O livro de estreia de Karina Sainz Borgo fala-nos sobre a crise atual que se vive na Venezuela. Precisamente por isso, há quem pondere que as luzes em torno da sua obra se foquem apenas e só na atualidade do tema, mas não é bem isso. Na verdade, a qualidade literária da autora suplanta qualquer pré julgamento que assuma o tema como a causa do sucesso que está a viver. É um sucesso merecido. Seja pelo tema, que obviamente assume aqui uma importância vital mas, também e muito importante, pela qualidade com que a autora expõe o tema, a cru, sem falsas modéstias.
É também um livro que nos toca particularmente por um assunto, provavelmente, esquecido em primeira mão: a culpa de quem se salva em prol dos que ficam na miséria. Mas não nos adiantemos.
«Cai a noite em Caracas» é um retrato ímpar das desgraças que nos chegam da Venezuela.Um governo a roçar similaridades com um comboio desgovernado que atropela tudo e todos, que traz fome, miséria, medo e muita solidão. É assim que vive a personagem principal desta história, Adelaida.
Após a morte da mãe, vítima de cancro, Adelaida perde todas as suas raízes. As memórias de um serviço de pratos debruados a vermelho, algumas peças de roupa intocadas, os sapatos organizados da sua mãe, as memórias de um passarinho, resumiam o pequeno mundo daquela mulher, a mãe como o centro nevrálgico da família. Estava só. Num mundo cão, esfomeado e perdido.
É esta a base de toda uma história de resiliência e superação. Perdida entre mortes, corpos desamparados na rua, fome, tráfico e a constatação do quanto podemos ser vis em prol da sua nossa própria vida, Adelaida percebe que chegou a hora de decidir entre as duas conhecidas respostas universais: lutar ou fugir. Será um acaso que lhe dita estar pronta para lutar.
"Regressei à sala e peguei na única carta por abrir que permanecia em cima da mesa. Era uma carta do consulado de Espanha, instalado na cidade. Tentei lê-la em contraluz, mas foi impossível. Voltei às cartas abertas. Uma, a factura da luz. A outra, também com o selo da bandeira vermelha e amarela, uma comunicação na qual o Estado espanhol solicitava uma prova de vida de Julia Peralta, a sua mãe, para receber a pensão. Tanto quanto eu sabia, aquela senhora morrera havia, pelo menos, cinco anos. Dobrei ao meio a carta do consulado espanhol e a solicitação da prova de vida e escondi-a nas calças, peguei nas chaves e fechei a porta.
Aurora Peralta estava morta, mas eu continuava viva."
Desde então, moralismos à parte, Adelaida lutou para ser outra pessoa, para finalmente fugir de uma terra infértil. A jornada de fuga desta mulher assemelha-se às tão comentadas dores de parto, é como quem lhe arranca as entranhas nessa necessidade de fugir mas, na mesma medida, ladeada pela culpa e questionável cobardia.
"Era de noite e uma electricidade de miséria e beleza percorria a cidade. Caracas luzia acolhedora e, ao mesmo tempo, terrível, o ninho quente de um animal que ainda me olhava com olhos de cobra selvagem no meio da escuridão.
Apenas uma letra separa «partir» de «parir».
É de bravura que fala esta história. É, também, o jogo serpenteante de quem, para sobreviver, vai ao desencontro de si mesmo. Um desencontro que soma uma pesada culpa: se eu consegui escapar daquele lugar em que a noite nunca morre, o que faz isso de mim?
Após a leitura de «Cai a noite em Caracas», o leitor ver-se-á, num primeiro momento, compelido a escolher apenas um de dois lugares: a fraqueza ou a bravura. A autora deixa-nos esse rasto de anseios por uma resposta concreta em que apenas fica a certeza de que em ambientes inóspitos, nos lugares que desafiam a nossa própria vida, a incerteza das coisas é a certeza em si mesma. Fica-nos a consciência que ditará, esperançosamente, a melhor resposta.
"Viver, um milagre que ainda não consigo entender e que morde com a dentada da culpa. Sobreviver faz parte do horror que viaja com quem foge. Um animal daninho que procura derrotar-nos quando nos encontra de saúde, para nos fazer perceber que alguém merecia mais do que nós continuar com vida."
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2 comentários:
Gostei muito deste livro mas queria que continuasse, saber o que lhe iria acontecer no depois
Olá Gabi! :)
Eu gostei muito também. Sobre essa questão que apontas, das duas uma: ou a autora pretende escrever uma continuação ou, então, passar a mensagem da incerteza que acompanha todo o livro. O que será agora de Adelaida? O fim deste livro acaba por ser esse reflexo da culpa, da incerteza, do que virá. Foi uma ótima leitura.
Beijinhos e volta sempre!
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