Carta de uma desconhecida (Stefan Zweig)

quarta-feira, 24 de julho de 2019


São pouco mais de 60 páginas para provar, sobretudo aos mais céticos nestas questões sentimentais, que a intensidade de um amor não é quantificável, de forma alguma. Em pouco mais de 60 páginas leremos uma carta intensa, sofrida, por vezes quase inacreditável. Outras vezes, nessa mistura de incredulidade, chega a ser revoltante.
 
Stefan Zweig, o autor particularmente conhecido pela sua sensibilidade no retrato aprimorado (e profundo) dos sentimentos, oferece-nos uma trágica e peculiar história de amor. Porquê peculiar e não especial? Ambos são sinónimos mas não é fácil escolher esse adjetivo ao conhecer a dor de uma mulher que amou perdidamente, despojadamente, sem retorno ou - mais cruel ainda - sem qualquer reconhecimento. Para todo o sempre, será uma desconhecida. E isto dá muito que pensar.
 
A história começa com o regresso de um homem a casa. É o dia do seu aniversário, completará 41 anos. Senta-se na poltrona e, distraidamente, verifica as cartas recebidas. Uma carta diferente, maior, uma caligrafia (também ela) desconhecida. A carta de uma mulher em que lhe expõe, sem falsos pudores, todo um amor que lhe nasceu era ela ainda uma adolescente. Um amor dedicado, atento e devoto. Um amor que, até então, ele não sabia ter existido.
 
Ao longo desta carta percebemos a dedicação de uma mulher a um amor que, nos dias de hoje, nos parece fora dos parâmetros. Quando o digo penso nas atuais mensagens, cada vez mais desenvolvidas, de amor próprio. Só podemos amar, amando-nos primeiro. Se eu não gostar de mim, quem gostará? Esta carta vai pedir-lhe que esqueça isso e retroceda aos tempos antigos, aos tempos em que o coração se inflama de tal maneira que a mulher ou o homem adoecem, perdem as forças, a razão de viver que incide, como um ponteiro acertado, na vida daquela outra pessoa. (Por exemplo, quando falo em homens, lembro-me automaticamente do Werther de Goethe, quem esquece aquele sofrimento?).
 
O livro de Stefan Zweig, que nos faz voltar a esses amores intemporais, tão dramáticos e potentes, obrigou-me a refletir, especialmente, sobre dois assuntos que considero aqui muito pertinentes: o impacto que podemos exercer na vida de uma pessoa que nos é completamente desconhecida e, numa outra vertente, o dramatismo escondido em todas as histórias de amor.
 
Esta mulher amou desesperadamente. Poderíamos até pensar num amor platónico, nunca consumado, mas não é isso que acontece aqui, caro leitor. A crueldade desta carta, que prima pelo tom inocente e despojado, de quem nada pede, faz-nos questionar sobre o poder de destruição de que todos nós somos capazes, tantas vezes, de um modo completamente inconsciente.
 
Amor é mesmo esse verbo terapêutico que nos protege de tantas maleitas. É o verbo auspiciado que se quer presente diariamente na nossa vida, a germinar. Negá-lo será, obviamente, um direito seu mas, no que à natureza e às leis de Deus diz respeito, nós somos seres movidos pelo afeto, pela necessidade de partilha, de um crescimento paralelo que se desenvolve, paradoxalmente, na divisão das partes. Curioso, não me dirá? Nascemos para amar, nas suas mais diversas ramificações e aqui, falando de amor romântico (Francesco Alberoni saberia tecer aqui uma teoria muito mais válida, mas tentarei ainda assim), o dramatismo de quem se vê como uma sombra do objeto amado, toma lugar. Inequivocamente.
 
Os tempos mudaram, é verdade. Alain de Botton, num dos seus estudos sobre o relacionamento amoroso, fala na comparação (referida em inúmeros estudos sociológicos) entre o efeito da paixão no cérebro e o consumo de drogas. O poder da paixão é, assim, inegável. E o amor na sua conceção? A mudança dos tempos estão também a criar novas conceções sobre o amor em si mesmo? Estaremos nós agora, nesta era tecnológica movida pelo facilitismo que incita, na mesma medida, um egoísmo tido como "naturalista", a caminhar para uma espécie de desumanização dos afetos?
 
Não me compreenda mal. Não concebo o amor à luz do silêncio e da devoção extrema como tantos romances da era vitoriana, assim como esta carta de uma desconhecida. Não é bem esse o ponto de reflexão que Stefan Zweig originou em mim. Passa, antes, pelas novas formas de amar e nessa tentativa solitária de o concebermos (quase) unilateralmente. Estaremos nós a caminhar, a passos largos, para o contraste extremo dos tempos antigos? Nesse caminho, onde fica o meio termo quando nos nasce um amor?
 
 
São pouco mais de 60 páginas (escritas em 1922) para nos confirmar a eterna complexidade do amor como a única condição impassível de mudança, por muitos anos que passem.
 
 
     
 ❤
Seja feliz,

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