Contém SPOILERS
O livro que hoje vos trago, uma magnífica
distopia, é tudo menos um livro fácil. Não o digo pela dificuldade da escrita -
pois particularidades tem e muitas! - mas foco-me sobretudo na temática em si:
a violência levada ao extremo e o livre arbítrio: até que ponto sermos
implicados, ou não, nas nossas escolhas é essencial enquanto seres individuais
ou antes uma escolha governamental, como quem arruma a casa aos sábados de
manhã.
Mas não nos adiantemos.
«A Laranja Mecânica» de Burgess acompanha a longa
jornada do crescimento de Alex, personagem que de tão peculiar se torna
inesquecível.
Alex é um adolescente que em conjunto com os seus
comparsas, vagueiam pela noite praticando o que chamam atos de ultraviolência,
e por ultraviolência estamos mesmo a categorizar cenas cruéis e de uma dimensão
visual tão grande que, por momentos, poderá chocar o leitor mais sensível. Na
mesma medida, e a par com o dialeto especial (Nadstate) típico daquele
grupo de adolescentes, outras cenas de tão exageradas, mesmo com a dose extrema
de violência, são a mais para ser verdade. Caso para dizer que, por vezes, o
leitor acabará por rir com certas passagens irrisórias, quiçá, fruto do moloco:
mistura de leite e drogas tão preciosa que os lança para a notche numa
série de aventuras que parece não ter fim.
Alex acabará preso fruto das suas ações
ultraviolentas. Será precisamente neste ponto que o leitor assistirá a uma
viragem completa no rumo desta história. Após espancar uma mulher até à morte, acaba preso em parte pela igual traição dos seus drugos
(amigos). O Nº84 F da Prisão Estatal passará a ser o seu novo lar, a sua
nova vida, cuja anterior, jamais conhecerá da mesma maneira.
Burgess escreve este livro de forma desprendida e
tal como um artista, parece desenhar um círculo por onde os personagens, fielmente,
o acompanham. Alex parece viver em vertigem e rodopio constantes, cujas ações se
vão repetindo sem consequências medidas na balança punitiva de uma sociedade
justa. Até então.
Se a vida lá fora parecia estranha a Alex, a vida
na prisão foi um verdadeiro inferno. Tão grande que numa das rixas habituais
que nós, leitores, tão bem conhecemos quer das histórias lidas ou daquilo que o
cinema nos faz crer, o adolescente acaba por matar outro jovem também à
pancada.
Num momento de dúvida existencial, e sem apelos
possíveis a uma plena salvação, Alex será sujeito à «Técnica de Ludovico». Não
mais do que uma espécie de condicionamento clássico muito rudimentar, à base de
apresentação sucessiva de imagens de violência, Alex terá de se confrontar com
aquelas, queira ou não queira.
As consequências do tratamento serão uma total
repulsa à violência, porém, também a tudo o que de alguma maneira a ela possa estar
igualmente relacionada. Alex é um jovem que apesar dos seus traços desviantes,
é bem-falante e culto. Ele é, por exemplo, um bom apreciador de música. Com
este tratamento deixará de o ser, irremissivelmente, pelas associações
intrincadas à sua história (violenta) de vida.
Sem me alongar muito mais, é chegado o momento em
que Alex verá a liberdade dos dias. Recordam-se
quando vos falei de um Burgess tipo artista que desenha histórias em círculos?
Pois bem. A saída de Alex da prisão fará emergir na história as antigas
personagens ostracizadas por aquele, agora, como vítima de quem um dia magoou
deliberadamente.
Estamos perante um livro repleto, com ou sem intenção
do autor, de apontar de dedos. E assim termino, tal como comecei: a enfatizar a importância da liberdade de escolha.
“Quando um homem perde a capacidade de escolha, deixa de ser um homem.” (p.132)
Praticar o bem, como escolha auto imposta pela
sociedade, será melhor ou pior do que o homem que não o pratica de sua livre e
espontânea vontade?
Dá que pensar.
É por isso, e muito mais, que estamos perante um
dos grandes clássicos da literatura. Recomendo amplamente e, em particular, esta
edição da Alfaguara, pela comemoração dos 50 anos da obra e por nela conter o glossário de
Nadstate (aconselho ler o livro consultando o menos possível, pois torna a
leitura bem mais interessante!) e outras surpresas que muito valem a pena.
Boas leituras!
6 comentários:
Vi o filme já várias vezes e por isso nunca li o livro, gosto muito da versão de Kubrik que nunca quis arriscar comparar.
Olá Carlos!
Ainda não vi o filme, mas espero fazê-lo em breve.
Gostava muito de conhecer a opinião do Carlos quanto ao livro, vale a pena o desafio. Acredito que sim!
Pelo que já ouvi dizer, são muito diferentes sim mas ambos muito bons.
Pense em arriscar :)
Não li post porque ainda não li o livro, apesar de o ter há já algum tempo.
De momento estou a ler a obra reunida, de Juan Rulfo e a gostar bastante. Pedro Páramo é sublime.
Boas leituras, Denise :)
Olá Beatriz!
Reforço a leitura de Burgess. Acredito que não deixará arrependimentos.
Já ouvi falar da tua atual leitura. Edição da Cavalo de Ferro? Gosto tanto dessa Editora... Mais uma dica que vou registar :)
Beijinhos e boas leituras!
A laranja é para ler, sem dúvida. Mas tenho centenas em espera. Penso estar para breve.
Este mês estive com o livro na mão mas optei por Vida e Destino (Vassili Grossman). Aposto que te agradaria. É duro mas os desejos, as vontades e pensamentos são também muito normais, apesar da guerra que existia. Existem personagens interessantíssimos, a dignidade, a vida, a morte. O escritor tem um grande humanismo que já antes vi em Tudo passa. Como repórter esteve em vários países a seguir a guerra e a miséria. Talvez por isso o livro seja tão bom como testemunho histórico e cultural.
Deixo-te aqui uma apreciação:
http://www.escreveretriste.com/2014/02/vida-e-destino-os-filhos-da-puta-sabiam/
Justamente, o livro é da Cavalo de Ferro. Têm livros muito bons: Hamsun, Laforet, Artl, Canetti, Andric, Cortázar, Shirley Jackson e outros de que não me lembro agora. Valem muito a pena.
Há boas editoras, sou grande admiradora da Relógio d'Água. A Cavalo de Ferro vem logo atrás.
Beijinhos e boas leituras, Denise :)
Que maravilha, Beatriz :)
Vou pesquisar mais sobre o livro "Vida e Destino". Entretanto li a resenha e fiquei deveras interessada.
Também me acontece o mesmo. São pilhas e mais pilhas de livros tão bons que se juntam que eu já não consigo ter qualquer critério na escolha.
Quanto à Cavalo de Ferro, é um amor antigo. Shirley Jackson li há relativamente pouco tempo "Sempre Vivemos no Castelo". Sombrio. Influências de Poe. Magnífico. Adorei e recomendo, caso ainda não tenhas lido.
Andric, nem é preciso falar!
E Dino Buzzati? Já sei que aprecias também :)
Para quando um blogue, Beatriz? Vou tentar convencer-te. (risos)
Beijinhos e boas leituras
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