Atos Humanos (Han Kang)

domingo, 3 de março de 2019


Há quase uma atitude fatídica quando falamos em Han Kang. Quando escreveu «A Vegetariana», o sucesso foi imediato, foram muitas as opiniões escritas, muito se falou, muita tinta correu em torno de um livro que agitou muitas pessoas. Pela positiva. Foram raras as opiniões menos positivas perante a história de uma mulher submissa que, um dia, depois de um estranho sonho, deixou de comer carne. Mas hoje o assunto não é esse. Hoje não estamos aqui para falar sobre «A Vegetariana».

E esta minha introdução, arriscando a falar-lhe de um livro que não é o indicado, não é nada inocente.

Na maioria das críticas a que tive acesso sobre «Atos Humanos», da também Han Kang, verifiquei um ponto semelhante: a tendência de comparar o presente livro com «A Vegetariana». Essa comparação leva, aparentemente e fruto das minhas pesquisas, a avaliar o presente como "menos bom", "menos impactante", "menos", "menos" e "menos".

Eu não concordo. Hoje venho falar-lhe deste livro na sua individualidade, sem comparações com a anterior obra da autora até porque, na minha opinião, estão longe de se comparar naquilo que mais importa: a temática, o enredo, o contexto social e político.

Introduções à parte, «Atos Humanos» é um livro certeiro, cru, cruel, que lhe vai fazer revirar as entranhas, que lhe agitará a consciência, que o fará pensar no quanto a complexidade humana nos continua a surpreender. Aliado a isto, informo-lhe que a escrita de Han Kang é bonita e despretensiosa. Vai direta ao ponto sem esquecer a sensibilidade que, parece-me, a caracteriza. Eu digo, por isso, estarmos perante um bom livro. Os livros que apontam dedos e que, lendo como deve ser lido, nos toca na ferida com dedo afiado.

A história surge na sequência do Massacre de Gwangju, na Coreia do Sul, entre 18 a 27 de Maio de 1980. Esse foi o período em que as pessoas se revoltaram contra a ditadura de Chun Doo-hwan, arrasando as cidades, gritando pela falta de liberdade de expressão. Como consequência, muitas pessoas foram mortas, inclusivamente crianças e jovens. 

Este foi o arremesso da autora para nos escrever uma história chocante, com cenas vividas da maior crueldade, de seres humanos que foram tratados como lixo, violentados, abusados das formas mais impensáveis. Esta é uma história de dor, em que a autora, magistralmente, transforma um massacre humano em massacre literário. A capacidade com que nos faz chegar a dor das personagens, emerge do livro até nós. Faz-nos pensar. Os bons livros são, precisamente, aqueles que nos fazem pensar. Gostemos ou não.

Eis, depois, que surge outro motor que faz girar este livro de Han Kang: a amizade e o amor. É também a jornada do adolescente Dong-ho que, na busca desenfreada pelo seu amigo desaparecido, percorre os caminhos amargos de uma guerra, de posições vincadas por mãos de demónios de carne e osso. Entre a crueldade de uma posição social e política, prevalece ainda assim, a capacidade do ser humano em se reorganizar, em levantar a cabeça, em afogar as mágoas que não podem ser verbalizadas, e viver. Seja na saudade, na nostalgia ou no sonho. Mas viver depois da tempestade. O medo que virá, tantas vezes, mas ainda assim, o viver depois. O viver depois de tudo. A alma que ainda resta no corpo vivo do passado.

"Já alguma vez sentiu essa intensidade assustadora, professor, essa sensação de que passámos por uma espécie de alquimia, de que fomos purificados, de que nos tornámos completamente virtuosos? A luz desse momento, a pureza estonteante da consciência."

Recomendo. Sem reservas.

Seja feliz, 

2 comentários:

Carlos Faria disse...

Pois foi a comparação que me tem afastado deste livro, o anterior não me deixou a pensar, adorei a escrita, até achei originalíssima a estória, mas foi como ir a um museu e ver uma peça muito bela mas que não pôs a pensar.
Pelo contrário deduzi do post que esta segunda obra não é uma jarra de louça de decoração no meio de uma galeria e isso pode-me levar a comprá-la, pois gosto de obras que me digam mais do que me maravilharem por serem belas

Denise disse...

Compreendo o que diz, Carlos. Também eu me revejo um pouco na situação que descreve.
Este livro vale por si mesmo e a temática não deixa ninguém indiferente.

Boas leituras!

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