Há muito que ambicionava ler Siri Hustvedt e eis que surgiu a oportunidade com este «Mundo Ardente». Que livro, meus caros. Que livro magnífico.
Penso que a intensidade deste livro esta na mesma medida da sensibilidade do leitor, ou seja, quanto mais sensível, mais penosa a leitura se tornará. Quando digo penosa, digo profunda e proveitosa. É. Por vezes, é precisamente o que dói que mais provoca, o que permite - de facto - observar. Como uma obra de arte, seja um quadro, seja uma escultura. E, sobretudo, o autor que atrás se esconde do objeto criado.
«O Mundo Ardente» retrata a vida de Harriet Burden, artista plástica atormentada pela falta de visibilidade face ao seu trabalho. Falta de visibilidade essa a que atribui ao facto de, perdão, não ser possuidora de um bom par de tomates:
"A multidão não está dividida por sexos. A multidão tem uma só mente e essa mente é enlevada e seduzida por ideias. Aqui está uma coisa feita por uma mulher. Tresanda a sexo. Sinto-lhe o cheiro. Todo o trabalho intelectual e artístico, incluindo as piadas, ironias e sátiras, tem mais sucesso na mente da multidão, quando a multidão sabe que, algures por detrás da grande obra, ou do grande embuste, se encontra uma pila e um par de tomates (sem cheiro, claro). A pilinha e os tomatinhos não precisam de ser reais. Não, não, a simples ideia de que existem é suficiente para incitar a multidão a valorizar mais a obra. Assim sendo, recorro à coquilha mental. Viva Aristófanes! Viva a verga ficcional, a varinha mágica que abre os olhos para mundos nunca antes vistos." (p.334)
É impossível uma mulher que se digne não se compadecer dos anseios de Harriet Burden e, a partir daí, embrenhar-se afincadamente numa leitura desenfreada sobre a vida da artista. Vida atribulada, esta. Como artista que se preza. É que na gíria, artista que é artista é tolo. É paranoico. Mas é artista e essa palavra justifica tudo.
É com o peso da sua própria arte, na crença vincada da mesma, que Harriet tece um esquema para justificar o quanto a perceção pode mudar ao nos depararmos com uma obra de arte e o conhecimento do seu autor. Seja um homem. Seja uma mulher. Algo muda com base no género do criador.
«Máscaras» é assim criado sob o pano de fundo de três homens, artistas, que encontra para se esconder e, ao mesmo tempo, revelar ao mundo o fruto do seu trabalho.
Anton, Phineas e Rune passam a ser o centro de tudo aquilo pelo qual tanto ambicionou: brincar com o mundo, revelando a sua arte que valoriza mais do que qualquer coisa no mundo.
Narrado sob a forma de biografia da própria Harriet, escrito por I.V.Hess, vamos conhecendo a árdua jornada da artista na tentativa de fazer prevalecer o seu ponto de vista, a sua própria arte, a sua própria perceção. Que julga ser universal. Auto-centrada.
Mas a questão é: e se alguém pensar exatamente o mesmo? A teia só avoluma até ao momento em que a própria Harriet perderá o controlo de tudo.
É num emaranhado verdadeiramente alucinante que Siri Hustvedt põe a lume temas essenciais como o da identidade, o da perceção, o das certezas pessoais como ponto de partida às tomadas de decisão, tão vincadas e que, num virar de cabeça, resvalam como cartas caídas.
Vítima da sua própria perceção, Harriet acaba por se perder em si mesma, nessa procura infinita através da arte, um assunto que parece morrer sem a solução esperada. Como ela. Mas enfim, com uma marca, com um espírito, cujas peças, alguém diria, quase pareciam ouvir-se respirar.
Só posso recomendar.
Com ambas as mãos!
Boas leituras.
Ao som de: "Identify" (Natalie Imbruglia)
Composição: Billy Corgan
Sem comentários:
Enviar um comentário