jovem mulher até ao dia em que um rapaz é contratado para trabalhar na loja e uma aparente afinidade aliada à força das circunstâncias (sociais) a impele a questionar o rumo da sua própria vida. Enquanto os colegas de trabalho anseiam por uma história de amor, Keiko sente-se ainda mais estranha pelo entusiasmo e atenção que todos lhe dedicam. Até então, eram colegas de trabalho felizes na rotina de um trabalho exigente, mas agora as suas bocas palram num ritmo ajustado, frenético e angustiante sobre a sua (inexistente) vida amorosa. Aparentemente, havia encontrado um sentido diferente, um sentido gerado pelas expectativas alheias.

A sua vida, até então, feliz e ajustada com os seus próprios parâmetros, parecia empurrá-la para uma nova direção. Assim fez, na tentativa de se ajustar, de satisfazer os amigos, os pais e, particularmente, a sua irmã mais velha. Casada e com um filho, sim, escusa de perguntar. 

O igualmente peculiar rapaz é entretanto despedido da loja por considerar não se ajustar a um trabalho de merda e, ele sim, destinado a grandes feitos, a grandes sonhos que ainda o aguardam numa esquina qualquer. Num momento inesperado, em que Keiko o encontra na rua, decide então negociar uma vida a dois, compatível com ambos e, acima de tudo, compatível com as expectativas extenuantes das pessoas, da sociedade.

Decide acolher o rapaz, sem casa e sem dinheiro, para na sombra dessa decisão, poder encher a boca com os moldes ajustados de quem já se sente - Oh! Darwin! - um pássaro de bico forte para enfrentar o mundo. Keiko agora namora, faz amor (não, não faz), tem um homem (não, não tem)
Está uma senhora feita, mas não, não está. No momento em que esta mulher decide deixar de ser ela própria, desistindo inclusivamente de trabalhar na loja, vai morrendo a cada dia. A rotina que lhe trazia paz e felicidade, morre com ela nos dias sempre iguais, desajustados, ao lado de uma pessoa que a atormenta.

Sayaka Murata é sublime nesta crítica pungente, tão necessária, tão cómica da merda de sociedade a que pertencemos. E se é uma merda, porque é, a culpa também é nossa. É nossa a partir do momento em que nos identificamos com os tais moldes, o caminho esperado, as fases de um desenvolvimento não humano, antes mecanizado por uma orquestra desconhecida, mas que pesa muito nos corações e nos ouvidos, que de tão cansados de ouvir o mesmo, decidem entrar no rebanho dos infelizes, mas que não deixa de ser um rebanho.

Quando Keiko olha para dentro e reclama a decência (3) de ser quem é, a vida recomeça novamente, nesse sentido que só ela conhece como o certo para si, que só ela pode conhecer. É essa coragem de se saber quem é, de quem pensa por si, que faz desta personagem uma heroína dos tempos modernos. Uma heróina numa sociedade contemporânea que castra a individualidade e pressiona, sobretudo as mulheres e os seus úteros, a viver uma ideia fabricada das vidas ditas normais.



Um livro magnífico, o qual recomendo fortemente.


Seja feliz, seja ousado, seja você mesmo.
 


substantivo feminino
1. Vantagem, interesse.

2. Proveito, utilidade.

3. Decoro, decência.

"conveniência", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://dicionario.priberam.org/conveni%C3%AAncia [consultado em 25-11-2019].
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conveniência | s. f. | s. f. pl.

con·ve·ni·ên·ci·a

substantivo feminino
1. Vantagem, interesse.

2. Proveito, utilidade.

3. Decoro, decência.

"conveniência", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://dicionario.priberam.org/conveni%C3%AAncia [consultado em 25-11-2019].

con·ve·ni·ên·ci·a

substantivo feminino
1. Vantagem, interesse.

2. Proveito, utilidade.

3. Decoro, decência.

"conveniência", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://dicionario.priberam.org/conveni%C3%AAncia [consultado em 25-11-2019].

con·ve·ni·ên·ci·a

substantivo feminino
1. Vantagem, interesse.

2. Proveito, utilidade.

3. Decoro, decência.

"conveniência", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://dicionario.priberam.org/conveni%C3%AAncia [consultado em 25-11-2019].

paz traz paz (Afonso Cruz)

segunda-feira, 25 de novembro de 2019


Afonso Cruz é o escritor que trata as palavras por tu. Sabemos muito bem que nas relações mais próximas, em que podemos tratar o outro por tu, a proximidade fala mais alto e as palavras são sempre certeiras.

Afonso Cruz, cá para mim, deve ser o melhor amigo das palavras. Nas mãos do escritor, as palavras derretem e alastram-se em novos significados. Talvez, ainda mais poderosos. Na sua escrita, a palavra lágrima acaba num mar de sonhos e a tristeza, essa, pode ser travada por um canteiro de flores.

Serão palavras assim, aparentemente soltas, que fazem nascer poemas dos lugares mais improváveis. Sabemos também que a vida nos traz, sempre, as melhores surpresas vindas desses lugares que, por muito que se dê corda à imaginação, jamais lá chegaríamos. 


A imprevisibilidade da vida num poema, em muitos poemas, conduzem o leitor - atento ou desatento - a caminhos que se querem revisitados. Falo daquelas estradas repletas de encruzilhadas que, na pressa dos dias, já ninguém perde tempo para explorar. Falo do amor, da saudade e da esperança. 

Talvez a pressa dos dias seja tão grande que nos estreita a capacidade de enxergar. Só em frente, tamanha a pressa que nos faz esquecer de respirar, de parar, de acalmar e só assim, nessa tal imprevisibilidade, tocarmos a clareza das coisas. A clareza da vida.

Da mesma narradora de "O livro do ano", este pequeno livro, ilustrado magistralmente pelo autor, vem repleto de pensamentos soltos, cheios de sentido, por muito inusitados que possam parecer à primeira vista.
"Páginas feitas de inusitada poesia, para leitores de todos os feitios. Até os normais."

Um pequeno livro que é um exercício aplicado ao verbo viver: para ter sentido, exige uma repetição insistente. A repetição de quem aprende e desaprende, todos os dias.
Se isto não é viver, o que será?


Esta leitura contou com o apoio:
megustaleer - COMPANHIA DAS LETRAS


Seja feliz,

Dinheiro negro (Ross Macdonald)

quinta-feira, 21 de novembro de 2019


Quando nos dizem que este é um clássico imperdível, é mesmo. Ninguém me enganou. Este livro tem tudo para nos comprar a curiosidade e implorar por descobrir o fim de uma muito intrincada investigação. Todos parecem mentir.

Há um pouco de tudo nesta história de Ross Macdonald, desde a importância desmedida pelo dinheiro, dívidas enormes, segredos maiores ainda, acabando no homicídio e no sexo. Quando falamos em sexo, eis que surge também, e em todo o seu esplendor, a mulher como a causa de todos os problemas deste mundo.

Independentemente da irritação que isso possa suscitar, a verdade é que o autor criou uma história, além de muito bem construída, com pormenores que não são acasos, em que a mulher se torna o centro. Justo, ou não, cabe-lhe também o peso do amor como igual causa das maiores desgraças.

O leitor acompanhará as aventuras e desventuras do detective Lew Archer, contratado para resolver um mistério sobre um homem enigmático mas que acabará por, nesse desenvolvimento, descobrir outro mistério maior ainda. 

O autor, de forma direta e incisiva, mostra-nos as particularidades mais sombrias da alta sociedade sul-californiana dos anos 60. Tudo isto pelo olhar astuto de um detetive que aponta, sem pudores, a ambição e a inveja como dois atributos inatos de personagens que, acredite, não vai querer deixar de conhecer.


 Boas leituras.

 💖
Com o apoio,


Seja feliz,

Novo dia

terça-feira, 19 de novembro de 2019





"Sempre me senti encantado com a perspetiva de um novo dia, uma nova tentativa, mais um começo, com talvez um pouco de magia à espera, algures, por trás da manhã."
J.B. Priestley (1894-1984)
Escritor e Dramaturgo





Seja feliz,

O Véu Pintado (Somerset Maugham)

quarta-feira, 13 de novembro de 2019


No momento em que pouso este livro, dou comigo a pensar como seria o mundo se nele não houvesse um resquício de imperfeição. Em tudo. Na Natureza, nas pessoas, nos objetos e, acima de tudo, nas emoções. Um mundo onde imperasse a arte do sentir bem. 
Como seria viver num mundo onde tudo se encaixa, onde tudo faz sentido, onde os corações se alinham uns com os outros, onde os amores são igualmente alinhados numa linha transparente de compatibilidade? Como seria?
Não falta nada neste «Véu Pintado». É um daqueles exemplos em que nada falha num livro e tudo isto porque Somerset Maugham criou personagens de uma enorme riqueza e igual complexidade. Desde o enigmático e sombrio Walter, a Kitty, sua esposa inocente e egoísta, até à Charlie, homem despojado de qualquer sentimento ou sentido de moralidade. A ausência deste homem é tão grande, em todas estas coisas que lhe aponto, que quase se torna cómico.

É Kitty a personagem principal desta história. É uma mulher mimada, mal acostumada, muito levada pelo estatuto e preconceito social. É bonita e julga a beleza como forma de alcançar tudo o que deseja. Essa convicção movida pela vaidade, fará com que acabe com todas (as muitas!) oportunidades para conseguir aquilo a que chamam de "bom casamento". Aos poucos vai negando todos os jovens, talvez, por sentir que conseguirá sempre melhor. A idade avança e Kitty vê-se na iminência de não conseguir alterar o seu esperado e grandioso destino.

Walter, bacteriologista, homem tímido e muito reservado surge como a última possibilidade, e por assim ser, Kitty não olha para trás, não questiona, aceita casar sobretudo pela vergonha que sente quando pensa que a irmã mais nova, menos bonita, conseguiu casar-se primeiro do que ela.

Estas serão, pois então, as maiores motivações para um casamento. Conseguirá adivinhar o que se segue? Kitty não se sente feliz. As nítidas diferenças de temperamento, a timidez do marido em detrimento da sua extroversão e vontade de viver, resultam num progressivo afastamento e numa paixão assolapada por outro homem, Charlie.

Isto não é spoiler, caro leitor. Saberá desde logo que Kitty cometerá adultério. As consequências disso são, na minha opinião, magistralmente bem conduzidas e são a viragem daquilo que poderia ser uma história previsível. Walter informa Kitty que irá para uma localidade muito afastada na China, dizimada pela cólera e onde deseja aplicar os seus conhecimentos científicos, mas Kitty deverá acompanhá-lo.

[ A partir daqui, sim, poderá conter alguns spoilers. ]

Certa da sua sorte amorosa, Kitty corre para os braços de Charlie e aí percebe que este homem vazio nunca a quis assumir de verdade. Temendo que a sua própria vida seja posta em causa, este homem empurra igualmente Kitty para um destino que a apavora. Assim, decide acompanhar o marido ao invés de se perder para sempre.

Após uma viagem dificil e cansativa, a mulher decidiu já nada temer, muito menos, a morte. O risco de contágio naquela localidade é enorme e, ainda assim, é capaz de comer verduras e outros alimentos crus, como quem confronta a morte, e quase lhe pede misericórdia.

Kitty parece ter desistido de viver, entregue a uma solidão impossível de aguentar. Será nessa sequência e através de uma amizade que estabelece com o homem que auxiliou Walter, que conhecerá um grupo de freiras devotas. Esse é um novo ponto de viragem na história.

É precisamente neste contexto que a minha reflexão sobre um mundo perfeito toma lugar, uma vez mais. Kitty é tudo menos perfeita e são os erros que vai comentendo ao longo da vida que lhe darão clareza para um futuro muito diferente. Somerset Maugahm mostra, repito, de forma magistral, o quanto as dificuldades na jornada de uma vida são, muitas vezes, o impulso necessário às mudanças que, forçosamente, têm de acontecer.

Só após a consciência das falhas constantes ao longo da sua vida, Kitty percebe o quanto o mundo é feito de oportunidades e o quanto somos capazes de nos esmiuçar em inúmeras pessoas dentro de nós mesmos. Não se trata, na minha opinião, do verbo crescer e suas particularidades. Repare, Kitty é já uma mulher adulta. O autor escreve, acima de tudo, através de uma aparente mulher fútil, a capacidade de superação que existe em todos nós, nas situações mais atrozes, impossíveis sequer de conceber na própria imaginação.

Uma história de enorme tristeza, de superação e, por fim, a redenção como resposta a um véu que, finalmente, se rompe. A imperfeição como arnês e a escalada, sempre contínua, por respostas que a vida impõe e nos faz chegar muito mais longe.
 
 
 
Gostei muito e só posso recomendar.
 
 
Seja feliz,

Conveniências

segunda-feira, 11 de novembro de 2019


"Mais um dia que começa. É esta a hora a que o mundo acorda e todas as suas engrenagens se põem a girar. Também eu estou em movimento, como uma dessas engrenagens. Sou uma peça no mecanismo do mundo, a rodar dentro desta manhã."

In «Uma questão de conveniência» de Sayaka Murata



Seja feliz,

Uma vida inteira (Robert Seethaler)

sábado, 9 de novembro de 2019


Sempre gostei de dicionários. Dão-me, muitas vezes, a sensação de paz de que preciso quando, confusa com o sentido das coisas, encontro a palavra certa que me atenua a ansiedade.
Depois de ler «Uma vida inteira», de Robert Seethaler, será certamente atacado com os mesmos níveis de ansiedade do que eu. Depois de muito procurar, encontrei a palavra antídoto:

Esfera
"Corpo redondo cujos pontos superficiais estão equidistantes do centro; bola."
"Representação geográfica da Terra."

Eis a palavra certa para definir a história do inesquecível Andreas Egger, personagem principal deste pequeno, mas enorme, livro. Um livro que, aparentemente, se centra na história de vida de um homem. Na verdade, é disso que se trata e, à primeira vista, pode parecer redutor, simples, pequeno. E todas essas ideias pré-concebidas só (me) nos mostram o quanto somos humanos e o quanto em nós há por resolver. A vida é imensa nessa aparente pequenez e, de forma sublime, repleta de sensibilidade, Robert Seethaler escreve e prova o quanto isso é verdade. 

Esta é a história de Andreas Egger, que após a morte da mãe, é entregue a um homem que o aceita pelo punhado de moedas que leva ao peito. A vida nas montanhas começa assim a tecer-se e a crescer, repleta de desafios: os filhos do homem, sempre preteridos a si mesmo, encafuado num curral enquanto lhes ouvia os confortos da casa ao lado.

Muitas coisas acontecem na vida deste homem, sempre entregue à neve, às montanhas como apoio sólido a uma solidão que lhe parece congénita. Ele cresceu, partiu uma perna, curou-se quase sozinho, viu morrer os dois filhos daquele homem e, nessa sequência, à laia do azar de uns, a sorte de outros, começou a ser reconhecido pela sua força e pelo seu bom trabalho.

Marie surge e nessa esfera que parece sempre girar em torno da montanha e de uma vida isolada, a vida estala-lhe ainda mais os dedos gretados mas, desta vez, são fissuras que lhe deixam entrar o sol, brilhante como os cabelos de Marie, semelhante a si mesmo, pelas mãos gretadas de quem, também, nunca temeu o trabalho.

Um amor nasce, repentino e eficaz, como só os amores de verdade o são. Não exigem rascunhos, são escritos desde logo sem erros de ortografia e, muito menos, de sintaxe. De um namoro acanhado a um pedido de casamento que arde em fogo, a esfera de Andreas foi girando na medida exata do tempo.

E o tempo, esse, pode ser ingrato. Tanto traz, como leva. A história de Egger é assim, uma esfera que não para de girar e nessa sequência, se vê enredado, imerso na confusão de uma vida que lhe parecia certa e rotineira como os seus dias.

Este homem viverá muitas coisas, inclusivamente as amarguras de uma guerra. A dor que lhe nasce, nova, na perna. O caminho que parece mais árduo à medida dos dias, das semanas, dos anos. Esta é uma história de solidão, da vida de um homem que tudo fez e o vazio que se instale no peso da idade.


A escrita de Robert Seethaler casa a simplicidade com a sensibilidade. De uma forma majestosa faz imperar a necessidade de aprofundar mais sobre a natureza humana, sobre o nosso lugar no mundo, sobre a aridez dos dias mais difíceis, a resiliência que nos é exigida para, no fim de tudo, questionarmos se valeu a pena, perdidos num autocarro que nos desconhece o destino.

Gostei muito e recomendo, com ambas as mãos.


Seja feliz,

Sem Abrigo (Maria Inês Almeida e José Almeida de Oliveira)

quinta-feira, 7 de novembro de 2019


O livro infantil «Sem abrigo» de Maria Inês Almeida foi escrito a quatro mãos. A autora contou com o apoio do seu filho, de 8 anos, José Almeida de Oliveira e, em conjunto, na voz do menino, foi criada uma história de enorme sensibilidade debruçada sobre um tema, que por si só, é sensível e difícil de gerir. 

Esta é a história de um menino que, a certa altura, perceberá que os sem abrigo não são aquelas pessoas que, por tanto gostarem de ver as estrelas, não saem da rua. Perceberá também o quanto solitário pode ser isto de se andar sozinho na rua, com um cobertor para trás e para a frente, na imensidão de um mundo sem tetos brancos como o seu, e muito menos, sem o luar esbatido pela luz do seu candeeiro.

A autora criou uma história de enorme sensibilidade, tecida na ingenuidade tão bonita das crianças. Também é nessa ingenuidade que há espaço para crescer e ver com outros olhos, olhos maiores de quem já se prepara, aos poucos, para a desigualdade de que tantas vezes o mundo é feito.

Dessa desigualdade, e numa esperança que se deseja partilhada, este menino anseia por um mundo melhor onde o bom coração das pessoas - em que ele tanto acredita - prevalecerá em cada gesto.


Com o apoio,



Seja feliz,

As moscas de Outono (Irène Némirovsky)

quarta-feira, 6 de novembro de 2019


Em «As moscas de Outono», de Irène Némirovsky, encontramos uma pequena história em que dela se extrai mais uma espécie de amor improvável: o amor de uma empregada, Tatiana Ivanovna, pelos seus amos, os Karine.

«A escrita subtil e a afinada certeza psicológica recordam-nos do quanto a boa prosa pode conseguir em muito poucas palavras.»
The Times
É isto mesmo. A escrita sempre tão limpa, harmoniosa e direta, de Irène, transformam uma pequena história como esta, a de uma empregada que segue os amos na época anterior à Revolução Russa, num marco memorável sobre amor e resiliência.

Tatiana sempre dedicou toda a vida ao cuidado dos Karine. Quando os amos, pela força das circunstâncias políticas, se vêem obrigados a abandonar a sua casa e exilando-se em Paris, Tatiana é a última a abandonar o barco. Permanece, contra tudo e contra todos, na casa agora vazia, apenas cheia pelas memórias de um passado que, a ela, lhe parece sempre presente.

Nessa fase, entregue à solidão da casa, acolhe um dos filhos dos Karine, ferido e às portas da morte. A vinda deste jovem provoca-lhe uma catadupa de memórias passadas, as mais felizes, que parecem perdurar nos valores de uma mulher que sempre cuidou, preservou e acarinhou a família para quem trabalhou desde sempre.

Programado o seu coração, de forma vitalícia, no cuidado aos amos, também ela acaba por ir ao seu encontro, no pequeno apartamento em Paris. O choque de uma mudança nunca esperada reflete nela o medo do presente, o desejo do passado, a consciência dessa mesma impossibilidade.

O final deste livro, publicado originalmente no ano de 1931, sublinha a tragédia como redenção. A consciência como porta que se abre a todos os medos e o desejo, enfim, de continuar num passado que, tanto, se quer inalterável.

Leia. Leia já!




Seja feliz,

A ler «Uma vida inteira»

terça-feira, 5 de novembro de 2019



"Já estava há tanto tempo no mundo! Vira-o mudar e parecia que girava cada vez mais depressa de ano para ano, e Egger sentia-se um vestígio de uma era há muito enterrada, uma espinhosa erva daninha que teimava em esticar-se, enquanto pudesse, em direção ao Sol."
Em «Uma vida inteira» de Robert Seethaler 



Seja feliz,

Pessoas cocó

quarta-feira, 30 de outubro de 2019

 

Já me tinham falado na existência de pessoas cocó e, ultimamente, tenho vindo a perceber que há um grupo específico de pessoas em que o termo cocó se aplica de forma exemplar, num contexto muito específico: no trânsito.
Quando alguém à nossa frente conduz muito (muito! mesmo muito!) devagar a tendência é ultrapassar, não me diria? Pois bem, eu também o costumo fazer. Esse é o momento em que a pessoa começa a acelerar que nem uma doida ficando a outra pessoa - neste caso, eu - numa aflição de quem não sabe onde, literalmente, se meter. Estas são, para mim, as verdadeiras pessoas cocó. Só uma pessoa muito cocó é que, propositadamente põe em risco a segurança de outro e tudo isto, lamentavelmente, conduzido (passo a redundância) por um ego maior do que si mesmo.

Não é uma questão que me irrite. É uma questão que me entristece.



Seja feliz (e nunca cocó!) 

A mulher entre nós (Greer Hendricks e Sarah Pekkanen)

segunda-feira, 28 de outubro de 2019


Se a minha abordagem a esta história exigisse um título, seria algo como "A vida entre nós e a teoria do caos familiar." Muito pomposo, eu sei. Não me ocorre nada melhor e que possa fazer tanto sentido quando viro a última página deste livro. 

«A mulher entre nós» de Greer Hendricks e Sarah Pekkanen conta-nos a história de Vanessa, confrontada com o o divórcio após dez anos de casamento e que não aceita a coragem do seu ex-marido em refazer a sua vida amorosa, agora, junto de uma mulher dez anos mais nova. Esta mulher, Nellie, está no viço da idade, vive o esplendor de um corpo rijo, sem mácula. Está segura de uma juventude vitalícia. 

Este é um livro de surpresas. Uma teoria do caos muito inesperada. Não falamos propriamente de um bom livro em termos literários, contudo, é uma história que pela sua intrincada linha de acontecimentos, deixa no leitor a urgência de questionar  essa teia que parece urdir sempre em torno de uma teoria do caos familiar.

Eis que «A mulher entre nós» desperta no leitor essa teoria improvisada do caos familiar, bem ao jeito de um castelo de cartas e um vento que se lhe deu. Já parou para pensar no número de vezes em que uma atitude sua, consciente ou inconsciente, se refletiu na vida de alguém? Já parou para pensar nessa fina teia de acontecimentos na qual, eu, você e todos os outros, se entrelaçam na sequência de um destino? Agora aplique toda esta teoria ao sistema familiar e temos reflexão para a vida toda.

Assustador ou abismal? Ambos, eu diria.

As autoras conseguem incutir no leitor a obrigatoriedade de pensar no quanto um gesto pode mudar a vida de alguém, seja esse gesto lançado por bondade ou não. Tantas vezes lançado numa indiferença de quem desconhece. Eis o ponto de toda a história, numa aparente indiferença.

Esta é a história de uma mulher que se sente traída, enganada pelo seu marido e pelo seu corpo que cedeu rapidamente ao avançar dos anos. É uma história sobre o amor e o quanto estamos empenhados em fazer de tudo para vingar o nosso lugar. Mas mais do que tudo isso, este livro fala-nos do quanto somos capazes de nos centrar nas próprias dores desconhecendo, numa indiferença inocente, o quanto alguém vive dor semelhante no reflexo dos nossos próprios atos. 

Independentemente dos assuntos relacionados com o casamento e as suas particularidades, com as fraquezas que cada um tem, com as cedências sempre à espreita para assumirem lugar, esta ideia de teoria do caos provocada, tantas vezes, por quem está ao nosso lado - e sem saber - é, para mim, o aspeto mais promissor e singular deste livro.


É um livro de surpresas, arrisco-me a repetir. O leitor lançado nas duas primeiras partes jamais imaginará o que o aguarda no final. É uma surpresa que se vai revelando, como tudo na vida. O melhor? É que nem sempre aquilo que tomamos como certo, o é, de facto.

Vanessa, Nellie e Richard são prova viva disso mesmo. 
Se está curioso, consegui o meu propósito.
Agora, vá ler. Por favor. 

 


Com o apoio,

megustaleer - SUMA DE LETRAS



Seja feliz,

Fome (Knut Hamsun)

sexta-feira, 25 de outubro de 2019


Quem abrir este livro acompanhará um homem que deambula, perdido em si mesmo, pelas ruas, pelos campos, pelas casas e lojas. Esfomeado. Nunca lhe conheceremos o nome e não é por acaso. 
Quando procuro por significados mais concretos para a palavra «fome», surgem-me definições como "grande vontade de comer" ou "urgência de alimento". E por alimento entende-se sempre "aquilo que se come". Mas nada disto me satisfaz.

Este livro é um desafio concreto para que mergulhe numa história que, inicialmente, lhe comprará a ausência de alguma coisa. Ficará cheio de um nada que é fome mas que nenhuma comida será capaz de matar.

Conhecerá um homem sem nome numa marca clara dessa ausência de si mesmo. Sonha escrever, quase se auto impõe a uma fome forçada e que lhe provoca, vezes sem conta, o desespero do corpo. Apesar da procura incessante por dinheiro, por comida, parece ser essa ausência ao longo de um tortuoso caminho, que o acorda vezes e vezes sem conta para a urgência da vida. É ele quem decide pela fome, pelo sofrimento a que se sujeita.

A fome deste homem, por muito palpável que possa ser, é acima de tudo uma fome que lhe vem da alma. Do intelecto, por vezes, arrogante. O vazio que sente, a deambulação por caminhos tortuosos, a dúvida, o preconceito social espelhado são sintomas de uma alma esfomeada que teima vingar.

Como se alimenta uma alma? 
É aqui que reside toda a urgência que Hamsun desejou escrever. A fome de uma alma não parece ser criteriosa ou padronizada quando pensamos numa forma de a saciar. A fome das almas é pessoal, tão única, tão individual que jamais alguém a poderá matar por nós.

Há quem diga que as almas se alimentam dos sonhos. E também os sonhos só a nós pertencem.
Este personagem decide largar tudo e caminhar. Nele vivem muitos e variados sonhos que, com o passar do tempo, se vão desnutrindo na falta de crença, de motivação, de ímpeto. Do que seja. Uma soma das falhas tão humanas que, na ponta da língua, sempre encontram alguma justificação. Seja a fome agonizante, seja o estômago agora cheio de mais, nada parece saciar verdadeiramente a alma deste homem. Apenas e só o sofrimento imposto.

Ler «Fome» de Knut Hamsun é como entrar num mar de aflições que não são nossas mas que, à força de acompanharmos o trajeto de um homem desconhecido, arrogante, por vezes tolo, empatizamos de tal forma com a sua perplexidade perante o mundo que desejaremos, inequivocamente, conhecer-lhe o destino.

Por «destino» diz-nos o dicionário que se trata de "uma combinação de circunstâncias ou de acontecimentos que influem de um modo inelutável." Perceberá então, caro leitor, como o destino aberto deste homem parecia estar traçado desde o início, que se permitiu sonhar com o nariz empinado e deixou, simplesmente, que o mar o acolhesse. Sem perguntas mas, provavelmente, com muitas respostas futuras às quais, nem eu, nem você, teremos acesso.

«Fome» é considerado um dos romances mais importantes da história literária da Noruega e da Europa, cuja estrutura narrativa é também diferente de tudo o resto, numa espécie de confirmação entre o sonho de ser escritor e as amarguras que o mesmo impõe a quem ousa. Esses esfomeados de alma.




Seja feliz,
e circunstâncias ou de acontecimentos que influem de um modo inelutável.

"destino", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://dicionario.priberam.org/destino [consultado em 24-10-

Suíte Francesa (Irène Némirovsky)

quarta-feira, 23 de outubro de 2019


Este ano assumi um compromisso sério com Irène Nemirovsky. 
«O Baile» foi o primeiro livro que li da autora, já há uns anos. Ficaria a saber, mais tarde, que a história daquele livro foi baseada na relação difícil de Irène com a sua mãe, uma mulher muito concentrada na beleza, no medo de envelhecer e muito distante.

Pormenores à parte, hoje venho falar-lhe de um dos seus livros mais emblemáticos: «Suíte Francesa». A história em torno deste livro é linda a tocante. A ideia inicial da autora era construir um livro dividido em cinco partes, inspirada na estrutura da Quinta Sinfonia de Beethoven. Acredite, este livro tem música do princípio ao fim, tamanha sensibilidade de uma das escritoras, para mim, mais inesquecíveis de sempre. Desculpe se exagero mas, como lhe disse, estou comprometida. Ultimamente são inúmeros os textos e artigos a que me dedico, sobre Irène.

Apesar de inicialmente a ideia do livro se centrar em cinco partes, Irène Némirovsky só conseguiu escrever duas, antes de ser presa em Julho de 1942. Morreu em Auschwitz no mês seguinte. Foi a sua filha, Denise Epstein, que descobriu mais tarde os manuscritos da sua mãe. Por considerar que, eventualmente, se trataria de um difícil diário das memórias de sua mãe, passaria mais tempo ainda até, finalmente, os abrir e descobrir que tinha entre mãos um livro. Este magnífico livro de que hoje eu, você, toda a gente que o entenda, pode ter a (feliz) oportunidade de ler e conhecer.

Este será um texto entusiasmado, desculpe-me mas não o consigo evitar. Irène Némirovsky está a tornar-se numa das minhas escritoras mais admiradas. A sua escrita é nua, despojada. A simplicidade com que tecia as suas histórias, cujas personagens estudava meticulosamente em primeiro lugar, provam que não são precisos muitos artefactos na palavra para que uma mensagem arrebatadora atropele o mais cauteloso leitor.

«Suíte Francesa» é um romance sobre a guerra, sobre o êxodo de Paris após a invasão dos alemães de 1940. Enquanto vivia na pele todo aquele tumulto, Irène escreveu, relatou e expurgou muitos dos medos e preconceitos tantas vezes escondidos pelo medo.

«Tempestade em Junho» e «Dolce» são as duas partes que integram o livro, que se unem entre si, desde a fuga de inúmeros franceses até («Dolce») um momento de história que nos obriga, enquanto leitores, a olhar para dentro e questionar a possibilidade de vislumbrar os soldados alemães como gente. Parece cruel, escrito com esta aparente leviandade, mas acredite que ao ler uma improvável e inacabada história de amor como esta, exige-se uma empatia que nos faz questionar - imagine! - como se sentiriam também eles, soldados alemães, tantos deles sem vontade própria, que mataram e morreram porque alguém lhes diz ter de ser assim.

Talvez por esse mesmo motivo, a escritora acabou por ser alvo de duras críticas, sobretudo pelo preconceito francês e a empatia pelo inimigo. Polémicas à parte, Iréne Némirovsky escreveu uma história com limites quase impossíveis de tamanha sensibilidade, que nos fascina, amedronta, que nos faz desejar que o livro nunca mais termine. Levamos em nós cada uma das personagens, desde a mulher que perdeu o marido em combate e combate agora, na solidão e na pobreza, formas de alimentar o seu bebé de colo. Levamos, para sempre, Lucile: mulher arrebatadora, de uma moralidade que aflige, de um coração comedido pelas linhas de uma História que a obrigou a que assim fosse.

Leia, leia este livro. Nunca foi minha intenção contar esta história em absoluto até porque, para isso, me basta dizer-lhe que a II Grande Guerra Mundial está no centro do livro, numa escrita que se tornou um marco sobre um momento da história que ninguém esquece. Leia este livro. Mesmo que a sua motivação seja, primeiramente, apenas movida pelo enquadramento histórico, acredite que quando começar a ler as primeiras folhas, ficará tão envolvido pela vida destas pessoas, pelo amor que nasce onde menos se espera que quando der por si, não conseguirá regressar.
E vai agradecer por isso.




 O filme foi produzido por Saul Dibb em 2014.
O trailer, aqui:




Até ao momento, poderá também encontrar no blogue as opiniões dos seguintes livros de Irène:

"O Baile", aqui
"O Senhor das Almas", aqui


 💓
Seja feliz,

A arte de viver numa estante

quarta-feira, 16 de outubro de 2019


A Arisca a assumir na plenitude essa arte desejada de se poder viver numa estante.
(risos)



Seja feliz,

Budapeste (Chico Buarque)

quarta-feira, 9 de outubro de 2019


«Budapeste», livro de Chico Buarque, vencedor do Prémio Camões 2019 (Edição Companhia das Letras), obriga-me à clássica comparação das bonecas russas. É uma história com muitas outras dentro. É um livro que nos fala sobre um escritor que, por sua vez, escreve livros para outros. Os livros que escreve parecem ter vida própria e uns laivos, aqui e ali, de premonições. São premonições que se colam a esse mundo um tanto distorcido de José Costa, a nossa personagem principal.

Este homem é um ghost-writer de enorme talento. Chegará um momento, após ter escrito uma biografia encomendada, em que os astros se alinham com a sua vontade, sempre muito incrustada entre momentos de procrastinação e descrença pessoal, para escrever a chamada "boa literatura".

O livro, tal como nós leitores, viajará muito. Após regressar de um congresso de escritores anónimos, José Costa vê-se obrigado a fazer escala em Budapeste. Será neste momento em que a viragem na sua vida se dá da forma mais cómica e desastrosa possível. Chegará um momento, na leitura, em que perdemos o pé e já não sabemos muito bem onde se encontra este homem tão perdido em si mesmo.

«Budapeste» é escrito por mão leve, balanceado entre o típico samba e os tons tão amarelos que Costa viu em Budapeste. São dois lugares, são histórias que se cruzam num livro vivo e um homem também ele dividido em dois, na igual sombra de duas mulheres.

Chico Buarque oferece-nos um livro sobre um homem perdido na sombra de um trabalho seu sem ser, na sombra de uma vida que é sua sem ser: uma soma de ausências que o parecem definir (quase) até à última página.


Ficou curioso?
Então faça o favor de ler!


Com o apoio:




Seja feliz,

Comentários de uma mulher com TOC

segunda-feira, 7 de outubro de 2019


O meu Transtorno Obsessivo-Compulsivo (leve) impele-me à necessidade de desabafar.
Caras mulheres e homens que pintam os lábios de vermelho: aprendam a delinear bem os lábios antes do batom propriamente dito.
Por amor de Cristo Nosso Senhor, há algo de errado comigo (admito) mas é uma das coisas que mais me tira do sério. Ao invés de me concentrar na pessoa que conversa comigo, estou a roer as unhas da ansiedade (a minha ansiedade tem unhas, sim senhor!) e a fazer um esforço monstruoso para não ir lá, com os meus dedos, corrigir. Não. Nunca fui tão longe, o que ainda me permite ter esperança em mim mesma. (risos).



Seja feliz, boa semana!

Anjos (Denis Johnson)

quinta-feira, 3 de outubro de 2019


«Anjos», o aclamado primeiro romance de Denis Johnson, é um livro escrito à mão da violência.
Jamie Mays, uma das personagens centrais do livro, é uma mulher que decide fugir do marido que a traiu, levando consigo as duas filhas menores. Será numa viagem de autocarro que, na imprevisibilidade de Deus, do destino ou do que lhe queiramos chamar, conhecerá Bill Houston. Este homem, ex-oficial da marinha, traz também com ele a sombra de um divórcio mal resolvida. Já esteve preso, levando uma obscura e secreta vida que o coloca sempre na margem da sobrevivência.

Essa será, também, a nova vida de Jamie. O amor improvisado ganha contornos nesta que é uma relação, eu diria, acomodada às circunstâncias tão similares de ambos. São duas pessoas que acabam unidas pelos seus próprios demónios, numa procura de um anjo capaz de lhe levar tamanho desespero.

É também o desespero a grande marca neste primeiro livro do autor (falecido em 2017). Todas as personagens vivem aqui num desespero comum. O desespero da não aceitação, da peça fora do jogo, da carta fora do baralho. Desespero e desamparo são duas formas de retratar, cruamente, estas personagens que apenas parecem encontrar solução no mundo obscuro do crime.

De forte impacto, escrito de forma irrepreensível, «Anjos» é um livro capaz de nos fazer reflectir sobre a tendência desesperada de sucumbir à violência como a única resposta possível ao medo de ser e estar num mundo que não se ajusta.


💓

Seja feliz,
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