Série Napolitana "A amiga genial" (Elena Ferrante)

quarta-feira, 24 de junho de 2020

Contém spoilers

Elena Ferrante escreveu a história de uma amizade entre duas meninas, Lila e Lénu, e que cresce ao longo de toda a vida, na sombra de um bairro pobre de Nápoles. Aparentemente, esta poderia ser uma história como tantas outras. Um romance de formação, sobre pessoas e sobre um lugar, mas é muito mais do que isso e creio que talvez seja esse o motivo do enorme sucesso que granjeou. Elena Ferrante transforma cada personagem numa história em si mesma e isso, na minha opinião, é escrever com mestria. Escreveu pessoas tão vivas que o leitor mais desatento pode cair na ideia de que, mais dia menos dia, cruzará com Lila ou Lénu na rua.
Tudo é vivo e muito nítido na história que criou, como um mundo paralelo feito de pessoas que podiam ser reais, mas não são. De pessoas que nos contam segredos que acreditamos serem reais, mas não são. Tudo neste livro é real, sem ser. Quem o lê, dá consigo mesmo a irritar-se, a exercer compaixão, mais acessos de raiva à mistura e, por fim, uma redenção de que nada poderia ter acontecido de outra forma. Imagine um armário de camisolas imaculadamente dobradas, arrumadas por textura e por cor. Assim é esta história: não falha nada, mas isso não significa que toda essa mestria organizada, não exija da parte do leitor uma boa dose de paciência. Acredite, vai precisar de ajustar os níveis não só de ansiedade como, também, de uma certa impotência face à complexidade da vida, como quem entra num mundo cheio de reflexos que nos cabem também a nós, simples leitores.

«A Amiga Genial» faz-nos começar pelo fim, narrando o desaparecimento de Lila, já idosa. O seu filho Rino procura desesperadamente a mãe e para isso recorre a Lénu, mas também ela desconhece o paradeiro da amiga. O fim desta história acaba por ser um lembrete do que sempre foi o laço dominante nesta amizade: uma espécie de retaliação constante entre as duas mulheres.

Se Lila, no final da sua vida, deseja mais do que tudo desaparecer por completo, Lénu numa tentativa de contrariar a sua vontade, decide escrever a história das suas vidas fazendo perpetuar a amiga para todo o sempre. Será através da voz de Lénu que conheceremos as peculiaridades de uma amizade que, também ela, parece ganhar vida paralela, condicionando ambos as mulheres de uma forma quase sobrenatural.

A escola primária marcará o encontro destas duas meninas tão diferentes entre si. Lila é dominante, Lénu é insegura procurando subestimar-se como forma de agradar aos outros.

"Não a conhecia bem, nunca tínhamos trocado uma palavra, apesar de estarmos sempre a competir uma com a outra, na aula e fora dela. Mas tinha a vaga sensação de que se fugisse, como as outras, deixaria com ela algo de meu que ela nunca me restituiria."
É a competição que marca e que sustém a amizade de ambas. Lénu sentia que o vazio dentro de si só poderia ser preenchido por Lila, sempre tão segura, tão inteligente e indomável. Lila, por outro lado, precisava do reflexo da admiração e (aparente) inferioridade da outra. Não são, claramente, os princípios mais promissores de uma boa amizade, antes uma amizade que suga, que converte e que prende ambas as mulheres. Será sempre esse o fio a ligar os seus dias, numa dependência que oscila entre o aparente poder de uma, rapidamente transposto na mão da outra, um jogo de vontades que corre veloz ao longo de todo o tempo.

O primeiro volume revela-nos o desenvolvimento desta amizade e o tempo que vai passando até se tornarem duas belas adolescentes, mas sempre com o pano de fundo da infância que nunca abandonarão verdadeiramente. Os tempos de adolescência são marcados pelos passeios, pelos seus amigos do bairro, pelas paixões que começam a despontar. A quebra entre as duas acontece a partir do momento em que Lila não poderá prosseguir os estudos, ao passo que Lénu, sim. Será o primeiro rasgão num laço, ainda assim, sempre muito forte. Um laço que ora se vai alargando na medida de uma competição que chega a ser cruel, ora se estreita nas horas de maior angústia de cada uma delas.
Ao passo que a vida de Lénu se transforma, centrada nos estudos, na cultura e na vontade de saber sempre mais, a vida de Lila passa a concentrar-se nos cuidados prestados à sua família e a um desejo secreto em vingar na vida. Começa por desenhar sapatos, a ideia vincada de crescer, acabando por materializar o sonho de menina. Com esse sonho, surgem cada vez mais pretendentes mas o coração de Lila parece não se querer dar a ninguém. Até Marcello Solara, da família rica e poderosa daquele lugar, se apaixona perdidamente por ela. O bairro que vê nisso a porta de entrada ao melhor dos mundos. Mas ela não o quer. Casa com outro, Stefano, promissor aspirante a empresário. A vida de Lila jamais será a mesma, contraindo um casamento que mais parece uma dívida para a vida inteira.

Quando lemos «A história do novo nome», o segundo volume da história, temos a certeza de que aquele é um casamento destinado a um mau fim. Nesta fase das suas vidas, as amigas estão cada vez mais distantes, pesa-lhes a vida diferente, os costumes e expectativas também diferentes. No entanto, os dias parecem sempre encontrar uma forma de as aproximar, normalmente, movidos por uma desgraça iminente. A amizade das duas parece feita de água e azeite, impossíveis de misturar, e ainda assim, há uma força que as vai puxando, mesmo quando não querem, a entrar no mundo uma da outra. Como se um sofrimento fosse sempre mais leve quando compartilhado ou, sinistramente, combatido num confronto de forças. É isso que acontece neste que considero o livro que mais gostei. Se Lila não está feliz, Lénu também não ficará. Esta é a parte da história marcada por traições de toda a ordem, ficando uma vontade sem prazo para retaliar, de um ajuste de contas. Lila trai Lénu da pior maneira, roubando-lhe o seu amor de infância, de adolescência, da vida toda: Nino Sarratore. Não só lhe rouba o único amor, como lhe rouba também a capacidade de tomar decisões sensatas. Uma noite na praia assombrará, para sempre, aquela época.

Se «A História de quem vai e de quem fica» não é, na sua quase totalidade, um grande ajuste de contas movido pelo coração birrento de Lénu, não conheço melhor forma de o definir. Também ela casará, será mãe, tornar-se-á numa escritora reconhecida. E como nesta história há sempre um mar agitado que lhe traz o passado pronto a servir, também assim será com aquele ajuste de contas que sempre lhe ficou encravado sabe Deus onde. Nino volta para lhe desgraçar a vida, e ela vai sem pensar duas vezes. Esta será uma fase da história que mais paciência exigirá ao leitor. Será penoso ver Lénu entregue a pensamentos mesquinhos, apaixonados e cegos. Lila, longe, é como um espelho que lhe reflete os próprios erros e a previsão de novas desgraças. São erros atrás de erros, seja de Lénu, seja de Lila. Erros que precisam de cometer para que a vida continue a avançar. Acredito que o poder desta história, mais do que as vidas cruzadas das inúmeras personagens, é o desenvolvimento destas mulheres que nunca, em momento algum, abandonaram verdadeiramente a infância. A beleza desta história reside aí. São duas mulheres, uma vida pela frente, mas foi a infância que sempre lhes moldou os sonhos e lhe condicionou o futuro. A ligação entre si é essa certeza de que não estão sozinhas na vida que desenharam, Lila nos sapatos em papel quadriculado, Lénu pela força da primeira leitura de «Mulherzinhas», tornando-se também ela escritora.

O último livro, «História da menina perdida», vem confirmar o elo destas duas mulheres nas piores fases de cada uma. Ambas destroçadas, ambas tentando reerguer-se, evitando-se mutuamente até à iminência do esperado, essa proximidade surge sempre, como uma inevitabilidade nas suas vidas. Ambas ficarão grávidas, resignando-se uma à outra na partilha das suas dores e da sempre retaliação, do combate entre ambas que as mantém de pé. Este livro abre portas a uma tragédia que lhes moldará a vida para sempre, recorrendo ao passado como quem tenta aliviar as dores do que não pode ser desfeito. 

Ficará para sempre a amizade, ainda que toldada pelos erros do passado e pela constante necessidade de afirmação, quer de Lila, quer de Lénu. A série «A Amiga Genial» faz-nos recuar no tempo, refletir sobre o poder que a infância nos imprime, como o primeiro capítulo de uma história que determina todos os acontecimentos vindouros. Faz-nos refletir, igualmente, no poder das pessoas nas nossas vidas e o quanto, quebrados na procura de nós mesmos, cedemos o lugar do medo ao outro, numa leve esperança que nos resolvam as dores, nos aplaudam o caminho ainda que, tantas vezes, não saibamos bem quantos passos diferentes deveríamos ter dado.





Uma grande história.
Recomendo.



Seja feliz,

2 comentários:

Raquel disse...

Ainda só li o primeiro livro, por isso li apenas a tua opinião referente A Amiga Genial para não levar com spoilers.
Como sempre, as tuas opiniões refletem a essência do livro. Não podia estar mais de acordo com o que tu escreveste! ��

Já tenho o segundo cá em casa para ler. Quando acabar de ler os livros volto aqui para ler o resto da opinião ��

Beijinhos

https://omeurefugioeeu.wordpress.com/

Denise disse...

Kel, obrigada!

Muito contente por também estares a ler e a gostar.
Vamos comentando :)

Beijinhos e boas leituras

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