Mataram a Cotovia (Harper Lee)

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020


«Mataram a Cotovia» é, provavelmente, um dos livros mais conhecidos e comentados de sempre. Decorrido na década de 30, em Maycomb, uma cidade no Sul dos Estados Unidos e tida como uma das mais racistas da História, este é um livro que grita preconceito e, na mesma medida, a bondade como única resposta possível.

Narrado pela jovem e peculiar Scout, uma menina de 6 anos de idade conheceremos, numa primeira fase da história, o seu crescimento e maturidade conjuntamente com o seu irmão mais velho, Jem. Ambos conhecerão Dill, um menino que vem passar as férias de verão naquela cidade. A amizade entre eles rapidamente se cria e, juntos, viverão inesquecíveis e imperdíveis aventuras.

Scout e Jem perderam a mãe ainda pequenos. A relação com o seu pai, Atticus, advogado de profissão, é uma das mais bonitas alguma vez escrita. Atticus é, também, na minha opinião, uma das personagens mais íntegras, consistentes e convictas da literatura.

Numa primeira fase da história, conheceremos em maior detalhe Scout, as suas agruras enquanto criança pequena, atrevida e aventureira. Conheceremos, na mesma medida, os anseios já adolescentes de Jem e a relação de irmãos, firme como cimento, independentemente dos conflitos típicos que só este tipo de laço produz.

Nas muitas aventuras vividas nas férias, atormentar Boo Radley parece ser a preferida dos três amigos. Boo Radley é um vizinho tido, por todos na cidade, como uma pessoa estranha, sombria, que não sai de casa. O interesse em perceber os motivos daquele isolamento, leva a que as crianças se atrevam - mais do que lhes seria permitido - a aproximar-se daquela casa. A partir do momento em que essa proximidade se cria, as crianças serão surpreendidas com pequenas oferendas escondidas numa árvore. Este é um dos pormenores mais bonitos desta história e poderá o leitor pensar que estas passagens são apenas marcos ligeiros na narrativa, contudo, lá mais para a frente, veremos em Boo uma das personagens mais determinantes de «Mataram a Cotovia».

A segunda parte da história desenvolve-se com a notícia de uma alegada violação perpetrada por Tom Robinson, um trabalhador negro. Atticus assume-se como advogado de defesa de Tom e a partir desse momento, toda uma nova viragem acontece na história, e em todas as suas personagens, ao longo do julgamento de Tom.

Este livro, através dos olhos de uma criança, apresenta-nos - num primeiro momento - a inocência da infância e um olhar puro sobre uma sociedade cheia de vícios e preconceitos. Numa segunda parte, encontraremos, uma vez mais, o contraste de um olhar infantil e as chispas dos olhares dos mais velhos, sempre tão prontos a acusar, a apontar dedos mas, acima de tudo e qualquer coisa, sem o desplante de pensarem na possibilidade de inocência daquele homem.
 
E se Tom for inocente?

Os grandes conflitos existenciais da obra são fortemente retratados ao longo do julgamento, num hiato de 3 anos e em que, constantemente, novas questões surgem no coração daquelas crianças e na implicância gratuita de adultos centrados no próprio umbigo. 
 
Atticus, enquanto advogado, será quase crucificado por um povo que não admite um novo olhar quando, em frente, se encontra uma pessoa negra. Scout, a nossa menina valente, sofrerá bullying, viverá constantemente preocupada e o seu irmão, Jem, viverá esse conflito interior na relação com o seu pai e no confronto com as atitudes firmes daquele.

Quando falo sobre este livro, a minha tendência é não mais me calar. A vontade é esmiuçar todo e qualquer pormenor de uma história tão rica, tão bonita. Mas o fim, caro leitor, seria um massacre literário se ousasse aqui escrevê-lo. Acredite.

Deixo-lhe no entanto, este meu registo final: lembra-se de lhe falar sobre o impacto de Boo Radley? O mesmo impacto é sentido na personagem de Tom e, fugindo do aparentemente óbvio, considero estas as duas personagens mais importantes criadas por Harper Lee.

Esta é uma história sobre racismo, contudo, o final lança uma nota de esperança num mundo movido pelo ódio. Essa nota, em jeito de resposta e esperada solução, é escrita pela mão da bondade mais pura, sem subterfúgios. Boo e Tom representam essa pureza, a bondade e a imagem dos que, na luz pesada dos outros, são intitulados como diferentes, os que a sociedade não compreende. 
 
Quando os incomprendidos, apenas e só, despertam o interesse das crianças, a autora lança essa semente de esperança, uma janela aberta, que pede um novo olhar sobre o mundo, sobre as pessoas. A promessa, e o desejo, que o olhar cristalino das crianças jamais atinja a maioridade, que sejamos, todos nós, para sempre, feitos desse olhar que não recrimina sem antes, pelo menos, permitir-se a compreender a diferença.
 
 
Um dos livros mais belos que li. O melhor do meu 2019.



Seja feliz,

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