David Golder (Irène Némirovsky)

sexta-feira, 24 de abril de 2020


Contém spoilers.

Aos 26 anos Irène Némirovsky escreveu «David Golder«, o seu primeiro romance. Naquela altura, é referido que "Na história editorial é caso único que o autor de um manuscrito lido com alvoroço tenha de ser procurado em anúncios de jornais." (Prefácio, Relógio D'Água Editores).
Foi assim que aconteceu e ninguém previa que a mão que escrevera uma história madura como «David Golder» fosse de uma jovem de tão tenra idade, depois de tanta procura e da necessidade desse anúncio que possibilitasse encontrar o autor, neste caso, a autora.

"Peço desculpa por tanto atraso. Acabo de dar à luz. Sou Irène Némirovksy, a autora de David Golder.»

«Protetor» é uma das palavras que podemos encontrar no dicionário para significar «pai» e é muito sobre isto que gira a história de «David Golder»: um homem de negócios, à beira da falência, profissional e física, mas que por amor à sua filha Joyce, decide recuperar a pouca energia que ainda tem e reconstruir o seu império.

O mundo deste homem foi sempre voltado para os negócios e uma constante procura pela riqueza e prosperidade. É a atitude desenfreada de um homem que esconde, paralelamente a essa vida agitada de negócios, o vazio da sua vida conjugal, com uma esposa materialista, leviana e frívola que apenas o tolera pelo dinheiro que recebe. David sente que a única tarefa que desempenha eficazmente é proporcionar o melhor dos melhores para a sua filha, igualmente leviana, cabeça no ar e sorriso constante no rosto, de quem sempre teve tudo à custa de nada.

O ambiente/enredo desta história vem mostrar até onde pode ir o amor de um pai pela filha mesmo quando, inesperadamente, se levanta a dúvida sobre a sua legitimidade enquanto tal. Será Joyce realmente sua filha? O sorriso do amante da mulher é guilhotina na única certeza que o faz levantar todas as manhãs.

Inspirado no trabalho do próprio pai, bancário, Irène Némirovksy escreve uma história de grande maturidade sobre as linhas enviesadas de uma família destruída pela ambição e um homem que vê no futuro da filha, e no amor incondicional que lhe tem, a única salvação e redenção para uma vida sem propósito.

É aqui que mora a grande beleza deste livro: o amor de um pai como quem se despoja, depois de anos numa procura desenfreada de pequenos nadas. É no amor como esperança que este homem se centra e, já muito cansado, termina a sua jornada com aquela sensação de dever cumprido. O que o futuro reservará, dele já não depende.

É um consolo que se segue, doce, de quem morre com alma renovada e deixa, à mão de semear e para quem queira ver, a consciência lavada, incapaz de envergonhar quem o guarda, e guardará, na memória.



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