A Sétima Onda (J. Rentes de Carvalho)

quarta-feira, 20 de março de 2019


"Nas praias, em Portugal, mesmo quando o mar está manso, ouve-se por vezes gente aflita a gritar, a quem se aproxima da água, para que tenha cautela com a sétima onda.
Mais alta do que as outras, mais lenta, ela espalha suavemente a espuma, para de súbito, traiçoeira, escavar na areia um abismo e engolir os corpos, que nunca devolve.
Diz-se que os espíritos das vítimas ficam presos na rebentação, condenados à pena eterna de rever sete vezes o passado a cada sétima onda."
 
«A Sétima Onda», o livro mais recente de J. Rentes de Carvalho, é um livro que invoca a memória. Em primeiro lugar, em primeira e única instância, este é um livro feito de memórias. É um rebuscar do passado que nunca se tornou como tal, uma mancha misturada entre presentes que, tal como a onda, o empurra para um futuro por definir. Como todos os futuros.
 
Se depois de dias de chuva intensa, decidir caminhar um pouco pela floresta, encontrará uma série de pequenas poças de água cristalina, que brilha ao longe. Nunca lhe aconteceu? Ao chegar um pouco mais perto dessa poça de água, verá o seu reflexo, ali, intacto, fiel, que não revela segredos. Agora, pegue num pequeno galho de árvore e toque na água. A lama escondida no fundo virá ao cima. A água outrora cristalina, disfarçada, já não brilhará. É assim com os segredos, é assim tantas vezes com a memória dos nossos dias.
 
Esta é a história de Bob Márquez, um fotógrafo argentino. Se até então a vida lhe corria pacata, sossegada, com alguma desordem amantizada com a paz dos seus dias, tudo muda quando lhe chega por carta o convite de casamento da sua ex-mulher, Martha.
 
Martha é a sua poça de água em dias de chuva, e será depois desse convite que Bob se sentirá impelido a pegar no tal galho de árvore e remexer um passado que nunca superou na totalidade. É um entrar constante nessa sétima onda, que lhe crava nos pés um abismo cada vez maior.
 
O leitor, ao longo desta sétima onda, entrará com o nosso fotógrafo numa espiral de recordações, amigos que perduram para lá do tempo, amizades suspeitas, um contexto político que muito nos diz e toca, a nós portugueses, e a tantas outras histórias secretas que vai desejar conhecer.
 
Mais do que uma história em que predomina a memória, este é um livro que invoca, igualmente, o amor na sua imperfeição. Um amor imprevisto, como todos eles, atado por laços, de cada lado, muito frágeis. Inesperados.
 
"Tínhamos sinceramente apalavrado o casamento, como se o selo, o sim tivessem mágica bastante para derrubar muros. Não somente os nossos próprios, mas os que vinham de trás, construídos por outros. Dizendo-me eu que bastaria querer, esperar, dar tempo, e a felicidade deixaria de ser o lampejo que por vezes entrevíamos, para se tornar duradoura."

J. Rentes de Carvalho mostra-nos muito daquilo que é suposto viver, aquando a leitura desta sua «Sétima Onda». É esse constante ir e voltar, esquecer e lembrar, afundar e emergir. A vida feita como mar: que oscila, que leva, mas que também traz. Reside a dúvida: o que fazer das nossas memórias? Não tocar na poça de água, não remexer nos fantasmas do passado ou, sem medo, afundar-se na previsível lama que lhe tolda a verdade?
 
 
Para pensar.
É Rentes de Carvalho e basta.
Obrigatório, como sempre.
 
 
Vá ler.
 
Seja feliz,
 

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