Me and Susan Sontag

quarta-feira, 24 de abril de 2019

Fonte: Pinterest


Seja feliz,

O meu livro dos mantras (Tanaaz Chubb)

terça-feira, 23 de abril de 2019

 
Aceite o meu desafio: quando estiver a caminhar tranquilamente na rua, olhe para as pessoas, escolha uma e pense: "que gorda" ou, quem sabe "que armada em parva" ou, ainda, "deve ter a mania". Faça isso com consciência e sinta o poder das palavras silenciosas na sua mente. Agora, para e pense: como se sentiu ao ser maldizente gratuitamente?
 
Há uma tendência generalizada de nos sentirmos quentes e confortáveis com uma língua de cobra para com as pessoas, com o mundo todo. É a falsa ideia de um refúgio, uma forma de agrupar e somar todas as pessoas na mesma poça de lama. É uma espécie de certeza de não estarmos sós. Não sei se já percebeu onde eu quero chegar: quem fala mal, mal está. Foi Osho quem um dia definiu a "raiva como um amor que está doente". Pense nisto com cuidado.
 
Faço-lhe esta introdução porque acredito genuinamente que somos nós os responsáveis por tudo o que nos acontece, que a vida se vai desenhando pela nossa perspetiva, arquitetos de um futuro que depende, claro está, das vibrações que se emitem.
 
«O meu livro dos mantras», de Tannaz Chubb,  vai de encontro à necessidade de percebermos o nosso potencial e o dos outros, a capacidade que há em nós mesmos para sermos felizes mas que, tantas vezes, acaba por ser mascarada não só pela pressa dos dias como a tal tendência a vitimizar, a ridiculizar e julgar os outros, mas também a si mesmo. Tenha vergonha disso. Veja a dualidade da vida. Porquê batalhar na sombra se, do outro lado, há a possibilidade de uma luz? Opte pelo lado bom das coisas. Além disso, ganhará menos rugas. risos
 
É precisamente aqui que este pequeno livro o pode, e vai, ajudar. Preencha o seu estado de espírito com pensamentos capazes de alterar perspetivas, tudo isto através de mantras integrados em áreas tão importantes como o amor próprio ou a realização pessoal. As palavras têm um poder e um peso incalculável e se despertar a sua consciência para esta realidade, há todo um manancial de novas possibilidades, de novos recomeços.
 
Agora deixo-lhe um outro desafio: quando estiver a caminhar tranquilamente na rua, olhe para as pessoas, escolha uma e pense: "que batalhas trava esta pessoa?" e torça por ela. Se não precisa de a conhecer para julgar e maldizer, então e ao invés, torça por ela. Nós somos o que nos rodeia, nós somos os co-criadores dos nossos dias. Depende de si a alteração das perspetivas pessoais e a forma como ajeita o seu coração em cada uma das situações que vive. Sozinho e acompanhado.
 
Agarre este livro e confie no poder dos seus pensamentos, nas palavras que deles nascem e, consequentemente, nos comportamentos que se tornarão, eu aposto, menos azedos.
 

Com o apoio:

       ❤


Seja feliz,
 

Ler(-te) em Português | Abril

quinta-feira, 18 de abril de 2019


O meu projeto pessoal «Ler(-te) em Português» do mês de Abril será dedicado à leitura o livro «Iracema» de José de Alencar. É considerado um dos grandes clássicos da literatura brasileira. Confesso a minha enorme curiosidade e igual expectativa. Vamos ler!



Com o apoio:




Seja feliz,

Como cozinhar uma criança (Afonso Cruz)

terça-feira, 16 de abril de 2019

"O caril é feito de muitas ervas, assim como uma pessoa é feita de muitas palavras, de muitas pessoas que vieram de longe, de romanos, de cartagineses, de extraterrestres, de chineses, de italianos, de estrelas, de espanhóis, da Lua, até de franceses.
As pessoas são feitas de tudo, são o cozinhado mais dilatado do mundo, são feitas de tardes a brincar no pomar, de histórias lidas na cama, dos sonhos que atiramos da nossa cabeça para a rua."
Ainda me lembro, era eu pequena, dos avisos sérios da minha mãe no que à massa dizia respeito: "não deves retirar do lume nem muito cedo, nem muito tarde. Há um ponto. A massa tem de ficar al dente."
Demorei algum tempo a entender esse conceito. No dicionário e na culinária, é percebido pelo "tempo de cozedura de forma a apresentar firmeza ou alguma resistência quando o alimento é mordido." (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa). Mas as minhas dúvidas continuavam, persistentes.
 
Foi esta a regressão que fiz quando abri o mais recente livro infantil do nosso Afonso Cruz, "Como cozinhar uma criança". Aqueles momentos em que, pacientemente, a minha mãe me dava dicas - que só mais tarde percebi como eram preciosas - sobre como cozinhar, fizeram-me refletir profundamente sobre esta que é uma feliz metáfora sobre a importância dos afetos.
 
Assim como a prática de cozinhar é delicada, exige tempo, dedicação, paciência e esmero, também uma criança carece desse tempo de cozedura. Sabemos que a qualquer cozinhado não lhe poderá falta o tempero certo. Seja uma erva aromática, umas pedrinhas de sal rosa ou a pimenta que nos acelera. Também às crianças carece o tempero certo, na medida certa, no momento exato.
 
Quando finalmente percebi que a massa requer um tempo preciso para que não fique cozinhada de mais ou de menos, fui igualmente capaz de perceber o quanto os corações deveriam ser assim cozinhados e transformados.
 
«Como cozinhar uma criança» é a uma aventura que envolve dois cozinheiros, ambos esmerados, ambos de convicções fortes, mas muito diferentes entre si. E depois, as crianças, prestes a serem cozinhadas. Cada um parece ter uma receita muito própria. Um diz que é fazê-las saltar para a panela, a pronto, e servir com esmero. Outro diz que são precisas doses de paciência, igual esmero, tempo e dedicação. Imaginar é também um verbo assemelhado ao sal ou à pimenta: em doses certas fará toda a diferença, sobretudo, aos corações mais adormecidos.
"Imaginar é mastigar com a imaginação. O nosso cérebro é um estômago com dentes que está sempre a digerir coisas novas para as mãos fazerem."
 
Afonso Cruz, no seu jeito tão próprio, criou um guia de culinária dos afetos, para crianças e para adultos. Com o recurso da imaginação, podemos antever o quanto exige cozinhar uma criança. Assim como a massa que prima por ser servida al dente, também uma criança precisa dessa resistência antes de ser empurrada para a aventura da sua vida, aquela em que já caminhará pelo seu próprio pé. São necessárias doses de minutos de quem sabe esperar e a astúcia para perceber o ingrediente que falta, seja sal ou pimenta, que é como quem diz, um grande beijo ou um forte abraço.
 
«Como cozinhar uma criança» é o equivalente à cereja no topo do bolo. Qualquer bolo gosta de uma decoração bonita, seja recheio de chocolate, sejam morangos espalhados em desordem. Tudo isto equivale, neste guia essencial, aos beijos na testa de uma criança ou às palavras temperadas pela paciência, naqueles dias em que o mundo parece ruir e nada melhor do que um abraço com sabor a casa.
 
 
 
 
Com o apoio:
 
 
 
 
Receita de hoje: Seja feliz e cozinhe o seu coração em banho-maria, sem pressas, até amolecer na medida certa.

Castelos de Cartão (Almudena Grandes)

terça-feira, 9 de abril de 2019


Porque não? Porque não três pessoas amarem-se entre si? Quem nos diz, afinal, que têm de ser dois? Não foi três a conta que Deus fez?

Quando terminei de ler Almudena Grandes, muitos foram os pensamentos em torno desta temática que tão magistralmente nos traz: o amor a três. 

«Castelos de Cartão» narra a história de Maria José, Marcos e Jaime, estudantes de arte, pintores, jovens corações encantados pela força, que ainda lhes restaria, da arte e da procura da fama. Sem rodeios, todos se apaixonam ao mesmo tempo, os três, numa simbiose inicialmente muito estranha mas que o prazer que dela nasce, não deixa espaço para eventuais estigmas sociais.

Sabe caro leitor, esta é uma bonita história de amor. É que nisto do amor, a tendência tão nossa de apontar dedos, ora vejam lá vejam lá bem, dois homens e uma mulher, nus, numa cama. Sabe Deus. Onde anda a moral caída deste Mundo, minha nossa Senhora da Aparecida?

Este livro retrata muitas coisas mas, acredite, é acima de tudo o confronto com as nossas próprias limitações, as nossas próprias crenças tão enraizadas no certo e errado que nosso senhor Jesus nos foi transmitindo pelas bocas e gestos de um pai e de uma mãe ainda, e para sempre, em formação. É isso sim, o lidar com o estigma de três corpos que se amam em conjunto, à sua maneira, ao seu jeito tão próprio e íntimo. 

Se esta história de amor acaba bem? Não.

Por terem sido três pessoas enamoradas entre si ou porque Deus quis apenas que o amor fosse bilateral, fiel como as palas dos burros que quando postas, os obrigam a olhar só em frente? Será isso mesmo? O que quis Almudena mostrar-nos com estas três inesquecíveis personagens?

Escorrem questões, da tinta fresca de cada quadro pintado por eles. Marcos, o genial e desistente da vida, Jaime, o provinciano sedutor que não falha o seu lugar na cama e Maria José, mulher perdida em si, nos seus medos, detentora de um talento preguiçoso, enorme, mas tão preguiçoso e igualmente desistente.

"Quando o ano lectivo acabou, aquela era a primeira e única história séria, intensa, verdadeira, que eu tinha tido em toda a minha vida."

A arte, o sexo, o amor e a morte embarcam numa pequena história que não deixa nada por dizer. Há espaços vazios para que eu, você e outra pessoa qualquer, integre em si mesmo. O espaço vazio, e tão único, em que todos os amores - ah, são tantos e variados! - possam encaixar devidamente na vida de cada um, com os receios, com os medos, com as preguiças, com as incertezas.

Foi nessa incerteza que Maria José dedicou o seu futuro. Estacionou todas as esperanças num passado fugaz que lhe mostrou a realidade da felicidade, que existe de facto, mas uma vez ida, vai para sempre.

"Era demasiado amor. Demasiado grande, demasiado complicado, demasiado confuso, e arriscado, e fecundo, e doloroso. Tanto quanto eu podia dar, mas mais do que me convinha. Por isso se desmoronou. Não se esgotou, nem se acabou, nem morreu, desmoronou-se apenas, veio abaixo como uma torre demasiado alta, como uma aposta demasiado alta, como uma esperança demasiado alta."


Uma bonita história que nos oferece ar, declínio, amor e morte. A oferenda da demasia, a que todo o amor que se preze, sempre invoca.
Demasiado, demasiado amor.


Gostei imenso deste pequeno livro, desta grande história.
Faça o favor de ler.





Seja feliz,

Sei porque canta o pássaro na gaiola (Maya Angelou)

segunda-feira, 8 de abril de 2019


"Maya Angelou (1928-2014) é uma autora afro-americana com considerável influência em várias áreas da cultura contemporânea dos Estados Unidos da América. Marguerite Annie Johnson nasceu em St. Louis, Missouri, e até à adolescência viveu em diversos lugares, começando a construir uma experiência invulgar e tocante pela coragem e paixão criativa. Embora as primeiras décadas da sua vida tivessem sido marcadas pela deslocação, pela precariedade e pela dupla opressão de género e raça, Angelou acabou por granjear reconhecimento e admiração nas diversas áreas em que interveio. O seu impacto atravessa barreiras raciais e políticas, sendo de particular relevância na escrita das mulheres afro-americanas."

«Sei porque canta o pássaro na gaiola» é um livro autobiográfico, abrangendo a infância e princípio da adolescência de Maya.

Não é um livro fácil e dele pouco se pode dizer sem antever o que irão ler, se eventualmente, se aventurarem a conhecer a sua vida. É que merece ser conhecida, de facto. A Maya Angelou é daquelas mulheres resolvidas, independentemente das agruras da sua vida. Foram várias, penosas, difíceis de superar e capazes de modelar a vida, naquele registo, para sempre. Mas ela decidiu que não seria assim.

A autora foi violada com apenas 8 anos de idade. Acredito que esta é uma das passagens mais vivas, cruéis e intensas ao longo de todo o livro. Apesar dessa dificuldade, prima também pela poesia de que a sua escrita é feita: consegue transformar um pesadelo impondo-lhe um traço, aqui e ali, de uma beleza inocente, a inocência das crianças, explicando um amor que à partida, e ao olho crítico do adulto, jamais poderia sequer ser invocado. Mas ela invocou. Sem qualquer pudor. 

Um livro que merece leitura nua, leitura sem arnês, sem grandes apontamentos. Não leia esta biografia certo de saber já muitas coisas sobre esta peculiar e especial mulher. Ela cresceu com os pais ausentes, perdidos também eles nas suas vidas boémias e livres. Viveu a maior parte do tempo com a sua avó, dona de uma mercearia. Ali decorreram a maioria das aventuras de Maya. As brincadeiras. Os doces. A primeira amiga. A preparação para uma vida repleta de surpresas e, nem sempre, vistas da melhor perspectiva. Mas ela viu. Ela tirou o melhor partido em tudo o que viveu. Chamam-lhe resiliência. Uma força interior que é dom, o brinde de nascença apenas e só de alguns: os dotados de um coração maleável, elástico que estica até aos confins de um sonho.


Um testemunho que deveria ser um alerta para todos aqueles com a tendência, tão fácil, à vitimização. A todos nos é dada essa possibilidade, a de nos deixar cair, a desistir, a encostar o corpo cansado como desculpa. Temos, do outro lado, a possibilidade de - mais recuperados - ver o lado bom das sombras. Nada mais é do que a luz que nos entra janela adentro. Deixe. Deixe entrar essa luz.
Maya Angelou vai mostrar-lhe isso mesmo neste que é um livro que recomendo com ambas as mãos. 





Seja feliz,

A Memória das Pedras (Carol Shields)

quinta-feira, 4 de abril de 2019


Contém spoilers. Conto praticamente tudo o que acontece neste livro. Fica o aviso.

Carol Ann Warner Shields nasceu a 2 de Junho de 1935 em Oak Park, Illinois. Ficou conhecida, particularmente, pelo seu aclamado «A Memória das Pedras», vencedor por Prémio Pulitzer de 1995. Faleceu no dia 16 de Julho de 2003 no Canadá.

Em «A Memória das Pedras» conhecemos a história de Daisy Goodwill. Todo o livro é essa caminhada. Nascimento. Infância. Casamento. Amor. Maternidade. Trabalho. Desgosto. Tranquilidade. Doença. Declínio. Morte. Esta é a jornada de vida de uma mulher que, em todo o tempo, se procurou a si mesma nos lugares mais improváveis. 

O livro começa com um excerto de «The Grandmother Cycle de Judith Downing, Converse Quarterly, Autumn», que nos diz:

Nada do que ela fazia
ou dizia

era exactamente
o que queria

mesmo assim a sua vida
era como um monumento

esculpido no decline
da luz disponível

girando ao som
da música possível


Lido todo o livro, o leitor deve voltar para esta página, para este excerto. É aqui que reside na totalidade a essência de Daisy. Uma mulher que nasceu perdida, como obra do acaso, de uma mãe também ela imprevista nas matérias da maternidade e do amor devoto do seu pequeno homem. O seu nascimento seria a prova de que os inícios constroem os fins. 

O casamento dos seus pais surgiu como os dias de chuva, um acaso. Uma mulher entregue desde pequena a uma casa de acolhimento e que, um dia, e com uma porta estragada, conhece o pedreiro que iria resolver o problema. Resolveu-lhe também o problema da solidão, propondo-lhe casamento e uma casa para viver. Aceitou-o como quem aceita uma flor ou uma pedra. Era uma mulher que vivia para a comida, para a cozinha, ansiando despertar no marido o paladar certo, com a comida certa, com um pudim novo. Era a sua forma subtil, mas pungente ainda assim, de lhe mostrar amor. Quem sabe, gratidão.

Um dia cai ao chão, dores que desconhece e o judeu que a ouve e abre a porta. Uma menina nasce e a mãe desiste de lhe viver, quem sabe, numa troca justa de quem nunca se agarrou tanto assim à vida.

Nasce Daisy Goodwill, resgatada pela vizinha e amiga Clarentine. Também esta mulher foge do que o destino lhe desenhou. Deixa para trás o marido, quase injustamente, e instala-se em casa do filho mais novo, Barker. O pai de Daisy ficou onde sempre esteve, com a vida ladeada em duas direções: casa-trabalho. Entre ambas, trabalhava a pedra que sempre o foi definindo, erguendo uma torre de lembrança à esposa amada, também esse amor, lapidado com o tempo, esquecido, relembrado, novamente esquecido pela afronta de uma morte inesperada.

Aos 11 anos de idade já Daisy era uma menina mulher. Os braços nus, em vestidos de Verão, lembravam mais do que seria de supor ao seu tio emprestado Barker. O medo de pensamentos que ultrapassavam a moral dos tempos e lhe calcavam a luxúria, afastaram-no aos poucos. A vida ajudou, trespassando Clarentine para uma morte por atropelamento. Daisy jamais poderia viver apenas e só com o seu tio. Foi quando vida voltou a empurrá-la na direção do seu pai, agora com melhores condições de trabalho, cada vez mais rico e detentor de um certo estatuto social.

Ao sabor do vento é a condição que melhor cabe em Daisy. A vida desta mulher, desde o início, foi marcada pelo peso do seu passado, como pedras, e esperanças como flores, as quais aprendeu a cuidar com Clarentine para, nunca e em momento algum, sentir-se como una, inteira. Por muito que a vida lhe pudesse oferecer, aos poucos, em pequenas rajadas, Daisy nunca se sentiu inteira.

Poderia o amor mudar essa sensação de perda constante? Também o seu primeiro casamento não passou de um momento fugaz, levado pelo vento e pelo tempo que prontamente fez esquecer. Ficou, uma vez mais, o peso pesado de uma situação a que nenhuma jovem mulher deveria viver, muito menos naquela época: o marido, homem embriagado a todas as horas do dia, cai-lhe da janela no primeiro dia da sua lua de mel. Amor, a Daisy ainda não havia encontrado. Como poderia agora a vida melhorar? Encontrar uma direção que fosse de encontro a si mesma?

O tempo passou e com ele a resignação dos cansados da alma. A viver com o seu pai e a sua nova esposa, Maria, mais nova, mas sem idade definida, Daisy continuou a vislumbrar o abismo com que sempre vivera. Um constante tempo nublado. Faltava o sol que fertiliza, bem à sua maneira.

Decide, então, viajar. Sozinha. Por uma ou duas semanas. Quer ver rios, coisas novas, coisas bonitas, viver sensações desconhecidas, começar a tratá-las por tu. Como quem vive, de facto. Como quem mergulha. Como quem vive, enfim. Um braço que roça, acidentalmente, no seu. A certeza de um coração que lhe pulsa, que lhe transparece pelas veias.

"Naquele tempo, eu pensava que os homens eram sobretudo apreciados pelas histórias que irrompiam nas suas vidas, enquanto que com as mulheres o mais provável era que fossem asfixiadas pelas que irrompiam nas delas. Porquê? Por que é que tinha de ser assim?"
O amor surge-lhe após rever o tio Barker, que nunca foi tio. Quis a força das circunstância determinar um elo de sangue que nunca existiu. Quis o destino, ardiloso, que as circunstâncias não fossem mais do que isso e a diferença de idades apenas e só uma constatação.

Casou. Foi mãe. Descobriu o amor na serenidade dos gestos de Barker. Descobriu a maternidade na diferença de cada um dos seus três filhos. Tornou-se mulher. Aprendeu a cozinhar, a cuidar da casa, a cuidar de si, a ser mulher a dias e mulher do dia na hora da chegada do marido.

E o tempo, juntamente com um vento consistente, levou-lhe mais anos. Levou-lhe Barker também, dianteiro na idade e na vontade de viver. Ficou só. Enlutou e reavivou aquele vazio que sempre a definiu. Uma vazio a carecer, todas as horas, de um preenchimento.

Daisy começou a trabalhar. No legado do seu marido professor e investigador, tornou-se a «Boa Mão», escrevendo artigos cuidados e pormenorizados sobre plantas em geral. Um novo vazio era agora suplantado pela necessidade de realização pessoal mas também esse vazio que cobriu consigo mesma, lhe foi tirado. Um dia, do nada, é dispensada de escrever o seus artigos.

Surge, então, a má hora. Entra em depressão para, mais tarde, ressurgir como quem nasce das cinzas. Dizem que as más horas são tão necessárias como o pão de cada dia. É o cair que nos permite o saber levantar. Não levantar de qualquer maneira. Levantar na hora certa, no momento exato, no minuto do despertador, num mais um, nem menos um.

A vida desta mulher continua e ela, certa de quem é, deixa-se ir com o vento, e tal como nasceu, assim morrerá: entregue e despojada àquilo que a vida lhe foi apontando. Horas felizes, horas amargas, horas nada, horas tudo. Daisy não se limitou a viver por viver como muitos poderiam pensar. Limitou-se a viver numa procura quente de si mesma, acreditando sempre no sentido de humor que só os afortunados de alma são capazes de enxergar. Dizem que vêem com os olhos de Deus. Um clarão que não se decifra.

- Ela deixou que a vida lhe acontecesse.
 - Bem, e porque não?
- Era como se...
- Como se?
- Como se ela estivesse sempre a perseguir um breve pensamento perdido com uma agulha e uma linha.
- Receosa de olhar para dentro dela mesma. Para o caso de não haver lá nada.


Carol Shields agita-nos e empurra-nos para a perseguição desse breve pensamento perdido. Será o destino final a resposta para o sentido da vida? Vivemos nós todos estes anos para, num enfim já cansado, apenas chegar? Chegar onde?

«A memória das pedras» é o dedo na ferida para todos aqueles que buscam o sentido de si, e da vida, para lá de si mesmos. O estalo fatídico de que, afinal, a vida é feita desses pequenos nadas e que saber confrontá-los, nesse clarão que não decifra, é por si só viver. O verbo é terapêutico e cheio por si mesmo. Viver. Viver somente. E só assim a vida acontece.

Só assim.




Seja feliz,
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